Outubro de 2023: prédios da região de Gaza bombardeados pelas forças militares de Israel. Parte inferior, 1897: o Exército brasileiro ateia fogo no povoado de Canudos, no interior da Bahia, além de exterminar o líder religioso cearense Antônio Conselheiro e seus 20 mil seguidores. Imagem do filme ”Guerra de Canudos”, do cineasta Sérgio Rezende
“Não fala com pobre
Não dá mão a preto
Não carrega embrulho
Pra que tanta pose, doutor?
Pra que este orgulho?
A bruxa que é cega
Esbarra na gente
E a vida estanca
Um enfarte lhe pega, doutor
E acaba esta banca
A vaidade é assim, põe o bobo no alto
E retira a escada, mas fica por perto
Esperando sentada
Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco
Afinal todo mundo é igual quando o tombo termina
Com terra por cima e na horizontal” (Billy Blanco, “A Banca do Distinto”).
O cancioneiro popular brasileiro é riquíssimo. Basta ser conhecido que é respeitado, reproduzido e, quiçá, imitado. Mas não nos enche de orgulho. Por quê?
A resposta está na História do Brasil, o que dela nos é contado e como nos é explicada.
A escravidão legal, protegida pelo Estado, que durou quatro séculos, não merece sequer uma página, como se esta atrocidade, que deixou profundas marcas na formação cultural brasileira, pouco interesse despertasse.
Por outro lado, episódio trágico, como a matança da população de Canudos, é cercado de heroísmo militar!
Onde fica Canudos? É um município no estado da Bahia, inserido no Polígono das Secas e no vale do rio Vaza-Barris. O município possui população, conforme dado do IBGE de 2021, de 16.832 habitantes, 4,7 pessoas por km².
Canudos inspirou o jornalista e escritor Euclides da Cunha a produzir dos mais célebres livros da literatura brasileira: “Os Sertões”.
Igualmente, serviu de roteiro para o filme do carioca Sérgio Rezende, “Guerra de Canudos” (1997), numa perspectiva mais humana e de denúncia. Afinal, foi o massacre de uma população desarmada pelos canhões e dinamites do Exército Brasileiro.
Qualquer semelhança com o que ocorre, em 2023, na Faixa de Gaza, a 9.031km de distância e 126 anos após, não é mera coincidência.
É o mesmo poder financeiro, rentista, inimigo do povo, agindo no Brasil do século 19.
O massacre de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897.
Em 1893, o líder religioso cearense Antônio Conselheiro chega ao povoado abandonado de Canudos e o repovoa, rebatizando-o de “Belo Monte”.
Em 1897, Conselheiro e seus 20.000 seguidores são exterminados pelo Exército brasileiro, tal qual a população palestina da Faixa de Gaza está sendo dizimada pelas forças armadas do Estado de Israel.
Hoje, 15 de novembro de 2023, já são mais de 12 mil palestinos mortos — a maioria, crianças– pelos bombardeios de Israel, inclusive a hospitais, desde 7 de outubro.
As pedras atiradas pelos palestinos contra os canhões não são assim apresentadas para não provocar a onda de revolta que a consciência humana exige.
Por quê?
O poder financeiro conta a história que lhe interessa, domina todos os meios de comunicação — do livro das primeiras letras aos sites de relacionamento, acessíveis pelos celulares.
Assim como foi feito antes em relação aos sertanejos de Antônio Conselheiro.
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte’‘, é uma das frases mais conhecidas de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
Ela inicia o terceiro capítulo da segunda parte da obra: O Homem.
Só que a ela seguem qualificativos pejorativos: desgracioso, torto, fealdade típica dos fracos, fatigado, de “extremos impulsos e apatias longas”, perigoso, de “um ódio inextinguível”.
Pronto, lá vem a desqualificação que intimida, e logo provoca a reação do medo.
E o medo incentiva, abençoa a eliminação do perigo em potencial. É como as finanças, fabricantes de guerras, mais lucram.
As finanças estão desde sempre em nossa história sob o manto da colonização.
Portugal, quando descobriu o Brasil, já estava no processo da decadência, o financismo fundiário inglês se expandia.
A partir do século 18, ao financismo fundiário acrescenta-se o financismo monetário, dos juros, do controle das emissões de dinheiro. E juntos dominaram o século 19, chegando ao Brasil com a família real, em 1808.
Se toda colonização não vê e não propagandeia senão as deficiências dos colonizados, o neoliberalismo vai ainda mais longe ao impor a globalização.
Nada do que for nacional é relevante se não for aceito no modelo global, no mercado sem fronteiras.
O mercado nacional só existe no fluxo de um sistema internacional, da cadeia produtiva que começa com a matéria prima, passa pelos financiamentos e chega ao consumidor final, que pode iniciar nova cadeia, com o produto processado/industrializado.
Como se observa, os Estados Nacionais não participam do sistema neoliberal.
Mas eles existem e são dominados pelas finanças apátridas com seus recursos de suborno, chantagem, ameaças. Não podemos nos esquecer que as finanças apátridas, beneficiadas com as desregulações da década de 1980, ingressaram no sistema e, hoje, são as que dão liquidez ao projeto neoliberal.
Como as finanças fundiárias podem gerar liquidez, quando os aluguéis nem são pagos, pela penúria geral?
Como os títulos sem lastro, que constituem centenas de trilhões de dólares estadunidenses, podem garantir pagamentos, saques de bilhões, instantaneamente?
Mas quem paga a droga a prazo? Quem suborna, chantageia, se prostitui a prestações?
As finanças marginais são as garantidoras do sistema. Assim, promoveram as crises 2008-2010 para participar da cúpula dirigente.
E quem é o derrotado?
O mesmo de sempre. O retirante da seca, o trabalhador, aquele que sempre contribui para o poder e nada recebe em troca que não seja a depreciação, o desprezo e a miséria.
A questão nacional só existe nos discursos farsantes da direita bolsonarista, que entrega aos capitais financeiros a Petrobrás, a Eletrobrás, a energia do Brasil.
Nem mesmo é mais cantado em prosa e verso o riquíssimo Brasil de todos os minerais estratégicos, da limpa energia dos inúmeros rios, do petróleo não devidamente computado do pré-sal, da imensidão das terras produtivas, florestas, aquíferos.
A cultura nacional é cópia da importada. A questão nacional morreu com a redemocratização que promoveu o ingresso das finanças no poder brasileiro.
(*) Por Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, pertenceu ao corpo permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e foi consultor da Organização das Nações Unidas (UN/DTCD).
Artigo publicado especial para o Viomundo
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