Como as apostas pela internet envolveram até o Bolsa Família
A primeira notícia, na segunda-feira, foi por muitas horas a manchete no UOL, com título e texto que tentavam culpar o atual governo Lula e toda a Era Lula: cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família tinham destinado três bilhões de reais às casas de apostas virtuais apenas no mês de agosto.
Essas informações constavam de um relatório do Banco Central que não era sobre o Bolsa Família, mas sobre o crescimento do fenômeno das apostas via internet, permitidas pelo governo Temer e deixadas sem regulamentação nos quatro anos de Bolsonaro. O dado principal do relatório era que no mês de agosto 24 milhões de pessoas físicas tinham participado de apostas e jogos de azar virtuais no Brasil. O total apostado por essas 24 milhões de pessoas era de 20,8 bilhões – números que o Banco Central apurou (assim como os cinco milhões do Bolsa Família) investigando quem realizara ao menos uma transferência via Pix para essas empresas durante o mês de agosto.
Como o Banco Central tem em seus computadores o registro de todas as operações por Pix, não foi difícil levantar essas informações e o dinheiro envolvido. Mas elas e a própria existência do relatório impunham uma primeira pergunta: por que razão o Banco Central teve de fazer esse levantamento, se o desempenho do mercado de apostas pouco ou nada tem a ver com sua finalidade de policiar a inflação e zelar pela estabilidade da moeda?
A resposta só apareceu dias depois: foi a pedido do senador Omar Aziz, do PSD do Amazonas.
A divulgação do relatório foi aproveitada pela mídia reacionária para ressuscitar o tema de uma das primeiras campanhas contra o primeiro governo Lula há mais de vinte anos, quando ele, recém-empossado, criou o Fome Zero, que cumpria sua maior promessa na campanha presidencial de 2002 e o compromisso que anunciara em seu discurso de posse, no 1º de janeiro de 2003:
— Se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida.
Ainda em 2003, o Fome Zero foi ampliado, com a incorporação de outros programas de segurança alimentar e inclusão social, e se tornou o Bolsa Família.
A resposta imediata da mídia reacionária ao relatório do Banco Central foi acolher – e em seguida disseminar persuasivamente – opiniões atribuídas a especialistas de alta reputação, segundo as quais a mesada que o Bolsa Família assegurava estimularia seus beneficiários a não mais enfrentar os desafios da vida, e eles nunca mais precisariam trabalhar ou procurar trabalho.
— Você esperava alguma coisa diferente? — perguntaria com reticências na voz um oposicionista sofisticado, deixando quase explícita a pergunta completa:
— … alguma coisa diferente dessa gente?
Essa expectativa arrogante e cruel tinha tido uma precursora muito expressiva quarenta anos antes, em 1963, quando o Presidente João Goulart sancionou o Estatuto do Trabalhador Rural aprovado pelo Congresso, que finalmente estendia aos trabalhadores rurais a proteção das leis trabalhistas que vinham do governo provisório de Getúlio Vargas em seguida à vitória da Revolução de 30.
Os reacionários da época, que logo derrubariam Jango no golpe de 64, garantiram:
— Com o salário mínimo garantido, essa gente vai é comprar radinho de pilha [uma grande novidade na época] para ouvir o futebol.
Para surpresa desses reacionários, o que “essa gente” comprou primeiro não foi radinho de pilha. Numa das regiões mais pobres do Brasil, o agreste de Pernambuco, origem do movimento das Ligas Camponesas, as associações comerciais e os pequenos comerciantes locais (presumivelmente e previsivelmente conservadores) passaram a apoiar e defender com entusiasmo o Estatuto, porque agora “essa gente” estava podendo comprar camas, para não dormir mais no desconforto das redes. E com as camas vinham colchões, lençóis, travesseiros, cobertores e logo outros pequenos confortos domésticos cuja venda fazia crescer os estabelecimentos desses comerciantes.
Setenta anos depois, no segundo ano do terceiro governo Lula (que por acaso nasceu na pobreza do agreste de Pernambuco e cresceu sendo “dessa gente”), uma pesquisa encomendada ao Banco Central confirma que bom número de beneficiários do Bolsa Família gastou dinheiro com apostas pela internet.
O levantamento fora pedido pelo senador Omar Aziz, que já tinha conhecimento da existência de uma verdadeira epidemia de apostas pela internet, mal percebida ou de todo não percebida no abundante noticiário daqueles dias sobre a socialite Deolane Bezerra e o milionário cantor sertanejo Gusttavo Lima, ela presa e ele refugiado em Miami e com prisão decretada, ambos investigados por suposto envolvimento em práticas criminosas ligadas às apostas virtuais.
Aliás, era de desconfiar a invasiva, avassaladora e convidativa presença das casas de apostas virtuais em toda a internet. Você acessava qualquer plataforma de notícias e logo aparecia um comercial prometendo a sorte grande em alguma aposta e – pior ainda – oferecendo um primeiro empréstimo para você poder jogar sem ter de gastar do seu.
Já eram conhecidos casos de pessoas que começavam a jogar apostando o dinheiro do empréstimo e talvez ganhassem algum logo de saída, mas logo começavam a perder e em seguida se endividavam. Nessa altura, já deviam o do empréstimo inicial, mais o que foram perdendo e aí entrava a máquina infernal herdada dos mais famosos cassinos do mundo: o jogador endividado tenta recuperar suas perdas e pelo menos pagar sua dívida, joga uma vez mais na louca esperança de um golpe de sorte, perde de novo, fica sem crédito para continuar jogando e também não tem como pagar sua dívida, que agora será cobrada com dureza e, naturalmente, ameaças.
“Essa gente” do Bolsa Família que em agosto gastou três bilhões em casas de apostas é, na verdade, um conjunto de vítimas de golpes via internet, numa atividade perversa por definição, que nunca deveria ter sido permitida e que o governo Lula regulamentou, mas foi ultrapassado pelos sempre mais amplos recursos tecnológicos da internet. Agora vai regulamentar de novo, já que não existe a possibilidade de acabar com ele, mas sem a certeza de que resolverá ou ao menos minimizará o problema.
Num mundo de Trumps e Musks, é assim que as coisas são e acontecem.
*) Por José Augusto Ribeiro – jornalista e escritor, é colunista do Jornal Brasil Popular com a coluna semanal “De olho no mundo”. Publicou a trilogia A Era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993); A História da Petrobrás (2023). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.