O governo brasileiro, por meio dos ministérios da Agricultura e Relações Exteriores, enviou uma carta às autoridades da União Europeia pedindo que o bloco adie a implementação de sua lei antidesmatamento. Especialistas consultados pela Sputnik Brasil revelam o prejuízo que a legislação trará ao Brasil e as supostas motivações por trás da regulação.
Em junho de 2023, a União Europeia (UE) publicou o Regulamento Antidesflorestamento, também conhecido pela sigla EUDR (European Union Deforestation Regulation). A nova legislação proíbe a importação de sete commodities que tenham origem em áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020: borracha, gado, cacau, café, soja, palma e madeira.
Também ficam proibidas as importações de derivados desses produtos, como chocolates, no caso do cacau, e móveis, papel e celulose, no caso da madeira, e até mesmo vários alimentos industrializados no caso do óleo de palma.
Prevista para entrar em vigor já em janeiro de 2025, a lei europeia foi intensamente criticada por países exportadores à UE, que terão apenas 18 meses para se adaptar à nova legislação. Os únicos que ganharam um pouco mais de tempo para se adaptar foram os pequenos agricultores. Para eles, a medida passa a valer somente em julho de 2025.
Pela regulação, o importador europeu deve exigir do agropecuarista comprovações de diligência quanto ao uso da terra onde a mercadoria foi produzida. Os produtores deverão apresentar dados, como coordenadas de geolocalização e imagens de satélite para provar que o commodity não veio de área desmatada.
EUDR gera preocupações mundiais
Em setembro de 2023, um grupo de 17 países, 11 da América Latina, três da Ásia e três da África notificaram a UE sobre suas preocupações quanto à EUDR. Em junho deste ano, até mesmo o grande aliado da Europa, os Estados Unidos, pediram ao bloco que adiasse a implementação da lei.
Em uma manobra que coloca o Brasil na frente diplomática dessas negociações, uma carta assinada pelos ministros Carlos Fávaro, do Ministério da Agricultura e Pecuária, e Mauro Vieira, do Ministério das Relações Exteriores, foi enviada ao comissário europeu para a Agricultura e Desenvolvimento Rural, Janusz Wojciechowski.
O documento retoma o pedido pelo adiamento de implementação da lei e alerta que mais de 30% das exportações brasileiras ao bloco estariam comprometidas.
Apurado pela Sputnik Brasil, as preocupações com a EUDR são variadas e vão desde inseguranças jurídicas, pouco tempo de adaptação, embates no direito internacional, até mesmo questões maiores da diplomacia.
Eduardo Galvão, professor de políticas públicas e relações institucionais do Ibmec do Distrito Federal e diretor da consultoria Burson Brasil, diz que a medida, como está escrita, traz inseguranças ao produtor pela falta de clareza em sua linguagem. Por exemplo, não há uma definição clara sobre o que é uma “floresta” e se isso incluiria biomas como o Cerrado.
Tampouco há equivalências com as leis brasileiras, como na definição de pequenas e médias empresas e a ausência de distinção entre desmatamento legal e ilegal, algo previsto no Código Florestal do Brasil e visto com preocupação pelas autoridades brasileiras.
Além disso, ressalta Galvão, o período de transição de 18 meses é visto como “muito curto”, especialmente “para produtores menores que precisam de mais tempo para implementar sistemas de rastreabilidade sofisticados, como a geolocalização das propriedades e auditorias regulares”.
“Para grandes players, a adaptação pode ser mais fácil, mas para pequenos produtores os custos e as exigências de rastreabilidade podem ser um golpe duro, empurrando-os para fora da cadeia de exportação.”
A preocupação com pequenos produtores, “como agricultores familiares, cooperativas e associações de trabalhadores rurais” é ecoada por Viviana Porto, pesquisadora plena da Plataforma Cipó.
“Se uma empresa ou cooperativa não conseguir comprovar a origem do lote de terra onde foi produzida certa mercadoria, como a soja ou o gado, mesmo que tenha sido feito de maneira legal, não poderá exportar mais para a União Europeia.”
Segundo a pesquisadora, isso pode levar a uma queda significativa nas exportações agrícolas, setor que no ano passado foi responsável por 23,8% do produto interno bruto (PIB) do Brasil.
“Essa falta de preparação pode exacerbar as desigualdades no setor agrícola e afetar a competitividade dos pequenos produtores brasileiros no mercado internacional.”
Lei europeia fere a soberania brasileira?
A desconsideração da EUDR com a legislação dos demais países afetados, em especial a existência na lei brasileira de desmatamento legal, foi classificada na carta dos ministros brasileiros como um “aspecto extraterritorial que contraria o princípio da soberania”.
À Sputnik Brasil, Viviana Porto afirma que o Itamaraty “está certo em afirmar que a regulamentação extrapola os limites de legislar sobre seu próprio território e mercado”, uma vez que sua lei não está alinhada às regulamentações brasileira e dos demais países.
A opinião é compartilhada por Galvão, que afirma que a UE está impondo regras externas “sobre um país que já possui uma das legislações ambientais mais avançadas do mundo”.
Ainda assim, destaca o professor do Ibmec, a demanda por produtos sustentáveis está em alta, em especial entre os consumidores europeus.
“Assim, a União Europeia tem o direito de decidir os critérios para os produtos que deseja comprar, especialmente quando se trata de questões ambientais globais.”
Contradição europeia
À reportagem, Eduardo Manuel Val, professor associado de direito internacional na Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do doutorado em direito da Faculdade Estácio, destaca ainda que o bloco europeu é soberano e, portanto, tem o direito de tomar suas decisões, mas há uma “enorme contradição” em sua postura.
“Como a UE não considera os avanços de um governo que reverte a situação do governo anterior — e que implementa uma série de medidas que colocaram o meio ambiente no centro da agenda geopolítica internacional — e ainda impõe uma normativa que é altamente punitiva?“, indaga Val.
Em sua análise, a EUDR é prova de uma “duplicidade do discurso de proteção ambiental”.
“Temos que nos acostumar com as contradições europeias e das potências hegemônicas.”
A mesma justificativa foi usada pelo bloco europeu para adiar a ratificação do tratado de livre-comércio com o Mercosul, muito em prol da França, lembra o jurista. Dessa forma, a norma ambiental aplicada do jeito que está tem o interesse velado de proteger os próprios produtores europeus, que desmataram suas florestas há séculos.
Bronca é necessária
Após a notícia do pedido brasileiro ser divulgado, ambientalistas criticaram justamente as prioridades do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que até mesmo em sua fala na 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), instou outros países a colocarem o pé no acelerador e intensificar as medidas contra as mudanças climáticas.
Por um lado, o Brasil pede por mais ações contra as mudanças climáticas e, por outro, opõe-se à nova legislação europeia, que visa justamente combater o desmatamento, questionam ambientalistas.
Ainda que os três especialistas entrevistados pela reportagem destaquem a necessidade de balancear novas leis com os impactos econômicos e tempos de adaptação justos, em sua fala à Sputnik Brasil, Val equilibra ambos os lados do discurso e diz que, ainda que parta de interesses protecionistas, a reprimenda europeia é “necessária”.
As recentes queimadas são provas disso. Com grandes indícios de autoria criminosa por trás dos incêndios, pouco foi feito pelo governo em termos de repreensão legal. “O governo tem que investir de forma mais contundente na vigilância e, também, na punição.”
“É importante o Brasil entender que não é suficiente colocar uma série de normativas para reverter o quadro de desmatamento do nosso patrimônio natural se não efetivarmos essas medidas.”