Mediado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um novo acordo envolvendo o maior desastre ambiental do Brasil está na mesa de quase 20 partes neste momento. Em novembro, o rompimento da barragem de Mariana, de propriedade das mineradoras Samarco, Vale e BHP, completa 6 anos.
O CNJ, as empresas, os Ministérios Públicos, Defensorias e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo querem, agora, resolver em 120 dias questões complexas que seguem sem solução até o momento.
A carta de premissas, lançada na última sexta-feira, é amplamente favorável às mineradoras. Para abrir essa negociação, Vale e BHP conseguiram suspender três processos: a Ação Civil Pública do MPF que pede R$ 155 bilhões, o pedido de extinção da Fundação Renova, criada para reparar o desastre e o processo contra a Renova por publicidade indevida.
Nenhuma contrapartida razoável foi pedida. O “Sistema Indenizatório Simplificado”, surgido no meio da pandemia em 2020, que se espalhou pelas cidades da bacia do Rio Doce e que contou com a orientação do juiz federal responsável pelo caso, Mário de Paula Franco Júnior, segue em andamento.
Matérias exclusivas divulgadas no Observatório da Mineração mostraram vídeos de Mário de Paula orientando advogados de supostas comissões de atingidos no Espírito Santo, o que é vedado pelo Código de Processo Civil. As matérias serviram de base para um pedido de suspeição do juiz feito por MP’s e Defensorias, que segue pendente de julgamento pelo plenário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Para aderir ao sistema, com valores definidos de forma aleatória, o atingido precisa abrir mão de todos os seus direitos. Dar quitação total para Vale e BHP e renunciar a eventuais ações no Brasil e no exterior. Até agora, a Fundação Renova já pagou R$ 1,6 bilhão por esse sistema.
Advogados, muitos deles orientados pelo juiz, embolsaram R$ 160 milhões, considerando os 10% que Mário de Paula determinou como comissão. Mas há vários casos de advogados fechando acordos por fora, levando até 30% da indenização de cada atingido.
Nenhuma instituição procurada soube explicar exatamente porque não foi pedida a suspensão desse sistema indenizatório, tão duramente questionado pelo MPF. De acordo com Carlos Bruno Ferreira, novo coordenador da Força-Tarefa Rio Doce que assumiu o cargo em junho, a suspensão não aconteceu porque, pelo menos para o MPF, procurou-se respeitar a autonomia das pessoas que julgam ser esta uma via aceitável.
E a ideia é que, em 120 dias, as partes cheguem a uma solução definitiva. O MPF, no entanto, não só pediu a suspeição do juiz, como entrou com vários recursos contra esse sistema desde que ele surgiu.
Para o MPF, trata-se de um modelo de indenização ilegítimo, com valores mínimos, que lesam a grande maioria dos atingidos, com pedidos formados por Comissões que surgiram da noite para o dia, inclusive com assinaturas falsificadas, e que não podem impor as suas decisões – em reuniões fechadas com o juiz – à maioria.
Em uma das reuniões, Mário de Paula inclusive chega a dizer que “é preciso separar as lideranças” entre “as boas e más”. As boas seriam aquelas que não questionam o sistema. As más são os atingidos que discordam do modelo e lutam por seus direitos.
Juiz suspeito inicia a nova negociação
O próprio fato de Mário de Paula ter articulado a mediação do CNJ é questionável. Afinal, Mário é considerado parcial no processo e não deveria mais atuar no caso, de acordo com pedido dos Ministérios Públicos Federal, de MG, do ES e das Defensorias da União e dos dois estados. Em carta, mais de 140 juristas e instituições também defenderam a suspeição do juiz.
Procurado para comentar, o CNJ se absteve. O Conselho Nacional de Justiça afirmou somente que, “no papel de conciliador, o CNJ não emite juízo de valor e atua para que as partes envolvidas consensuem as melhores condições para que o acordo seja frutífero e garanta as devidas reparações às pessoas atingidas pelo desastre”.
O juiz Mário de Paula, em nota, disse que “não se manifesta sobre processo em andamento”.
Segundo Carlos Bruno, do MPF, Mário de Paula não participa diretamente da mesa de negociação e teve o papel apenas de pedir a mediação do CNJ, já que seria “absolutamente inadequado” que o juiz participasse das negociações.
Na terça (27), um tribunal de Londres aceitou reabrir o processo movido na Inglaterra contra a BHP por Mariana, no valor de R$ 35 bilhões e representando mais de 200 mil pessoas e instituições no Brasil. Essa reviravolta deve impactar diretamente as negociações em curso.
Foto de destaque: Isis Medeiros
Assista ao vídeo sobre a matéria:
R$ 100 bilhões e grupos distintos
Na semana passada, Reuters e Valor Econômico divulgaram matérias afirmando que o governo de Minas Gerais teria pedido R$ 100 bilhões para Vale e BHP e que isso teria causado “surpresa” nas mineradoras.
Minha apuração mostra que não é exatamente assim. De fato, essa “antecipação” de valores pegou a muitos de surpresa e não foi tratada oficialmente. O essencial, porém, é que isso indica a formação de grupos distintos na mesa, colocando Romeu Zema (Novo), governador de Minas Gerais, as empresas e parte do judiciário de um lado e MP’s, Defensorias e os demais no outro.
As premissas preveem total “transparência” entre as partes. Mas não é isso o que está acontecendo. O governo do Espírito Santo, por exemplo, não aceitaria ficar com R$ 20 bilhões desse montante, considerando que foi tão ou mais atingido que Minas Gerais em termos de pessoas e de impactos ambientais no rio e no mar.
Fontes ouvidas por mim que preferiram ficar em off no mínimo estranharam essas divulgações e afirmam um desconforto em constatar que negociações paralelas estão ocorrendo.
A ACP de 2016 pede R$ 155 bilhões em reparação, e serve de referência. Para Carlos Bruno, do MPF, os valores precisam ser baseados em “estudos técnicos”. Muitos foram feitos nesses 6 anos, sobretudo envolvendo a qualidade da água do Rio Doce e do mar.
A Renova e as mineradoras insistem em afirmar que o rio foi recuperado e tudo está bem. As pessoas atingidas, com a pesca proibida, agricultura duramente afetada e o seu modo de vida e renda comprometido, afirmam o oposto.
Foi justamente por anunciar em vários veículos de mídia essa “boa qualidade da água”que a Renova foi processada pelos Ministérios Públicos e Defensorias, que alegaram propaganda enganosa e abusiva. Ação essa que agora está suspensa enquanto durar a mesa de negociação. No UOL: 6 anos após Mariana, Samarco, MPF, Justiça e estados discutem novo acordo
Recentemente, o governo de Minas assinou um acordo com a Vale de R$ 37 bilhões por Brumadinho, incluindo um desconto generoso no valor inicial pedido de R$ 54 bilhões e outro desconto por já considerar incluído R$ 6,2 bilhões pagos pela Vale. O fato de que boa parte do dinheiro, mais de 70%, será distribuído para todo o estado e para obras públicas que podem favorecer a reeleição de Romeu Zema é alvo de críticas.
Em nota, o governo de Minas me confirmou que tem a ACP de 2016 como base, mas que “não fez nenhuma definição relativa a valores que, como ocorreu no Termo de Medidas de Reparação relativo à Brumadinho, só ocorrerá por meio das tratativas que incluem todos os atores envolvidos e que já se iniciaram, abordando, antes de valores, a governança e outros aspectos que garantam efetividade e celeridade à reparação”.
De acordo com o governo Zema, “o propósito do governo de Minas, ao lado desses outros atores e espelhado no modelo positivo do Termos de Brumadinho, é, a partir dessa articulação ampla, com a participação de todas as partes envolvidas e atingidas, tornar mais efetivo, célere e justo esse processo de reparação”.
Assessorias técnicas paralisadas
Enquanto isso, as assessorias técnicas previstas na repactuação do acordo em 2018 não foram contratadas porque as mineradoras alegaram “custo muito alto” e Mário de Paula não decide nada sobre isso desde junho de 2020, o que foi lembrado pela própria Fundação Renova em nota enviada a esta reportagem.
O objetivo de contratar essas instituições é justamente para que pudessem assessorar os atingidos a buscar os seus direitos com um suporte técnico, direto, sem que as pessoas afetadas pelo rompimento da barragem fossem duplamente prejudicadas.
Até o momento, foram contratadas assessorias técnicas apenas para 5 territórios, restando a contratação de 16 assessorias. Quase 70% das regiões previstas continuaram sem contratação enquanto o novo sistema indenizatório avançou pelo Rio Doce.
Foram contratadas somente a Cáritas, em Mariana, a Aedas em Barra Longa, a Rosa Fortini para o Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Chopotó, a Asperqd para o Território Quilombola de Degredo e o Ipaz para o Território Indígena de Resplendor. Este último contrato, no entanto, foi suspenso.
De acordo com Carlos Bruno, resolver a pendência das assessorias “é uma prioridade de todos os órgãos na negociação”, mas “especialmente do Ministério Público e das Defensorias”.
O ideal, acredita o coordenador da FT Rio Doce, é que isso seja tratado logo agora no início das negociações e que as assessorias sejam contratadas o quanto antes. “Todos concordam que é um tema importante que tem que ser resolvido. Espero que logo encontremos uma solução adequada com um plano de trabalho e em valores aceitos por todos”, disse.
Mineradoras seguem o mesmo tom
A Vale se negou a responder as perguntas específicas da reportagem e se limitou a enviar comunicados ao mercado sobre as negociações, afirmando que “permanece empenhada e comprometida com o processo de mediação no Conselho Nacional de Justiça e espera que a repactuação dos programas produza soluções definitivas, eficientes, céleres e objetivas para sanar as eventuais controvérsias técnicas de difícil solução”.
A BHP seguiu a mesma linha e disse que “apoia o processo de renegociação que está sendo realizado pelo CNJ e está absolutamente comprometida com as ações de reparação”. A Samarco disse que, “nesse momento, após definição de princípios do processo de repactuação, as discussões concentram-se nos programas de reparação, e não em seus respectivos custos”.
A Fundação Renova afirmou que “a carta de princípios assegura que a discussão de repactuação não implica paralisação, suspensão ou descontinuidade de quaisquer programas ou projetos atualmente em desenvolvimento”.
A Defensoria Pública da União e o STJ disseram que ficariam com a resposta do CNJ. O MPMG afirmou que a agenda do Procurador-Geral de Justiça, Jarbas Soares Junior, está lotada no momento. As Defensorias do Espírito Santo e de Minas Gerais e o governo do Espírito Santo não retornaram.
(*) Por Maurício Angelo
Reportagem publicada, originalmente, no site Observatório da Mineração