Em certo sentido, o tão esperado depoimento do ex-Ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Covid pouco acrescentou de novo ao que já se sabia a respeito da conduta criminosa de Bolsonaro na condução – e no caso seria mais apropriado falar em “descondução” – das medidas do governo para enfrentar a pandemia.
O que cada vez mais se confirma é que Bolsonaro pouco se importa com a condução de medidas de proteção dos brasileiros e, portanto, sua escolha tem sido “desconduzir” o que já afirmou ser apenas uma gripezinha e, no entanto, já nos aproxima do meio milhão de mortos.
Pazuello estava protegido por um habeas corpus do Supremo para deixar de responder a certas perguntas e para não ser preso em flagrante pelas mentiras que contasse. O habeas corpus tinha cabimento, do ponto de vista jurídico, porque o ex-ministro, convocado como testemunha na CPI, já é investigado num inquérito conduzido pela Polícia Federal sobre possíveis omissões do governo no enfrentamento da Covid e não poderia ser obrigado a dar respostas que de qualquer modo o incriminassem.
Assim blindado, Pazuello esbaldou-se em mentir, sempre para dar cobertura a Bolsonaro, para evitar a qualquer preço a responsabilização de Bolsonaro e para fazer de Bolsonaro o perfeito cavaleiro andante de decisões em defesa dos brasileiros contra a Covid. Mas alguém ignora, diante da evidência dos fatos, o que Bolsonaro tem dito e feito ou deixado de fazer neste pesadelo em que a situação dos brasileiros contrasta cada vez mais com a dos países que começam a voltar ao normal depois de superados os seus piores dias?
No futuro, e na pior das hipóteses antes da eleição presidencial de 2022, os 20 a 30% de ainda eleitores de Bolsonaro acabarão fatalmente a descobrir que foram os maiores enganados por seu Presidente. Isso ficou ainda mais claro a partir do que Pazuello disse ou deixou de dizer na CPI, quando, por exemplo, garantiu que declarações de Bolsonaro de que tinha proibido a compra da vacina chinesa em parceria com o Butantan não impediram que prosseguissem as negociações para a compra dessa vacina, hoje reponsável por cerca de 80% de toda a vacinação no Brasil. Então o que Bolsonaro disse não foi para valer?
Na mesma medida em que a curto prazo deram cobertura a Bolsonaro, as declarações, as omissões e as mentiras do ex-ministro deixaram nítido para a história – e para o eleitorado – os dados essenciais do que estamos obrigados a viver.
Mas ainda que Pazuello contasse o que de fato aconteceu, isso em nada modificaria a situação de Bolsonaro, que a cada pesquisa perde pontos na avaliação popular, mas está protegido contra o próprio impeachment pela maioria que mantém no Congresso, produto das envenenadas eleições a que o país foi levado em 2018 pelas violências da Lava Jato, pelo golpe do impeachment da Presidente Dilma e pela cobertura que a Lava Jato e o impeachment tiveram na grande mídia.
Enquanto a CPI tenta desvendar segredos que sempre foram públicos e notórios, outras coisas são eclipsadas do conhecimento público e do debate político. O Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, foi sorteado relator do pedido de um grupo de importantes advogados para que o Supremo declare a incapacitação de Bolsonaro, por evidentes razões psiquiátricas, para o exercício da Presidência da República, e determine seu afastamento.
Não existe qualquer previsão constitucional que sustente o pedido de afastamento de um Presidente por motivo de insanidade mental. Pelo texto da Constituição, um Presidente só pode ser afastado ou pelo impeachment, pelo voto de dois terços da Câmara dos Deputados, ou por denúncia de crime comum, cuja aceitação pelo Supremo também depende de dois terços da Câmara. Em ambos os casos, Bolsonaro dispõe da blindagem de bem mais que um terço da Câmara para frustrar essa maioria de dois terços…
No caso para o qual foi sorteado, Gilmar pode fazer alguma coisa ou tem de simplesmente arquivar o pedido? Ainda que Bolsonaro viesse a dar demonstrações ainda mais inequívocas de demência, o Supremo poderia fazer alguma coisa? Politicamente talvez seja melhor Gilmar não fazer nada e fingir que não foi sorteado para conduzir esse caso. Qualquer coisa que venha a fazer, mesmo o pedido de rotina para o Procurador-Geral se manifestar, deixará evidente a impotência do Supremo e a certeza de impunidade de Bolsonaro.
Se não fosse a maioria de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, esse pedido dos advogados nem teria sido feito: o impeachment já estaria em andamento e até já poderia estar decidido. Mas o futuro pode ter uma alternativa. Tanto Collor quanto Dilma Rousseff, Presidentes que foram afastados pelo impeachment, tiveram na Câmara maioria que parecia inexpugnável e de repente essa maioria se desmanchou no ar…
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.