Crônica de uma afronta à cidadania: a privatização do Parque Villa-Lobos. Um triste tour fotográfico no espaço, agora capturado pelo setor privado, mostra suas catracas e a publicidade selvagem enquanto outras áreas “não rentáveis” estão deterioradas
Nos últimos anos, venho acompanhando o processo de destruição do conceito de interesse público no âmbito da administração dos parques urbanos em São Paulo. Caso emblemático é o do Parque Estadual Villa-Lobos, na zona oeste. Trata-se de uma área verde localizada nas bordas de um bairro de classe média-alta, mas que beneficia significativamente a população residente no Butantã, Vila Sônia, Osasco, Carapicuíba e Barueri.
Nos tempos em que atuei na área ambiental da Procuradoria Geral do Estado, acompanhei de perto o processo de desapropriação da área. Para conquistar esse espaço público em benefício da população paulista, podem ter certeza de que o Governo do Estado de São Paulo investiu muito dinheiro. Dinheiro público, sobretudo de ICMS arrecadado a cada compra de um saco de arroz ou feijão, de uma lata de sardinhas ou no abastecimento do carro com gasolina. Um dinheiro, porém, bem gasto, pois o que mais faz falta na cidade de São Paulo são áreas verdes para lazer, meditação, convívio, prática de esportes, para essa imensa maioria da população que não tem condições de arcar com o pagamento de título e mensalidades em clubes particulares.
O Parque Villa-Lobos era um grande aterro coberto de resíduos sólidos, em especial de construção civil. Levou muito tempo para que as atuais gerações pudessem caminhar por ele e se beneficiar da sombra das árvores que finalmente cresceram. Não que sejam tantas árvores assim, infelizmente privilegiou-se também a formação de espaços impermeabilizados por blocos de concreto, mas que bem ou mal têm uma função social, pois servem para a prática de ciclismo e outros esportes.
Ocorre que, ao longo dos últimos anos, esse parque vem se transformando gradativamente num grande terreno destinado à ocupação por empresas particulares. Convido as leitoras e os leitores da Revista PUB – Diálogos Interdisciplinares a me acompanharem neste triste tour fotográfico. As fotos foram tiradas por mim na manhã de hoje, 14 de agosto de 2023.
Pic-nic? Ligue já!
As duas primeiras fotos mostram as antigas áreas onde todos os frequentadores do parque poderiam livremente realizar pic-nics com seus amigos e famílias. Como pode-se ver pelo estado da mesa e dos bancos públicos, a ideia agora é deixar que o tempo faça a sua parte e destrua completamente os resquícios do que um dia foi um parque público.
Em contraste com o estado de deterioração e abandono das áreas públicas para realização de encontros entre amigos e familiares, surge agora, devidamente cercada, essa absurda invasão do que era um espaço democrático: ligue para o nosso WhatsApp e contrate com exclusividade o uso privativo do parque, longe de quem não pode pagar! As placas ao redor do cercadinho contêm mensagens publicitárias, mas ao longe a impressão que dá é de que trata-se de um aviso de campo minado.
Caminhemos mais um pouco pelo que ainda resta de trilhas não exclusivas e encontraremos as instalações de uma coisa chamada “Taste São Paulo Festival”, patrocinada pelo banco Santander e pela Secretaria da “Cultura” (?!) e “Economia Criativa” (?!).
Trata-se de um foodcentercom restaurantes renomados. Acesso, obviamente, impedido para o povo em geral, que terá que se contentar com a pipoca e o cachorro-quente com purê de batatas e ketchup na entrada do parque. O que espanta, no caso, é o desplante de se instalar um festival de comida dentro de um parque público, quando existem à disposição dos particulares várias opções de espaços de exposição, como o Anhembi ou o Centro Imigrantes. Por outro lado, ignorava completamente que provar um prato do Fasano constitui uma prática cultural tão relevante a ponto de ser bancada por uma secretaria de estado. Isso é que é economia criativa! Economia de recato no trato dos bens públicos e criatividade na afronta.
“A gente não quer só comida”… Alô, Arnaldo Antunes e Sérgio Britto! Vocês estão sabendo que a canção que compuseram com Marcelo Fromer está sendo utilizada pelo pessoal do Santander e Governo Estadual como publicidade num festival de comida de restaurante famoso?
O legado do Cirque du Soleil
Esse grande espaço cimentado ou asfaltado, onde antes havia grama, arbustos e árvores, é o legado que a passagem do Cirque du Soleil deixou para os paulistanos no Parque Estadual Villa Lobos. A área, sem qualquer uso público, provavelmente será em breve ocupada por mais algum empreendimento privado destinado a “gerar renda”. Por enquanto, pode servir de pista de pouso para helicópteros ou discos-voadores.
Os indesejáveis espaços públicos
As fotos acima registram o estado do espelho d’água do prédio que seria destinado a mais um uso público que “não gera renda” e, portanto, deve ser objeto de sucateamento: a biblioteca do parque. O desleixo constitui verdadeira ofensa à população. Não se pense que ele é indesejado. Com toda certeza o governador carioca que o povo paulista elegeu deve sentir urticárias só de pensar em livros, revistas e jornais. Nada mais adequado, portanto, do que cercar a biblioteca com um criadouro imundo de aedesegiptii.
Pobre Professora Ruth Cardoso!
Já decidido a fugir desse cenário de tristeza em que se tornou o Parque Villa-Lobos, aproximo-me do antigo Orquidário Ruth Cardoso. É neste ponto que a degradação chega ao seu ponto extremo.
É preciso chegar perto da porta de vidro para se vislumbrar o estado de deterioração daquele que já foi um dos mais bonitos orquidários do Brasil. Em seu lugar, vidros partidos, lixo e cimento.
Abaixo, uma das “portas” do Orquidário: tapume no lugar de porta de vidro, para impedir o ingresso de pessoas.
Por fim, uma visão da entrada do orquidário. A imagem fala por si.
Uma observação interessante: no momento em que fotografava estas imagens, fui abordado por um sujeito numa bicicleta que portava uma espécie de zarabatana ou espingadinha de chumbo nas costas. Queria saber por que eu estava ali fotografando. Expliquei a ele: fazia isso porque sou um cidadão paulista, porque ajudei a pagar a desapropriação da área e a formação do parque com o dinheiro dos meus impostos e, também, por um motivo íntimo, na condição de procurador do estado fui um dos que atuou no processo de regularização fundiária desse espaço. O guardinha particular “explicou”, falando na primeira pessoa do plural, em nome da concessionária para a qual trabalhava, que esse espaço estava ainda assim porque eles procuravam investidores interessados em transformar aquele espaço em algo que gerasse renda. Não tive disposição para prosseguir na conversa. Se alguém tem que se explicar aqui, é o Sr. Tarcísio de Freitas.
(*) Por Guilherme José Purvinde Figueiredo é escritor, autor de “Virando o Ipiranga” (Editora Terra Redonda, semifinalista do Prêmios Oceanos de 2022), dentre outros livros de contos e romances. É advogado e professor de Direito Ambiental, associado e diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil. É membro efetivo da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP e foi Procurador do Estado/SP, atuando na área do contencioso ambiental.
Fonte: Revista PUB