Paulo Gonet votou contra fazer justiça a Zuzu e a favor do terrorismo praticado pelo estado brasileiro. Um homem de posições firmes e inabaláveis
Foram dias dolorosos. Pedir aos que conheceram minha mãe depoimentos sobre seus hábitos, pedir aos que sabiam das ameaças que ela recebia que confirmassem a informação. Foi difícil ouvir recusas dos que, após o atentado, viram seu carro contorcido e destruído e constataram vestígio de tinta na lataria do outro carro que o empurrara pra fora do viaduto. Foi difícil ouvir não de amigos amedrontados. Foi difícil ouvir que eu não deveria mexer nisso, deveria colocar uma pedra em cima. Foi difícil ouvir escusas envergonhadas de quem não queria se envolver. Foi difícil posteriormente saber que duas dessas pessoas a quem recorri poderiam ter sido informantes dos passos de minha mãe, naquela noite, para facilitar o serviço. Mas obtive um chumaço de depoimentos preciosos, até de pessoas até a quem nada pedi e se ofereceram. Pessoas alheias à política, como as clientes de sua loja, que a viram desafiando à porta um “espia” que a seguia. Foi difícil exumar pela segunda vez os restos mortais de mamãe, para que o legista pudesse fazer seu trabalho minucioso, que, pela posição dos ferimentos na cabeça de minha mãe, pela inclinação da estrada e as marcas de pneus vistas nas fotos do inquérito policial, atestou que houve dolo, que minha mãe fora empurrada para a morte.
O ano era 1996. No dia do “julgamento” vesti-me toda de preto, embarquei para Brasília e fiquei do lado de fora da sala em que se reuniam os membros da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, aguardando sua decisão. À nossa solicitação, havíamos juntado depoimentos, havia evidências, havia um trabalho técnico realizado por um dos mais conceituados legistas, havia todo tipo de documentação. Precisei do auxílio de um advogado, dr. Luiz Roberto Nascimento Silva, um tributarista destemido. Para mim, o que valia não era a especialização mas um advogado amigo e empenhado, que me ajudasse a enfrentar a empreitada dolorosa, 20 anos depois, como Nascimento Silva demonstrou ser. Ele foi atrás dos depoimentos do inquérito policial, há anos desaparecido, e para isso contamos também com o auxílio do dr. Técio Lins e Silva. Foi atrás do original da carta enviada por mamãe a Chico Buarque, alertando que poderia ser assassinada. Luiz Roberto, sou muito grata a ele, o advogado poeta.
Em meu ostensivo luto, aguardando ansiosa, eu estava certa de que eles reconheceriam o assassinato de minha mãe. Mal consegui ficar em pé quando Luiz Roberto veio me informar que havíamos perdido. A imprensa se espremia na porta do prédio. Eram repórteres e cinegrafistas. Ao primeiro microfone em minha direção, despejei minha indignação: “Essa Comissão não quer reconhecer o que o Brasil inteiro já sabe, que Zuzu Angel foi mais uma vítima da ditadura. Não quer reconhecer a atrocidade cometida contra ela. Mas Zuzu já tem o reconhecimento dos brasileiros, todos sabem que foi um assassinato. Esses julgadores entrarão para a História como os que se recusaram a conferir a Zuzu Angel o mérito de seu heroísmo”. Bem, acho que disse isso, talvez tenha dito muito mais, ou muito menos, não sei. Fato é que, no domingo, o Fantástico abriu espaço para minha revolta e o telefone começou a tocar de todas as partes do Brasil. Pessoas até que eu não conhecia, fornecendo informações.
Os estatutos da Comissão não permitiam recurso. Mesmo assim, a presidente do Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra, o presidente da Comissão, Nilmário Miranda, e o secretário de Direitos Humanos, José Gregori, me pediram que apresentasse um recurso. Eles também estavam chocados com a negativa. Eu hesitei, não queria. Se não podia haver recurso, não haveria, respondi, numa teimosia irritada, revoltada. Dr. Luiz Roberto também era a favor de recorrermos, acabei capitulando. Foi então que houve a tal “conspiração do universo”. Num jantar, o ex-governador da Paraíba, Milton Cabral, político da Arena, relatou que um jornal da Paraíba publicou uma “Carta aberta a Hildegard Angel”, em que contava ter assistido ao acidente, junto com um amigo. Ambos estudavam na PUC, no Rio, e moravam no único prédio de São Conrado, na época, próximo à saída do túnel. Testemunharam o “acidente”, com o carro de mamãe projetado em voo rasante sobre o viaduto, até o chão, empurrado por outro carro. Correram para o local, onde chegaram em três minutos, e encontraram todo o “cenário” armado: rabecão (o único que havia no Rio), ambulância, um carro da imprensa. Em três minutos, alta madrugada, num tempo (1976) em que basicamente quem vivia em São Conrado eram os moradores da Rocinha e os das casas da Rua Capuri. A “Carta aberta” do jornal foi encaminhado à Comissão, junto com o recurso.
Fui informada também que o filho de um ex-ministro da ditadura contara no Hippopotamus ter presenciado a perseguição ao Karman Ghia azul claro de Zuzu, e a forma como ela fora empurrada para a morte. Ele passava na estrada, retornando da boate para sua casa na Barra da Tijuca. Eu o conhecia. Pedi, insisti, implorei por um depoimento escrito. Ele enfim fez a carta, que anexamos ao recurso. Dias depois, ele enviou uma carta diretamente à Comissão, desdizendo tudo o que disse. Havia sido demovido de se envolver por um amigo de seu falecido pai. Até entendo o gesto desse rapaz. Depois de sua confidência sobre o que testemunhou, feita aos amigos de copo no nightclub, ele sofreu um acidente no mesmo trajeto de Zuzu, e escapou da morte por um triz. Teria sido um acidente ou um “acidente”, como foi o de minha mãe?
Foi marcada uma nova reunião da Comissão para analisar o recurso do Caso Zuzu. Havia um fato novo perturbador. O relator Miguel Reale Jr., que na primeira vez votara contra o pleito da família, viajou sigilosamente para a Paraíba e se entrevistou com as testemunhas – um conhecido jornalista local e um grande advogado. Foi feita uma investigação para conferir os testemunhos, e todos os pontos bateram. Foi refeito o trajeto dos então dois jovens estudantes da PUC, tomando uma cervejinha na varanda do apartamento, até o local da emboscada. E o relógio bateu exatamente três minutos, entre sair de casa, descer de elevador, e chegar até lá correndo. Assim como fotos da imprensa na época, inclusive da Imprensa Nacional, exibiam o cenário descrito por eles, com aquelas mesmas viaturas. Foi feita uma nova perícia, a exemplo da anterior, desta vez encomendada, não pela família, mas pela própria Comissão. Uma noite, à hora do jantar, sou chamada ao telefone para falar com o jornalista Mario Magalhães, da Folha, que eu não conhecia. Ele informa, em primeira mão, que no dia seguinte o jornal publicaria reportagem sua sobre a investigação sigilosa do relator Miguel Reale Jr, por sinal também advogado do jornal. Estava esclarecido, provado e documentado o assassinato de Zuzu Angel por agentes do estado.
Vejo-me, como cidadã brasileira, na obrigação de, nesta hora, fazer esse relato. Não é um relato pessoal. Ele atinge todos nós, num país que não anistia seus malfeitores do passado. Segundo o agente do DOPS Claudio Guerra, em seu livro e em depoimento à Comissão da Verdade, a ordem para eliminar Zuzu Angel partiu do próprio gabinete do presidente Geisel. A missão foi conferida ao coronel Fredy Perdigão, a quem cabia esse tipo de serviço altamente especializado de eliminar inimigos do regime de forma a que parecesse mera fatalidade. Foi em 1976, mesmo ano em que a “fatalidade” levou Vladimir Herzog, “enforcado” numa cela; levou Juscelino Kubitscheck, num pretenso acidente de carro na estrada, um dia após circular boato aflitivo em Brasília de que JK morrera num desastre – a notícia chegou antes do fato!…
Naquele mesmo ano, João Goulart morreu, e ainda há suposições de que tenha sido envenenado.
Por que volto ao assunto, sempre tão doído? Porque O Globo apurou ontem que o candidato a nosso futuro Procurador Geral da República, Paulo Gonet, membro da já extinta Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, votou em 1996 contra o reconhecimento do assassinato de Zuzu Angel. Mesmo com depoimentos, com documentos, com duas perícias, com duas testemunhas oculares…
Paulo Gonet votou contra fazer justiça a Zuzu e a favor do terrorismo praticado pelo estado brasileiro. Um homem de posições firmes e inabaláveis.
Quem é essa Zuzu? “Angélica”, canção de Chico Buarque dedicada a ela, conta. E canta.
(*) Por Hildegard Angel, jornalista, ex-atriz, filha da estilista Zuzu Angel e irmã do militante político Stuart Angel Jones.
Artigo publicado, originalmente, na coluna de Hildegard Angel no site Brasil 247.
Foto da capa: Paulo Gonet e Zuzu Angel (Foto: STF | Reprodução)
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