A Unesco cunhou o termo desinfodemia, que mistura desinformação com epidemia. Estamos testemunhando uma epidemia de desinformação
O 8 de janeiro e o fator humano
Parte 2
Na primeira parte do artigo (iiihhh, não leu? Clica aqui primeiro, senão você vai boiar por completo!) deixei as pessoas com as ideias misturadas demais com a alteração de forma e meio de consumo de notícias. A mudança de um ambiente impresso de leitura de notícias para um ambiente digital alterou a percepção cognitiva das pessoas acerca do que é notícia, e elas não se deram conta disso, pois foi um processo inconsciente – que nunca é demais lembrar, ocorreu em meio a tantos outros processos de alterações cognitivas diante de novas tecnologias e de meios de acesso à informação.
Daí elas começam a receber informações no zap (aquele monstro que serve pra você pedir pizza, trocar nudes com a pessoa amada que você tá pegando e pra xingar o Xandão). E a percepção cognitiva da informação, que já não estava lá essas maravilhas, piora ainda mais. A percepção cognitiva da diagramação desaparece, e a relevância de um link de WhatsApp se iguala à de um link do app do seu jornal preferido, ou do navegador web. Vou repetir aqui o que eu disse na primeira parte do artigo, de novo em negrito: fica tudo igual. A notícia que o seu tio enviou no zap e a notícia que você lê no site oficial do órgão de informação têm o mesmo visual no smartphone. Isso significa que elas adquirem a mesma relevância cognitiva para o leitor que usa um smartphone. A pompa e a institucionalidade que a diagramação conferia à notícia não existem mais.
Nesse ambiente de zap, você deixa de receber as informações do William Bonner e passa a receber do seu tio – são duas relações sociais diferentes (e eu já expliquei isso na primeira parte desse artigo). Então, a informação repassada por essas pessoas é percebida (lá vem ela com o negrito!) como real, factível, confiável. Não importa se é ou não, a percepção das pessoas é positiva com relação a confiabilidade e realidade.
As pessoas podem receber qualquer bosta no zap que vão tratá-las cognitivamente como informação real e relevante. Elas associam essas informações, cognitivamente tratadas como reais, ao frame de “verdade / certo”. E o processo de distorção cognitiva entra na segunda fase.
Essas pessoas, que já não está lá muito bem da cognição, serão submetidas a um bombardeio de mentiras erroneamente tratadas como verdade. Essas mentiras serão enviadas a elas de forma contínua, por várias pessoas diferentes (multicanal), em textos similares que trazem informações parecidas – não são textos iguais. Tem sempre alguma alteraçãozinha. Então, a impressão dessas pessoas é de que:
– A informação recebida é relevante e importante
– Tem vários desdobramentos, porque todo mundo tá falando, e tem sempre alguma coisinha a mais.
O conteúdo dessas informações é sempre negativo. Fala mal de algo/alguém. É uma mentira, e como mentira carece de dados, embasamento ou qualquer forma de tratamento racional de uma informação. Pode ser racionalmente refutada, mas refutar racionalmente é tudo o que uma pessoa submetida a esse processo não faz – inclusive entender o significado do verbo refutar.
É assim que funciona a manipulação: ela não te pega pelo cérebro, ela te pega pelo fígado. Você é submetido a uma série de informações contra uma pessoa/coisa que causam em você sensações negativas, de repulsa. Você não percebe, mas passa a odiar a pessoa/coisa. E o ódio passa a fazer parte do seu corpo, uma vez que ele é transmitido de neurônio para neurônio em forma de sinapses. No momento dessa transmissão, o ódio é parte integrante do seu corpo. E ele faz mal ao seu corpo.
Trata-se de um processo que beira o adestramento, e não tem como objetivo apenas fazer com que os submetidos acreditem numa mentira. A ideia aqui é fazer com que essas pessoas não só acreditem na mentira, como tratem essa mentira como verdade absoluta. Ocorre que essa mentira tem uma função bem clara. Geralmente, serve pra destruir alguma reputação. A crença na mentira cria uma semente bem profunda nas pessoas, pois é informação que é repetida (portanto, confirmada e reforçada diuturnamente). Ao longo do tempo, e com o reforço continuado dessas informações falsas, distorcidas e repetidas, a pessoa passa a acreditar numa realidade paralela, que não encontra lastro na realidade dos fatos (quem usou a expressão “não encontrar lastro na realidade dos fatos” foi a delegada da Polícia Federal Denisse Dias Rocha, e é uma explicação simplesmente brilhante.) É como se fosse uma alucinação. Sim, o nome disso é lavagem cerebral.
Não à toa, a Unesco cunhou o termo desinfodemia, que mistura desinformação com epidemia. Estamos testemunhando uma epidemia de desinformação.
Esse é o modus operandi cognitivo do Firehosing. Trata-se de um processo de planejamento, produção, disseminação e ratificação de informações indevidamente tratadas como verdadeiras por quem as propaga, de forma a induzir em quem as consome sensações negativas, contrárias a um alvo eleito. Pressupõe a transmissão de informação com as seguintes características: alto volume, multicanal, contínuo, repetitivo, sem compromisso com a verdade e sem compromisso com a coerência dos fatos ao longo do tempo.
Os autores que originalmente descreveram esse processo em 2016, Christopher Paul e Miriam Matthews, no texto The Russian firehose of falsehood propaganda model acreditam até hoje que só quem faz isso é o malvado do Putin e a malvada da Rússia. Longe de transformar Putin e Rússia em anjos, mas quem mais vem se valendo desse processo de 2016 pra cá são Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Então, o tio e a tia do zap sofreram um processo de submissão cognitiva. Eles deixaram de ser aquelas pessoas doces e queridas, que te recebem em casa com bolo e conversa boa pra assistir ao jogo do seu time preferido. Deixaram de amar. Agora, eles são ódio puro, e foram adestrados a não mais confiar na Globolixo (e aqui eu chego ao ponto da queda de confiança na imprensa, que apontei na primeira parte do artigo, no levantamento do Instituto Reuters).
Eu não tenho dados concretos para defender isso (ainda não pesquisei a fundo essa questão), mas isso é verificável: o processo neurológico a que essas pessoas foram submetidas é similar ao processo a que viciados em drogas são submetidos. Com duas diferenças gritantes:
1) Uma pessoa viciada em drogas consome substâncias alucinógenas que alteram o cérebro num processo químico.
2) Uma pessoa viciada em drogas é uma pessoa que, na primeira vez que teve contato com a substância alucinógena, o fez de forma consciente: ela sabia que estava usando uma substância perigosa que poderia causar danos a sua saúde.
O cérebro de uma pessoa submetida ao Firehosing não é um cérebro submetido a substâncias químicas, mas é um cérebro que foi submetido a um processo que, ao fim e ao cabo, tem resultado similar ao consumo de drogas pesadas (repito: essa informação carece de confirmação científica, mas não é difícil de ser confirmada). E, se entendermos as notícias falsas como as drogas que causaram esse estrago, então quem lê e aceita Fake News é um viciado em drogas. Mas essas pessoas, na primeira vez que provaram dessa droga, o fizeram de forma consciente? Eu, sinceramente, tenho minhas dúvidas.
Então chegamos ao oito de janeiro. Um bando de alucinado que, depois de pelo menos quatro anos foram submetidos (ou se submeteram) a processos alucinatórios, cometeram crimes contra o Estado Democrático de Direito e atentaram contra a democracia – muitos deles armados em nome da Liberdade – e eu já falei dessa tal liberdade aqui no GGN.
Foram artífices na tentativa de um golpe de estado. Mas agiram conscientes (?) de que estavam fazendo a coisa certa. Agora estão presos e fichados como criminosos, mas para espanto geral não se reconhecem como criminosos e não percebem que estão presos. Poucos se deram conta de que suas detenções estão baseadas, sim, em leis existentes, citáveis e aplicáveis a eles. A grande maioria entende serem vítimas de arbitrariedades e autoritarismos.
Ah, então a culpa é dos smartphones que acabaram com a diagramação? Não. O ser humano possui um cérebro com características que o tornam perfeitamente capaz de reconhecer (novas) ferramentas e usar essas ferramentas de maneira funcional. Estamos apenas em fase de adaptação.
Ocorre que, como todo sistema, o sistema cognitivo humano é vulnerável, e vem sendo atacado em suas vulnerabilidades. As chamadas Fake News se aproveitam exatamente dessas vulnerabilidades cognitivas, que não são comuns a todos os sistemas cognitivos. Tanto é que há quem perceba esse processo como ele de fato é: um processo de propaganda e manipulação.
Dever de casa pros governos – de todo o mundo: equiparar a disseminação de desinformação ao tráfico de drogas. Em nível mundial. Ou isso ou, dada a capacidade de o processo de Firehosing operar cada vez mais e mais de forma massificada, seremos derrotados. O pronome nós oculto na última oração diz respeito à raça humana, que fique bem claro.
Desculpe. Não trouxe boas análises, mas alguém tinha que dizer isso.
(*) Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.
Artigo publicado, originalmente, no GGN
Leia também a Parte 1
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