“De longa data vivemos num perfeito mundo da lua muito parente daquele camoniano estado d’alma ledo e cego da Inês de Castro”; assim criticou a percepção dos brasileiros sobre si mesmos o arguto Monteiro Lobato (A ação de Osvaldo Cruz, in O Problema Vital, Editora Brasiliense, SP, 1951, 5ª edição).
E prossegue Lobato: “Umas tantas mundices da lua ganharam foros de axioma, desses que se demonstram pelo simples enunciado”, como passou a ser corriqueiro nestes recentes tempos sombrios. Monteiro Lobato trata, a partir desta introdução, da importantíssima questão nacional.
Vamos nos limitar a desenvolver uma das suas acerbas críticas: “Até Osvaldo Cruz, o médico no Brasil era o Chernoviz: xaropes, iodureto e a continha. Curava – quando não matava. Prevenir, nunca. O higienismo dormia o sono das crisalidas, apesar do movimento científico universal determinado pelas teorias pasteurianas”.
Para os mais novos, o médico polonês Pedro Luiz Chernoviz (1812–1881) desembarcou no Rio de Janeiro em 1840, notou que havia entre a medicina e o curandeirismo um amplo espaço a ser ocupado, que o fez escrevendo “livros de medicina”, que lhe proporcionaram fama e dinheiro, com o qual retornou à Europa.
A medicina fundamental a ser conduzida pelo Estado deve estar calcada em princípios, tais como: universalidade, acessibilidade, distribuição espacial, capilaridade, coordenação nacional e complementariedade das responsabilidades entre os entes federativos. O Sistema Único de Saúde (SUS) é excelente caminho que precisa ser divulgado, ampliado, reforçado em seus recursos para que seja, além de tudo, exemplar, neste país continente, com população das maiores do mundo.
Mas o brasileiro gosta de ser visto pelo olhar estrangeiro, como Monteiro Lobato e outros brilhantes intérpretes da Nação nos têm apontado. Na questão da saúde, o melhor exemplo vem de Cuba, a ilha caribenha que forma médicos em tal quantidade que lhe permite acudir inúmeros e mais necessitados países, produz vacinas que a tornam autossuficiente em imunizações, como demonstrado na pandemia da Covid, e tem uma farmacopeia de causar inveja aos orgulhosos europeus.
Enunciemos os cinco requisitos que o Ministério da Saúde Pública de Cuba apresenta para seus serviços básicos. Primeiro, que o atendimento médico, em todos os aspectos, tem que considerar o indivíduo como ser social, mais do que a saúde ou a enfermidade isoladamente. O caso da Covid no Brasil e os péssimos exemplos do Governo Federal e das autoridades nacionais na área da saúde e vigilância sanitária dispensam até comentários.
Segundo, o atendimento médico realiza ações, tanto para manter a saúde quanto para recuperá-la no indivíduo, na família e na comunidade. As vacinações periódicas, imunizando contra doenças como varíola, tuberculose, difteria, tétano, coqueluche, poliomielite, gripe, hepatite, entre outras é exemplo deste requisito.
Terceiro, não se pode realizar ações sobre as enfermidades, nem a proteção da saúde, isoladamente, sem levar em conta os ambientes físico, biológico e social; os vetores já referidos.
Quarto, a organização social e os grupos sociais que a compõem influem na conduta do homem e, consequentemente, no seu estado de saúde.
Quinto, o adequado sistema de saúde canaliza os progressos científicos e técnicos, possibilitando detectar a influência dos fatores físicos, biológicos, sociais, econômicos, educacionais, culturais sobre a saúde individual e coletiva, permitindo formular planos e programas mais objetivos e exitosos para prevenção e eliminação de agentes e influências desfavoráveis. Os recursos da informática, da gestão das informações, ultrapassa a simples questão da prevenção da doença para possibilitar a vida saudável e agradável, onde os relacionamentos sociais, na comunidade onde se vive, têm grande importância.
O maior estadista brasileiro, Getúlio Vargas, ao criar, no mesmo mês em que foi empossado no governo provisório da Revolução de 1930, o Ministério, antes inexistente, para a educação e a saúde, antevia, pois os recursos da informática ainda não eram aplicáveis, a íntima relação saúde-educação. Nestas considerações sobre a Construção do Estado Nacional Brasileiro, enfeixamos na Cidadania as condições para vida e participação de todos nos destinos de nossa Nação.
Quanto às definições técnicas para as ações do Estado Nacional no segmento saúde, na área da existência, dentro da construção da cidadania, podemos distinguir:
a) ações básicas, de ampla capilaridade:
a.1) ações preventivas, educacionais e o Programa de Imunizações;
a.2) ações de acompanhamento e controle; e
a.3) curativas de baixa complexidade;
b) ações de média complexidade, em unidades gerais abrangentes:
b.1) diagnósticos de média complexidade;
b.2) encaminhamentos, também a partir dos locais de ações básicas, na distribuição espacial, observando a acessibilidade;
b.3) integração dos sistemas informacionais;
b.4) atendimentos de emergência de média complexidade;
b.5) triagem e encaminhamento para unidades de alta complexidade, com os mecanismos adequados.
c) para os atendimentos de alta complexidade, a rede pública de saúde contaria com:
c.1) hospitais de emergência;
c.2) hospitais gerais para internações eletivas; e
c.3) hospitais especializados.
No que compete às ações de acompanhamento, tem-se a avaliação, as estatísticas, as propostas de revisão de ações e de políticas e os cuidados com a implantação de novos planos e projetos.
O Sistema Público de Saúde atenta também para as diferenças regionais e para as aglomerações urbanas e para atuação específica nas Zonas Rurais; conforme seus portes demográficos e a otimização dos recursos, em suas diversas vertentes: água, recursos florestais, animais, condições climáticas etc.
Em princípio cada unidade do sistema de saúde terá seu corpo administrativo e o corpo técnico adequado às finalidades da unidade. As dimensões dos estabelecimentos e suas lotações funcionais resultam da população a ser atendida.
As comunidades deverão participar de toda estrutura de órgãos de saúde do Estado, por representação eleita em Conselhos Fiscais e Consultivos. As quantidades destas participações serão determinadas por estudos organizacionais nacionais, estaduais e municipais.
O sistema gestor da saúde deverá manter um programa permanente de treinamento e atualização técnica para todos os envolvidos no Sistema Nacional de Saúde. É inadmissível a desatualização não só dos médicos e profissionais diretamente envolvidos nos tratamentos, como dos atendentes e técnicos de informática e administrativos.
O Estado deve atuar como se fosse o único agente para a questão da saúde no País. Isto inclui sua ação para pesquisa e produção de fármacos e materiais higiênicos. A iniciativa privada, beneficente ou comercial, não está interditada, mas constituirá apenas uma opção para a população.
Saúde e educação são obrigações dos Estados Nacionais.
(*) Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.
(**) Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.