“A Memória é uma folha seca” é um livro lançado em 2023, de Joselma Noal, professora e escritora. Premiado pela “Lei do livro”, da Câmara Municipal de Rio Grande. Por sinal, na cidade em que leciona literatura na conhecida FURG.
Joselma é porto-alegrense, e o seu romance se passa aqui, sem ser o locus o centro das preocupações, pois sua história é bem resumida na contracapa por Lu Thomé, escritora e editora: “Este livro é uma pequena caixa de madeira, entalhada a mão. Dentro dela estão os fantasmas e os sonhos de uma menina em forma de boneca e de uma velha com alma de menina”.
Os romances que tratam da repressão no Brasil, da ditadura militar, não são muitos. Para minha surpresa surgem agora duas autoras com esta temática. Já comentei o “Nada será como antes”, de Andreia Scheffer; agora, vem “A memória é uma folha seca” de Joselma Noal.
Espero em breve tecer algumas comparações entre as autoras.
Joselma traz as dores, as feridas profundas de além mar, da Guerra Civil Espanhola, na alma de Soledad e seu sobrinho Diego. Lá ficaram pessoas queridas da família, levadas pela tortura e morte do franquismo fascista. Na nova terra acolhedora, o Brasil, no caso Porto Alegre com o sol a brilhar e apontar luzes às personagens, não demora desenrolar o drama da tia e do sobrinho, pois a na alma de Soledad está entranhada a sua solidão, o lado impagável de um abuso, que nem seus banhos longos, com seus sabonetes, com a água de colônia, consegue tirar de seu corpo o sujo machucado, esta chaga é para sempre. E o sobrinho olhando para os céus ao levantar sua pipa espera alcançar seus pais.
Apesar de integrada ao novo mundo, não basta o emprego no consultório médico para Soledad, o crescimento do sobrinho, com seus estudos e o conhecimento que ela trava com o farmacêutico João. Sua alma cede a alguns contatos com o apaixonado farmacêutico, uma única vez de amor de entrega total, pois há algo que tranca as suas relações.
Estamos num mundo de cortes, recortes, de separações, perdas e buscas.
A autora nos conduz para a época da Legalidade, onde seus personagens tem o primeiro batismo de realidade na política, pois parte deles vai ser arrastado à morte e à tortuna pelos milicos de 64. E lá se vai entre eles o seu Diego, sobrinho, deixando mais uma brecha no seu âmago, como foi a perda de Andrés.
Os relatos não estão dentro do escopo de um romance realista, mas de uma novela intimista, psicológica, num enredo que as almas expõe o concreto externo. E eis que aqui está uma das grandezas da obra em comento.
O fim de Soledad no asilo, com sua boneca de pano, aquela inocência arrancada dela nos campos da Espanha, ela guarda com os dois ursos de pano, André e Diego, até o dia em que ela não suporta mais e no banheiro dá fim a tudo. Já estamos em tempos de caras pintadas.
João, o eterno apaixonado, elo de ligação de todo o drama, depois de perdido o contato com sua amada e o querido Diego lê no jornal o fim da amada, ele desmaia e seus guardados, anotações com as relações com Soledad se empalham e ficam na mão de seu funcionário que ali compreende o drama como um todo. Aquele mesmo que foi nos atos contra Collor.
Tanto o enredo como a construção das personagens se sustenta, com qualidade literária, dando-nos, entre tantas boas escritoras do momento, uma romancista com pulso firme: Joselma Noal.
(*) Por Adeli Sell, professor, escritor e bacharel em Direito.
*As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.