Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o que fez a Bolívia se tornar a economia sul-americana com mais rápida expansão, onde o percentual de pessoas que vive na pobreza extrema despencou de 63% para 35% entre 2005 e 2018.
A Bolívia é a economia com mais rápida expansão na América do Sul. Em 2023, o país cresceu 3,1%, superando as projeções do Banco Mundial, que em outubro estimavam a expansão de 1,9%.
O presidente boliviano, Luis Arce, e o ministro do Planejamento e do Desenvolvimento boliviano, Sergio Cusicanqui, celebraram o resultado.
“Atingimos um crescimento de 3,1% em 2023. Esse crescimento é maior do que o que o Fundo Monetário Internacional [FMI] e o Banco Mundial previam para a nossa economia. Estamos sempre muito à frente do que preveem os organismos internacionais”, afirmou Arce em 5 maio deste ano, em evento comemorativo dos 88 anos da Confederação Sindical dos Motoristas da Bolívia.
“Mais uma vez decepcionamos as organizações internacionais e superamos as suas previsões de crescimento”, disse Cusicanqui em uma coletiva a jornalistas em 6 de maio.
A Bolívia mantém um crescimento anual do produto interno bruto (PIB) que gira em torno de 5%, expansão que teve início no primeiro governo de Evo Morales, em 2006. Ademais, segundo dados do Banco Mundial, o percentual da população que vive em pobreza extrema na Bolívia despencou de 63% para 35% entre 2005 e 2018.
Esse crescimento vem sendo notado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que vem estreitando laços com o governo Arce e, em discurso no Fórum Empresarial Bolívia, em Santa Cruz de La Sierra, exaltou a expansão econômica do país.
“Nossos países são a prova de que é possível crescer com distribuição de renda sem abrir mão de direitos. A Bolívia quintuplicou seu PIB entre 2005 e 2023. E a renda per capita quase quadruplicou”, disse Lula.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam o que pavimentou a expansão econômica da Bolívia e analisam o cenário interno do país.
O que viabilizou a ascensão econômica da Bolívia?
Para Clayton Pegoraro, professor do Programa de Mestrado Profissional em Economia e Mercados da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a ascensão econômica da Bolívia está ligada mais a um contexto internacional do que interno, embora a Bolívia venha investindo em recursos públicos para o desenvolvimento do país.
“É recurso externo, eu diria que uma grande parte dos recursos externos [vem] principalmente da questão do petróleo, e também do ponto de vista da distribuição de recursos internos e investimentos estatais. A variação do petróleo sempre ajuda a Bolívia nesse sentido de aumentar ou diminuir a sua participação internacional. O principal produto dele [do país] são os hidrocarbonetos”, afirma.
Por sua vez, Hugo Albuquerque, jurista e editor da Autonomia Literária, afirma que a expansão da economia boliviana ocorreu “porque o primeiro governo do MAS [Movimento ao Socialismo], com Evo Morales e [Álvaro] Garcia Linera, foi o primeiro governo [pró-boliviano] propriamente dito de toda a história da Bolívia, que é um país que tem grande maioria indígena, e os indígenas sempre foram excluídos do jogo político”.
“Então a Bolívia sempre viveu fruto de uma economia exploratória, extrativista, onde a maior parte da população não existia enquanto atores políticos. Essa maioria acabou se organizando em torno do MAS, e o MAS fez o primeiro governo de todo o povo da história da Bolívia, o que resultou em uma melhoria econômica, causada por uma melhoria institucional”, enfatiza.
Ele acrescenta que, a partir da ascensão do MAS, o país cresceu por meio de reformas moderadas, estabilizou a inflação, manteve a moeda forte e fez políticas de desenvolvimento.
“Ainda que o eixo principal da economia boliviana seja o extrativismo mineral, ela estimula outros ramos da economia e hoje em dia mira na reindustrialização do país.”
Como o Sul Global contribui para a ascensão da Bolívia?
Pegoraro sublinha que, no contexto de expansão econômica, a aliança do Sul Global se torna muito importante, sobretudo no que diz respeito a acordos de cooperação entre os países, do ponto de vista tecnológico e do ponto de vista de troca de informações regionais.
“A regionalização é muito importante nesse sentido. Então os países buscam melhor adequação de suas vontades, do direcionamento do que é melhor para a aliança. Isso é muito importante, mas principalmente a questão diplomática, a troca de informações entre os países e a negociação com outros blocos também maiores. […] essa aliança do Sul Global demonstra a força dos países em detrimento a grandes potências do Norte do globo. Vamos aí demonstrando o que podemos e o que somos capazes de desenvolver.”
Já Albuquerque avalia que “a Bolívia, primeiramente, fez uma aliança com os países da América do Sul e usou isso como porta para um diálogo amplo com o BRICS e com todo o ecossistema do BRICS”.
“É óbvio que é um projeto do MAS e de todos aqueles que defendem um projeto nacional e popular para a Bolívia, que ela se integre à economia mundial pelo caminho do Sul Global. Então o BRICS necessariamente acaba sendo um instrumento fundamental para isso, e a Bolívia tem intensificado essa relação.”
A quem o crescimento da Bolívia pode incomodar?
Questionado se a ascensão boliviana poderia causar incômodo em outros países, Pegoraro destaca que, no recorte do Cone Sul, não há incômodo. Pelo contrário, ele afirma que a expansão reflete o fortalecimento da região e de seus parceiros.
“A Bolívia tem uma parceria com o Brasil, parceria comercial. Não é das maiores, mas isso pode fortalecer eventuais parcerias, com o Brasil e outros países também da região Sul. Não vejo como problema um crescimento da Bolívia. Pelo contrário, isso demonstra a força e a capacidade de um vizinho nosso em aumentar o PIB e, por conta disso, aumentar os fluxos de capitais e de investimentos internacionais.”
Albuquerque, por sua vez, analisa que, em um recorte mais amplo, a Bolívia incomoda quando toma para si o controle sobre suas riquezas, sobretudo o lítio.
“A Bolívia naturalmente incomoda quando o Estado boliviano assume o controle do lítio, que hoje em dia é o principal mineral que o país explora e serve como insumo para as baterias, sobretudo dos carros elétricos, e o Estado assume que não vai ser uma exploração como sempre foi na Bolívia, como é na África, como tem mudado na África. Aliás, e que vai precisar ter algum marco legal, alguma regra de partilha e de entrada de atores internacionais para a exploração do lítio na Bolívia. Então naturalmente são esses setores que ficam incomodados com o governo do MAS e que gostariam de um governo de outra ordem.”
Por que a Bolívia vivenciou uma tentativa de golpe em um momento de ascensão?
Recentemente, a Bolívia passou por uma fracassada tentativa de golpe de Estado, perpetrada pelo agora ex-chefe do Exército Juan José Zúñiga. O episódio aprofundou a divisão entre Morales e o atual presidente boliviano, Luis Arce, a quem Morales acusa de tentar um autogolpe para elevar sua popularidade, e expôs o racha dentro do MAS e uma disputa de poder entre Arce e Morales a um ano das eleições presidenciais.
Questionados sobre o episódio e seus impactos políticos, os especialistas divergem. Pegoraro afirma considerar o episódio “uma coisa mais midiática do que golpista”.
“Isso claro que vai ser explorado politicamente por todos os candidatos que vierem a disputar essa eleição. Todos acabam disputando esse cenário, que expõe uma divisão entre esquerda e direita, para tentar sair com algum fortalecimento. […] outros países do mundo utilizarão cenas, reportagens, declarações para tentar enfraquecer ou fortalecer um lado ou outro em uma eleição que será bem polarizada, como está demonstrado em todo o Cone Sul.”
Albuquerque sublinha que, “apesar do crescimento da Bolívia, há um momento de instabilidade econômica causada pela sobrevalorização do dólar, o inflacionamento do dólar no mercado internacional causado pelo aumento da taxa de juros americana”.
Ele lembra que o Sistema de Reserva Federal dos EUA (FED, na sigla em inglês), o banco central americano, aumentou a taxa de juros para conter a inflação causada pelo cenário na Ucrânia, fruto da decisão do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
“Houve um confronto na Ucrânia. Isso aumentou o preço do petróleo internacionalmente e, como consequência, a inflação em toda parte. Então os EUA se defendem aumentando a taxa de juros e reduzem o preço do barril, contêm o preço do barril de petróleo. Isso gera, por outro lado, escassez de dólares, porque os Estados Unidos passam a atrair os dólares internacionais em profusão para si. Então os dólares no mundo começam a voltar para os EUA, e isso ataca uma economia como a Bolívia que, embora não seja dolarizada totalmente, tem um papel do dólar ali.”
O especialista acrescenta que, do outro lado, “há um problema que o MAS, o partido hegemônico da Bolívia, não conseguiu resolver, que é a questão militar”.
“O Exército boliviano sempre foi uma máquina a serviço desse Estado de brancos voltado à economia do extrativismo. Portanto, o Exército boliviano foi construído sob marcos antipopulares, por isso é uma máquina golpista. E, atualmente, a Bolívia, com tudo isso [crescimento econômico] que aconteceu lá, no entanto, convive com as Forças Armadas que são antipopulares e golpistas, e que as reformas que foram aplicadas ao longo dos governos de Evo Morales e agora de Luis Arce não ajudam [esse setor].”
Para piorar, segundo Alburquerque, há um racha no MAS que acaba de um lado sendo representado por Morales, que afirma ter ficado deslocado do governo Arce após ter consentido com sua ascensão à presidência.
“Basicamente, Lucho Arce, que ganha a eleição e que foi o homem forte da economia de Evo Morales durante muito tempo, governa com seu grupo e é partidário de uma visão de que a Bolívia deve caminhar mais devagar para não incomodar a burguesia nacional. De um lado, há uma tensão da burguesia nacional contra setores mais esquerdistas e, [do outro lado], há a necessidade popular que muitas vezes reclama por um avanço social mais veloz para transformar esse crescimento econômico boliviano em utilidade social em um espaço de tempo menor. No fim, essa tensão, que é real, independe das lideranças e existe no interior do MAS, e acaba representada justamente pelo atual presidente e pelo ex-presidente”, conclui.
(*) Por Melissa Rocha – Sputnik Brasil