Se os vinte anos do regime militar, seguidos pelos quarenta do arrastão neoliberal, não tivessem conseguido esconder tão cuidadosamente e completamente a história política do Brasil nos anos anteriores, três milhões de habitantes de São Paulo não teriam sido obrigados a viver o que estão vivendo agora com o apagão da concessionária Enel.
Foi precisamente para que o Brasil desconhecesse experiências vividas antes e não quisesse retomá-las que o passado ficou tão escondido. O caso da energia elétrica é exemplar, e seu momento decisivo começou com Leonel Brizola. Quando foi eleito governador do Rio Grande do Sul em outubro de 1958 e tomou posse em janeiro de 1959, Brizola não tinha a menor predisposição contra a concessionária dos serviços de geração e distribuição de energia elétrica no Estado – uma empresa privada registrada como brasileira, mas controlada pela multinacional Bond & Share.
Mal tomou posse, Brizola foi procurado por uma delegação de empresários do setor industrial, que se queixavam dessa concessionária, pois nada fazia para ampliar sua capacidade geradora e, assim, travava qualquer possibilidade de as indústrias do Estado instalarem novas fábricas ou aumentarem a produção das já existentes. Nem sequer existia a possibilidade de funcionarem horas extras para atender a encomendas do comércio – e isso em um momento em que a economia brasileira vivia os 50 anos em 5 do governo do Presidente JK, com o crescimento do PIB chegando a 7% em alguns anos. Todo o Brasil crescia velozmente, mas o Rio Grande estagnava; sua indústria não podia aceitar novas encomendas, o comércio perdia vendas, e os empresários de ambos os setores perdiam lucros e tinham sua capacidade de reinvestir estrangulada.
Nessa situação, os industriais foram se queixar a Brizola, que atendeu ao seu apelo e foi à filial da Bond & Share perguntar como se poderia resolver o problema, que era urgente: “Só a longo prazo”, responderam, obedecendo ao manual de conduta vindo da matriz, e com aumentos de tarifas que cobrissem os investimentos necessários.
Brizola conversou novamente com os industriais e sugeriu a eles uma proposta comum, deles e do governo do Estado, a ser apresentada à concessionária: uma joint venture com recursos bancados um terço pelo governo do Estado, um terço pelo empresariado gaúcho e um terço pela concessionária, para a ampliação das usinas já existentes e, se necessário, a construção de novas usinas, de modo a disponibilizar mais energia para que a economia do Rio Grande incorporasse o grande salto para frente que o governo JK promovia.
Os industriais concordaram, e o plano foi levado à concessionária, cujos diretores brasileiros, surpreendidos por uma hipótese que não figurava em seus manuais de conduta, também concordaram com a joint venture. Mas logo veio a reação da matriz, que simplesmente vetou o projeto, sem qualquer justificativa e com a arrogância de um poder colonial.
Diante disso, só restava a Brizola a alternativa de intervir com firmeza. Uma vez que o governo do Rio Grande era o poder concedente, decretou a encampação da concessionária e a desapropriação de seu patrimônio.
Essa decisão, que consagrou Brizola nacionalmente, precipitou em pouco tempo um processo de emancipação econômica comparável ao da Petrobrás, com a criação da Eletrobrás, proposta por Getúlio Vargas em 1954 e engavetada no Congresso desde então.
A Eletrobrás e a Petrobrás foram as maiores responsáveis pelo chamado milagre brasileiro, que os governos militares, com exceção do de Geisel, atribuíram a si mesmos, como se esquecessem o que aconteceu no Brasil entre a Revolução de 1930 e o golpe de 64.
Elas sobreviveram à onda neoliberal nos governos Collor e Fernando Henrique, e a Petrobrás sobreviveu também ao governo Temer (consequência do golpe do impeachment contra o governo Dilma) e ao governo Bolsonaro (para cuja instauração foi preciso meter Lula na cadeia por 580 dias). Mas a Eletrobrás não sobreviveu ao golpe do impeachment e à prisão de Lula, sendo privatizada no governo Bolsonaro.
A concessão à multinacional Enel em São Paulo foi muito anterior à privatização da Eletrobrás e ao governo Bolsonaro, mas faz parte do mesmo processo de entrega a interesses privados de empresas estatais que podem ser muito lucrativas uma vez privatizadas – e só são privatizadas para que seus compradores ganhem fortunas fabulosas, não para melhorar seus serviços ou para evitar que os governos vendedores tenham de subsidiá-las.
A própria Enel foi estatal na Itália, depois foi privatizada e, como empresa privada, conquistou a concessão de São Paulo, que agora só um ato como o de Brizola no Rio Grande pode devolver. Se não tivesse sido privatizada, a Eletrobrás poderia ser o mais poderoso instrumento do governo Lula para livrar São Paulo dessa concessão que, só neste apagão, atingiu mais de três milhões de consumidores.
(*) Por José Augusto Ribeiro – jornalista e escritor, é colunista do Jornal Brasil Popular com a coluna semanal “De olho no mundo”. Publicou a trilogia A Era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993); A História da Petrobrás (2023). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.