Por quase cem anos, até Fernando Henrique na década de 1990, a República brasileira nunca teve a reeleição dos Presidentes. Nem o regime militar a permitiu em seus vinte anos de duração, nem o Congresso e o mundo civil se mobilizaram para discuti-lo ao longo da vigência de várias constituições, inclusive a atual.
No governo do Presidente Juscelino Kubitschek aconteceu uma proposta de dirigentes da UME, a União Metropolitana de Estudantes, afiliada da UNE no Rio, então capital federal, mas o próprio JK tomou a iniciativa de abortá-lo, dizendo que queria, sim, exercer de novo a Presidência, mas na sucessão de seu sucessor, nunca por uma reeleição na qual teria todos os privilégios pelo fato de estar no poder, com a caneta das decisões e o Diário Oficial das nomeações.
No debate pró-reeleição, no governo de Fernando Henrique, um dos argumentos mais repetidos era o de que os Estados Unidos tinham a reeleição, assim como outros países democráticos, e ela não fazia mal a ninguém e ninguém propunha ou discutia sua supressão.
Naquele momento, de fato, não se discutia a reeleição, mas antes um Presidente eleito em 1920 pelo Partido Republicano, Warren Harding, só não propôs acabar com ela porque morreu antes de poder mobilizar-se para isso.
Warren Harding dizia que desde sua posse era pressionadíssimo para fazer ou deixar de fazer alguma coisa para ganhar votos ou não perder votos na disputa de um segundo mandato. Em nome também da reeleição, auxiliares dele no governo envolveram-se em operações complicadas e mais que suspeitas, inclusive de concessão de áreas petroliferas. Harding morreu repentinamente no curso de uma viagem por vários Estados, que terminaria no Alaska e fora projetada para favorecer sua reeleição.
No ano passado e em janeiro deste ano, Donald Trump criou desde antes da eleição e nos dias e semanas subsequentes, sob a alegação de fraude em prejuízo de seus votos, um clima de caos político que culminou com a invasão do Capitólio na tentativa de impedir a contagem pelo Senado da votação no colégio eleitoral.
No Brasil vivemos desde a posse de Bolsonaro – e com vistas a sua reeleição – o pesadelo de suas decisões insanas, de ameaças, de insultos, de agressões ao Supremo e ainda agora uma enfiada de fakenews que começou com a de que Lula quer voltar para promover a plantação de maconha no Palácio da Alvorada e seguiu com a do coronavírus escapado de um laboratório na China e a da possível precariedade das vacinas, por serem ainda tão experimentais quanto a cloroquina.
Podemos achar ridículas certas fakenews, mas o fato é que em 2018 Bolsonaro venceu sustentado também no kit gay e na mamadeira erótica com bico em força de pênis. No estágio de baixo nível a que Bolsonaro consegue reduzir o debate político, nem é preciso que muitos acreditem no novo kit gay que parece ser a maconha no Alvorada. Da mesma forma, não é preciso que muitos acreditem que um governo Lula vai instalar um socialismo que se apoderará dos carros e das casas das pessoas.
O arrastão neoliberal e a concentração de renda por ele provocada submetem o mundo há quarenta anos a uma degradação intelectual de tal ordem que até a tese do terraplanismo pode ser tomada como objeto pelo menos de cogitação de pessoas que em outras questões podem ser perfeitamente sensatas.
Se compararmos nosso nível atual com o de outros países, como os Estados Unidos e a Argentina, que tiveram eleição presidencial no ano passado, ou com o Chile, que acaba de eleger a primeira assembleia constituinte com igual número de mulheres e homens em sua composição, veremos que o Brasil mergulhou muito mais fundo na mediocridade e na credulidade.
E se compararmos o Brasil de hoje com o de anteriores campanhas presidenciais, veremos que nosso nível de percepção política desabou coletivamente, porque os protagonistas mais inteligentes são obrigados a discutir a agenda simplória e retrógrada de Bolsonaro e sua turma.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.