A pergunta que se deveria fazer neste momento da situação nacional é a seguinte: apesar dos achados, estudos e decisões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), deveríamos, nós, brasileiros, considerar o uso da vacina Sputnik V, tendo em conta o contexto atual da pandemia? Em outros termos, a população seria mais beneficiada pelo uso da Sputnik V do que com o seu não uso? Haveria maior proteção da saúde coletiva ou haveria danos mais frequentes e sérios devido às insuficiências de dados quanto à segurança e qualidade da vacina apontados pela Anvisa?
Cotejar os estudos e achados de natureza estritamente científica sobre a vacina com outros fatores, de natureza econômica, social, sanitária, ambiental, educacional, cultural, religiosa, etc., que também são determinantes do quadro da epidemia de Covid-19 que se apresenta no Brasil, é chamado, nos meios científicos dos Estados Unidos da América (EUA), de Gerenciamento de Riscos (National Reaserch Council, 1983). E esse Gerenciamento de Riscos, em sua essência, consiste nisto: cotejar os achados de senso estrito científicos, com outros fatores que também influenciam a situação de saúde.
Podemos elencar alguns desses outros fatores, que também formam o contexto da pandemia do novo coronavírus no Brasil:
I) Econômicos – alta taxa de desemprego e alto grau de informalidade do emprego e renda; uma economia que não cresce na maioria dos seus setores e por isso não oferece perspectivas de melhoria desse quadro; a precariedade do emprego e da renda que faz com que a população precise se mobilizar e usar intensamente o transporte público, sabidamente um meio desfavorável ao controle da disseminação do vírus; a impossibilidade de aderência às medidas de distanciamento físico, uma vez que precisa sair para trabalhar.
II) Sociais – a precariedade da moradia, que também dificulta uma das medidas mais indicadas para o controle da epidemia que é o isolamento físico e os eventuais lockdowns; a precariedade do saneamento básico – que dificulta outra das medidas mais indicadas para a prevenção do contágio, que é a higiene pessoal; as escolas fechadas, as crianças sem merenda escolar em meio ao crescimento da fome; as crianças submetidas a um grau maior de violência e exploração doméstica e não doméstica; a baixa escolaridade da maioria da população, que dificulta o entendimento dos mecanismos de propagação da doença e das medidas preconizadas e uma suscetibilidade maior a falsas notícias.
III) Sanitários – alta taxa de incidência da doença no Brasil, agravada pela subnotificação de casos identificada em várias pesquisas, como a da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em 2020, por exemplo, que preconizava que deveríamos multiplicar o número oficial de casos por pelo menos 5 ou 6 vezes para termos uma ideia mais exata da real incidência da Covid-19; alta mortalidade, que agora atinge faixas etárias mais jovens como o grupo de 20 a 39 anos; os índices altamente críticos de ocupação dos leitos gerais e de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) dos hospitais públicos e privados em nove estados do Brasil e níveis também preocupantes em outros dezesseis estados; temos de acrescentar as dificuldades que temos, no Sistema Único de Saúde (SUS), de realizar a vigilância epidemiológica, o controle epidemiológico dos casos, dos contatos e dos ambientes, de forma a prevenir a disseminação do vírus a partir dos casos registrados; muito importante, ainda, é o aparecimento de novas variantes do vírus Covid19, com maior poder de contágio do que o inicial, o que nos faz pensar que a subnofiticação de casos seja ainda maior do que cinco ou seis vezes, calculada em pesquisas feitas com o vírus inicial da pandemia. E as dúvidas sobre a eficácia das vacinas existentes sobre estas novas variantes.
Em relação à vacina Sputnik V, temos de considerar que está sendo usada em outros países onde já foram aplicadas milhões de doses e que, embora não se tenha a informação sobre a existência um sistema efetivo de farmacovigilância pós-vacina – assim como não temos para algumas outras vacinas –, não há notícias sobre reações adversas graves no âmbito da população já vacinada. E a eficácia da Sputnik V parece não despertar maiores dúvidas.
Também há que se considerar que não há uma alta certeza sobre os possíveis efeitos adversos graves que poderiam ser causados por algum grau de poder de replicação dos adenovírus vetores da Sputnik V, que são diferentes na primeira e na segunda doses. Assim como não temos, também, certezas de alto grau sobre as consequências adversas, de médio e de longo prazos, do uso de vacinas elaboradas com outras novas plataformas tecnológicas, como a de mRNA, por exemplo, como as vacinas da Pfizer, da Moderna e da Jansen, por exemplo.
Todos esses fatores, entre vários outros, que deveriam ser apresentados com dados mais precisos e reveladores das situações e da realidade econômico-social, deveriam ser cotejados com os dados, as evidências e informações estritamente científicas da Anvisa sobre a Vacina Sputnik V. Esse balanceamento (trade-off) deveria ser realizado pelas autoridades do SUS, desde o Gabinete do Ministro da Saúde e outros órgãos envolvidos com a pandemia, como a Secretaria de Vigilância em Saúde, a Secretaria de Atenção Primária à Saúde, o Programa Nacional de Imunização, o Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia ao SUS, o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde e outras instituições, como a Anvisa, o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) e outros institutos de pesquisa da Fiocruz, o Instituto Butantan, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Todos juntos, pesquisadores, epidemiologistas, gestores e representantes da sociedade. Um olhar multifacetado que poderia chegar a uma decisão sobre os níveis aceitáveis de risco e o uso ou não da vacina Sputnik V mais conveniente ao quadro pandêmico que vivemos.
Entretanto, é improvável que um empreendimento político deste tipo seja realizado no Brasil, atualmente. Ele assusta e desnorteia os tecnocratas, os técnicos e os estudiosos que se alinham ao “maior rigor” em relação aos métodos e aos resultados, que consideram apenas a questão técnico-científica, dissociada do contexto econômico, social, cultural, enfim, independente do contexto da vida real, e sem considerar, inclusive, as próprias incertezas epistêmicas (do método científico). Também contraria outros grupos sociais, como os movimentos anti-vacina e os que acreditam que a questão econômica é muito mais importante do que a vida das pessoas.
Por estes e outros motivos, é muito pouco provável que um gerenciamento de riscos desse tipo seja realizado no Brasil, o que é lamentável. Os problemas e as situações de risco trazidos pela pandemia são complexos e envolvem questões biológicas/naturais (o salto de espécie que o vírus foi capaz de realizar, sua multiplicação no organismo humano, a doença, etc.), com questões sociais estruturais da nossa sociedade. Não podemos ignorar que a vulnerabilidade à Covid-19 é muito diferente para cada grupo social e que os riscos são fortemente determinados por processos sociais. Ao persistir a situação atual, o acesso à vacina para muitos grupos populacionais, em especial os mais jovens, ainda deve demorar meses. Sabemos que as taxas de incidência e de mortalidade pela Covid-19 é várias vezes maior nos bairros da periferia das grandes cidades do que nos bairros mais ricos. E isso não é casual. Então, qual é o maior risco para a grande massa de trabalhadores, formais ou informais e desempregados?
Alguém duvida que um trabalhador, que é obrigado a percorrer grandes distâncias em transportes coletivos lotados, duas ou mais vezes ao dia, e trabalhar presencialmente em ambientes fechados ou em contato com grupos de pessoas com os mais diversos comportamentos frente à Covid 19, ao ser informado sobre os riscos de tomar a Sputnik V, bem como os riscos do completo descontrole da pandemia no país, possa optar por tomar a vacina? O Consórcio Nordeste está certíssimo quando luta pela vacina.
(*) Geraldo Lucchese é farmacêutico, sanitarista, doutor em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz.