Lideranças do Congresso Nacional costuram, nos bastidores, uma manobra para reaproveitar em novas obras e investimentos uma verba de restos a pagar de R$ 4,6 bilhões de orçamentos anteriores, que já havia sido cancelada.
Essa revalidação, prevista em um projeto de lei, é alvo de um debate de interpretação nos corredores do Congresso entre parlamentares e técnicos.
Senadores e deputados ouvidos pelo UOL acreditam que podem “reciclar” esses investimentos e transformar essas emendas em um gasto novo, extraorçamentário, como uma nova moeda de negociação política.
Como funcionam os ‘restos’
Segundo as regras orçamentárias, o governo usa o orçamento do ano corrente para fazer empenhos — um ato que reserva o pagamento para uma determinada finalidade, como uma obra. Quando a obra avança, o dinheiro sai do caixa.
Os empenhos que não foram liquidados em um determinado ano se transformam em “restos a pagar” e podem ser pagos no ano seguinte, mas em um prazo de mais um ano (que o Congresso tem o costume de prolongar).
Esses restos são pagos conforme os empenhos anteriores. Se uma construtora recebeu um empenho de R$ 1 milhão, só ela poderá ser paga em R$ 1 milhão.
No fim de 2024, R$ 4,6 bilhões em restos dos orçamentos de 2020, 2021 e 2022 foram cancelados. O projeto de lei, já aprovado no Senado e em tramitação na Câmara, revalida essa verba para ser paga em 2025 e 2026.
Parlamentares acreditam que essa verba pode ser, de certa forma, remanejada.
“Merece ainda destaque o fato de que a manutenção dos restos a pagar não significa necessariamente a realização de pagamentos àqueles que constam como possíveis beneficiários nas notas de empenho”, diz o parecer do relator do projeto na Câmara, Danilo Forte (União-CE).
Isso é importante porque, desse montante, cerca de 60% são projetos cuja execução não começou, e o texto prevê que só poderão ser executados gastos cujo procedimento licitatório tenha sido iniciado.
Ou seja, cerca de R$ 2,75 bilhões não serão usados na finalidade para qual haviam sido reservados, mas parlamentares apostam que esse dinheiro não será perdido, e sim reaproveitado em outras finalidades.
Esses valores não precisariam entrar nos orçamentos de 2025 e 2026, mas ficariam à disposição do governo federal para gastar dentro da mesma área a que haviam sido destinados de início, como manutenção de estradas, educação ou saúde, no entendimento de fontes que estão a par da negociação.
Técnicos do Congresso, porém, questionam a legalidade desse procedimento e não veem brecha no texto da lei para que seja interpretado dessa forma.
Para eles, a legislação prevê que restos podem ser liquidados, mas não alterados para que constem outras obras e investimentos.
O projeto de lei revalida R$ 2,4 bilhões em investimentos dos ministérios, R$ 60,9 milhões em emendas parlamentares de comissão e R$ 2,2 bilhões em emendas de relator (conhecidas como orçamento secreto) empenhadas até 2022, mas cujas obras nunca saíram do papel, ou pararam na metade.
Pela lei orçamentária, elas foram canceladas no final do ano passado, já que perderam a validade, mas a ideia é permitir que o governo possa continuar pagando aquilo que já foi empenhado (reservado para pagamento).
Como mostrou o UOL, o principal beneficiado pelo projeto é o senador Davi Alcolumbre, que tem convênios indicados por ele mesmo entre as verbas canceladas. Dos recursos que o Congresso quer “ressuscitar”, há R$ 515 milhões para o Amapá. É o estado com o maior volume de investimentos.
A proposta no Senado foi apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso Nacional. A previsão é de votação na Câmara dos Deputados na semana que vem, com poucas alterações no texto.
Críticas ao texto do projeto
Parecer da Conof (Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira) da Câmara afirma que o projeto pode gerar insegurança jurídica, além de ir contra princípios constitucionais e orçamentários e criar riscos fiscais.
Segundo a Conof, o orçamento público deve seguir o princípio da anualidade. Isso significa que verbas não executadas não devem ser incorporadas nos orçamentos seguintes indefinidamente como “restos a pagar”.
“As despesas autorizadas e inscritas como restos a pagar não processados devem ser canceladas, como efetivamente ocorreu. Uma vez canceladas, as mesmas não mais podem ser liquidadas ou pagas, uma vez que expiraram-se os efeitos da autorização orçamentária”, diz o texto da Conof.
O projeto, segundo a Conof, “interfere em atos administrativos válidos já praticados pela administração” — ou seja, o cancelamento dos investimentos que já perderam o prazo para serem executados.