A História do Brasil é uma história de servidão. De tal modo penetrada na alma do povo que os movimentos autonomistas, libertadores sempre tiveram forte oposição, descaracterização, até serem derrotados. As principais forças, excluídas as econômicas, foram da religião e das armas. Esta sina que nos assombra hoje, quando a capacidade individual cai a tal ponto que o jornal mais reacionário e antinacional, O Globo, do Rio de Janeiro, chega a comparar a quantidade de discursos e de palavras dos parlamentares. Exatamente aqueles que devem usar a palavra para convencer e vencer as disputas.
Há quatro décadas o Brasil retrocede em tudo, ou quase tudo, pelo domínio absoluto do mercado financeiro, ou seja, do ganho máximo e mais rápido, sem perspectivas do amanhã, seja para a construção, que nem se pensa, seja para um novo ganho que nem se dá conta.
Há alguns anos, um político antinacional e agressivo, deputado pelo Rio de Janeiro, Carlos de Lacerda, escreveu um livro – hoje façanha quase impossível para os parlamentares que não sejam professores de profissão – com título “O Poder das Ideias”, que seus opositores ilustraram com revólveres cruzados.
Ideias, pensamentos, mesmo não sendo originais, não frequentavam os debates de Lacerda e de praticamente qualquer parlamentar no congresso que era, entretanto, muito mais instruído do que o atual.
A primeira escravidão brasileira deu-se pela religião. Para aqui chegaram os jesuítas com o propósito garantido pelos descobridores de se incumbirem de tudo que não fosse a defesa do território e da segurança do poder público e dos aliados dos colonizadores. E a primeira dominação foi do pensamento dos habitantes naturais do Brasil e daqueles importados da África, do que resultaram muitas mortes.
Tal situação perdurou de 1549 até 1889, ou seja, 340 anos. A partir de então passamos a ter o poder militar cerceando a sociedade, o que ainda hoje assistimos, ou seja, há 135 anos.
Deste modo não conseguimos, fora o governo de Getúlio Vargas, que, em acordo com as forças armadas, construiu um país civil, com instituições nacionais, próprias para nosso território, de defesa das riquezas naturais e como resultado da miscigenação dos habitantes: Ministérios da Educação e Saúde e do Trabalho, Indústria e Comércio, (1930), Departamento de Correios e Telégrafos e Instituto do Açúcar e do Álcool (1933), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1934), Conselho Nacional de Petróleo e Departamento Administrativo do Setor Público (1938), Ministério da Aeronáutica e Companhia Siderúrgica Nacional (1941), Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a Consolidação das Leis do Trabalho (1943).
Paralelamente, com a colaboração do maior compositor das Américas, maestro Heitor Villa Lobos, descriminalizou o samba e a capoeira e promoveu a música brasileira pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (1939) e o Canto Orfeônico introduzido nos currículos escolares.
Os marxistas procuram ver a luta de capital e trabalho. Há alguma razão, pois ela efetivamente ocorre, porém antes desta luta está a formação da cultura que traduzirá aspectos desta luta. E a construção da sociedade, exceto durante o período Vargas, pouco atentou para suas bases.
Mefistófeles falava para o Doutor Fausto que as palavras são mais necessárias quando faltam as ideias. Parece que estava vendo o mundo neoliberal que se formou a partir de 1980 e vem destruindo o mundo ocidental.
O iluminista alemão Emanuel Kant (1724-1804), em ensaio de 1793, dizia a respeito de direitos naturais: “podem estar certos na teoria, mas, na prática, não servem”. Tal qual a “mão invisível” que orienta as decisões de Estado e judiciais para os interesses dos poderosos, principalmente aqueles que atuam por interpostas pessoas, como o capital financeiro, ativo nos dias de hoje pelas ações dos gestores de ativos, residentes em paraísos fiscais.
O Brasil, em seu atraso, ainda dá força ao capital fundiário, o agro que nada tem de popular.
“Observa-se ainda que, embora existam muitos estudos sobre as lutas camponesas, ou mesmo sobre a atuação das empresas capitalistas no campo, poucas são as reflexões que apontam as estratégias mais diretas dos proprietários fundiários – extratores da renda da terra no campo brasileiro, seus interesses, suas alianças de classe e tentativas de enfraquecer a luta pela terra camponesa. Ressalta-se ainda a expansão do poder dessa classe, seja em ações diretas no campo (a exemplo da difusão da prática da violência como forma de sustentar a grilagem e a propriedade privada sobre a terra, sobretudo via milícias privadas), seja via ação política (como a expansão da bancada ruralista no Congresso e Senado Federal e o desenvolvimento de diversos projetos que sustentam seus interesses imediatos), o que demonstra a relevância em se refletir sobre essa classe e o controle sobre a terra que ela exerce na atualidade, bem como suas estratégias para auferir maiores rendas” (Suzane Tosta Souza, Jânio Roberto Diniz dos Santos e Sócrates Oliveira Menezes, “Renda da Terra: Conceito Central para os Estudos em Geografia Agrária”, Revista Pegada – vol. 20. n.1, Janeiro-Abril/2019).
POSITIVISMO, NACIONALISMO E NEOLIBERALISMO
Embora Auguste Comte (1798-1857) visse denominado seu positivismo de “Religião da Humanidade”, este pensamento era laico e, no entender do criador, baseado nas ciências.
O positivismo tomou as forças armadas brasileiras no fim do século XIX, e os políticos gaúchos, dentre eles Júlio de Castilhos, presidente do Rio Grande do Sul por duas vezes e principal autor da Constituição Estadual de 1891.
Foi forte a influência positivista no início da República, levada pelos militares, políticos gaúchos e parcela intelectual fluminense. Combatida pelos agricultores paulistas, mineiros e proprietários do vale do Paraíba triunfou com a presidência de Prudente de Moraes e do “café com leite” que entremeava, conforme articulação de Campos Sales, políticos paulistas e mineiros na direção do Brasil, sob a orientação dos banqueiros ingleses. Esta associação derrubou Floriano Peixoto e governou o Brasil de 1894 a 1930.
Duas características a identificavam com o período monárquico, a ausência do Estado nas atividades de constituição da cidadania: ensino, saúde, habitação e garantia de direitos, e a presença da religião, à época católica.
No neoliberalismo deste século XXI, repete-se a ação do Estado da República Velha, daí seus dirigentes, desde 1990 até hoje, em algum momento, terem criticado a Era Vargas e suas iniciativas. Há um verdadeiro interesse neste atraso, que se manifesta na instrução, na comunicação e no desenvolvimento tecnológico. E mistificado pelas ações de conteúdo identitário, ministérios para mulheres, negros e índios, índios e mulatos na Academia Brasileira de Letras (ABL) que passou a ser um segmento do Grupo Globo de Comunicações.
A Era Vargas tem início em 1930 e perdura, com os períodos oposicionistas de Eurico Dutra (1946-1951), Jânio Quadros (1961) e Castelo Branco (1964-1967) e alguns interregnos, até 1979, quando assume a Presidência o filho do militar que conduziu o golpe sem sucesso de 1932, midiaticamente denominado “Revolução Constitucionalista de São Paulo”. Como escreveu Alzira Vargas do Amaral Peixoto (“Getúlio Vargas, meu Pai”, 1960): não era revolução, era uma represália; não era constitucionalista, era para perturbar a Constituição em formação, nem era paulista pois “era feita dos grãos de ódio de todos reacionários, de todos os tempos, de todos os Estados”.
Pode-se afirmar que a Era Vargas, com os assinalados períodos de exceção, foi o momento nacionalista da História do Brasil.
Vive o Brasil, desde 1980, a mistificação neoliberal, com a comunicação digital importada. O recente caso antagonizando o Supremo Tribunal Federal (STF) e o empresário de sistemas digitais e outras iniciativas tecnológicas, o sul-africano-canadense naturalizado estadunidense, Elon Reeve Musk, a quem a revista Forbes atribui a fortuna de US$ 239,3 bilhões (2024), é mais outra amostra da sujeição nacional ao capital internacional.
Não seria surpreendente ver a família do Imperador Pedro II reivindicar o poder, tais são as semelhanças do que ocorre no Brasil de 2024 com o de 1888, até a escravidão que hoje tem o nome de MEI (microempreendedor individual) ou uber.
Voltamos ao período pré-industrial, com estreitamento do público em benefício do privado, o que faz florescer a riqueza financeira e regredir os direitos trabalhistas. Apenas com desenvolvimento das comunicações digitais que condicionam as ideias pela avalanche de desinformações e notícias falsas. Ficamos, senão mais ignorantes, menos instruídos.
A sociedade é um conjunto restrito de pessoas sem mérito nem moral, com a função de dirigente garantida pelo exterior, que se impõe a golpe de lei ou de sabre.
E O MUNDO LÁ FORA?
Houve um momento em que o público e o privado se associaram para desenvolver com maior rapidez a sociedade que crescia. Hoje confundem-se as estatísticas para que não seja nítido este crescimento demográfico. Apela-se para um período de guerra na Europa, para mudanças na sociedade chinesa, de modo que se pense, para o Brasil, ser a demografia linha auxiliar do mercado.
A distinção ocidente e oriente parece repetir a Idade Média. Fechada no poder territorial da Igreja Católica e dos barões, a idade média europeia estagnava, enquanto a China desenvolvia novas tecnologias. O pensamento pacífico de Confúcio, ainda hoje influente, possibilitou a Europa se apoderar das criações chinesas e conquistar as Américas, a África promovendo sua riqueza e ampliando sua área de conquista.
Com o poder europeu surge o poder da guerra, que será também o poder de sua colônia do norte da América: os Estados Unidos da América (EUA), com a ideologia de conquista do continente enunciada pela Doutrina Monroe (1823), em plena vigência no Brasil, como deixou claro a General estadunidense Laura J. Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, que veio criticar o relacionamento brasileiro com a China. Também a embaixadora dos EUA na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda Thomas-Greenfield, vem manifestar sua inconformidade com a aproximação do Brasil com a China. Doutrina Monroe hoje mais voltada para China do que para Europa, quando foi enunciada.
Os EUA, mesmo com o incentivo estatal para o complexo industrial-militar e a manutenção de guerras e estabelecimentos bélicos distribuídos por todos os continentes, não suportam a crise que as finanças provocam. A Europa sofre a orientação estadunidense para manter a campanha contra a Rússia e vê na energia a falta e o custo incompatível com as necessidades. O Oriente Médio, desde a conquista do quisto israelita pelo Reino Unido, após a II Grande Guerra, não conheceu um momento de paz. Também o rico norte da África teve seus governos nacionalistas, do Iraque e da Líbia, substituídos por Dirigentes de empresas (CEO) para se apropriarem das imensas reservas de petróleo em favor das companhias e não dos habitantes locais.
O extraordinário desenvolvimento industrial e tecnológico da China faz com que a guerra contra China esteja absorvendo grande parte do orçamento estadunidense.
Rússia e China ganham a confiança e parceria dos povos africanos, com se constata nas recentes iniciativas do Níger, Mali, Burquina Faso, entre outros países africanos.
O mundo se divide em unipolar com o decadente dólar estadunidense e multipolar com as moedas nacionais e a articulação da nova rota da seda (Iniciativa do Cinturão e Rota – BRI, na sigla em inglês) e da Organização para Cooperação de Xangai (OCX).
Mas, como a importante contribuição do Movimento dos Sem Terra (MST) para a agricultura familiar, de subsistência, não aparece na comunicação hegemônica, também os benefícios da OCX e do BRI não frequentam a tela da Globo, nem da Bandeirantes e muito menos da neopentecostal Record.
A religião do século XIX, neste século XXI virou um banco de pix e outras moedas tão falsas quanto a crença dos seus bispos e pastores políticos.
O Brasil precisa ter novamente a convicção de que pode construir com sua cultura e seus recursos um país para seus habitantes, sem ideologias neoliberais ou outras importadas.
E que as Forças Armadas precisam estudar primeiro o Brasil e as ciências que lhes permitam desenvolver tecnologias sem pagar royalties e terem operação e manutenção avançadas e nacionais.
Não há esquerda e direita, há nacional e estrangeiro, soberano ou escravo.
(*)Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.