Se tem uma área que foi duramente atingida com a pandemia de Covid-19, fora a de saúde, foi o mundo do trabalho. A classe trabalhadora, que há muito tempo já não ia ao paraíso, foi duramente atingida. Sem trabalho. Sem renda. Sem perspectiva de futuro. Obviamente, a crise sanitária se impõe e exige isolamento social. Mas como efetivar o isolamento se as pessoas precisam garantir seu sustento? É para esse tipo de situação que foi constituído, ao longo do século XX, uma legislação que protegia, em certas circunstâncias, os trabalhadores. Pois é, protegia. Para grande parte dos novos e velhos trabalhadores, essa legislação não protege mais.
Com as reformas trabalhistas implementadas por Michel Temer e Jair Bolsonaro, tivemos aquilo que os ideólogos liberais chamam de flexibilização do contrato de trabalho. Contratos intermitentes, pejotização, terceirização, empreendedorismo de si, uberização são termos que têm entrado cada vez mais no vocabulário de quem estuda o mundo do trabalho. Imagine a situação de um trabalhador que antes da pandemia assinou um contrato intermitente, ou seja, só ganha pelas horas que trabalha. Considere que esse trabalhador é um garçom. Com restaurantes e bares fechados, ele, que não tem salário fixo, nem um mínimo, fica sem renda nenhuma. Na mesma situação se colocam os milhares de trabalhadores submetidos à pejotização, ou seja, que prestam serviços a empresas, geralmente a apenas uma, sem garantia de uma remuneração mínima e sem direitos trabalhistas. Afinal, esse sujeito é uma empresa, um empreendedor, que explora nada além do que sua própria força de trabalho.
É verdade que a pandemia também atinge trabalhadores com contratos de trabalho tradicionais, que garantem direitos trabalhistas. Estes estão sendo submetidos a redução de jornada e de salários, a suspensão do contrato de trabalho, a trabalho remoto, ou mesmo ao desemprego. Entre março e abril, o Brasil fechou 1,1 milhão de postos de trabalho. O desemprego, que já estava alto, disparou no Brasil. Isso mostra que as ações anunciadas pelo governo, muito tímidas, não surtiram o efeito prometido. Mas mesmo aquele que perde o emprego, quanto tinha um contrato de trabalho regido pela CLT, tem uma proteção: seguro-desemprego, FGTS, multa rescisória. Com a chamada flexibilização trabalhista, essa proteção simplesmente desaparece.
Situação ainda mais grave vive o trabalhador informal que, longe de ser exceção, é parte considerável entre os trabalhadores ocupados no Brasil. Contra esses, a pandemia de Covid-19 desferiu um soco no queixo. Segundo os dados da última PNAD Contínua, referente ao primeiro trimestre de 2020, a força de trabalho no Brasil é constituída por 105 milhões de pessoas, sendo 39 milhões de trabalhadores informais, 10 milhões de microempreendedores individuais e 12,8 milhões de desempregadas. Apesar de serem formais, os microempreendedores individuais também são empobrecidos e vulneráveis. Grande parte teve sua renda reduzida drasticamente devido à pandemia. No total, são pelo menos 60 milhões de homens e mulheres extremamente vulneráveis à crise atual e que dependem de ações do Estado brasileiro para poderem ter o mínimo de garantia de sobrevivência.
O Governo Federal instituiu o auxílio emergencial, de R$ 600,00, para atender os trabalhadores mais pobres, especialmente os informais. Não devemos esquecer que a proposta inicial do Governo, enviada ao Congresso, era de R$ 200,00. Esse auxílio se configura como um alento, mas está longe de resolver o problema da súbita redução da renda das famílias. Tal redução impacta também a economia como um todo, tendo em vista a grande queda do consumo, mas pesa sobretudo na vida de cada um que sofre com a escassez e a carestia. Sem contar as dificuldades enfrentadas por quem busca o auxílio, como as filas gigantescas, a falta de um CPF válido e a dificuldade no acesso à plataforma digital disponibilizada pelo governo. Há milhões de casos que se encontram “em análise”, sem prazo para que sua situação seja definida. Em outros inúmeros casos, a negativa dos benefícios atinge pessoas que se enquadrariam entre os beneficiários, mas que, por razões inexplicadas, simplesmente têm seus benefícios negados. Enquanto isso, outros, que não deveriam receber por possuírem renda acima do estipulado pelo programa, estão a receber o benefício.
O auxílio proposto pelo Governo e aprovado pelo Congresso se limita a três meses. Como o combate à disseminação do vírus tem sido ineficaz, por conta sobretudo da sabotagem do próprio presidente da República, em três meses não haverá retorno às atividades. O auxílio precisará ser prorrogado. As empresas demitirão mais. Os trabalhadores terão sua renda ainda mais afetada, reduzindo o consumo, o que impactará ainda mais a economia, aumentando o desemprego. Entramos em um círculo vicioso em que o caos é o cenário mais provável.
Essa pandemia coloca a nu uma situação contraditória na dinâmica do capitalismo global. Dinâmica, inclusive já vista por Marx no século XIX. Se, por um lado, são os trabalhadores os consumidores do produtos produzidos e serviços prestados por eles mesmos, por outro, a concorrência cada vez mais acirrada entre empresas e países leva à pauperização da força de trabalho. Tendência que pode ser percebida pela flexibilização trabalhista que tem ocorrido em todo o mundo. O Brasil é apenas um caso recente de um fenômeno que vem crescendo desde a década de 1970, que é o desmonte dos Estados de Bem-Estar Social e a consequente flexibilização trabalhista.
Cada país busca baratear o custo da sua força de trabalho para se tornar mais competitivo globalmente. E como fazer isso? Há duas formas: reduzindo diretamente a remuneração dos trabalhadores ou reduzindo os custos dos contratos de trabalho. A redução da remuneração é realizada, mas a contradição é muito evidente (menor renda significa menor poder de consumo), o que torna essa estratégia menos desejável. A redução dos custos dos contratos de trabalho (ou seja, dos direitos trabalhistas) afeta menos diretamente o consumo imediato, uma vez que a renda do trabalhador não é afetada. Os ideólogos do neoliberalismo ainda dizem que não apenas a renda não diminui, mas, como há uma redução de impostos pagos ao Estado, os trabalhadores se beneficiariam com o aumento na sua remuneração. Tal argumento não encontra respaldo nos fatos.
Contudo, os efeitos contraditórios do neoliberalismo podem ser percebidos muito claramente nessa pandemia. Sem proteção social quando lhe falta trabalho remunerado, o trabalhador deixa de ser consumidor. Sem consumo, a máquina para de funcionar. O sistema de proteção social construído pelo Estado supria essa função: garantia renda ao trabalhador sem trabalho. Com o desmonte desse sistema, qualquer situação de calamidade não apenas prejudica os trabalhadores, como também coloca toda a economia em colapso. A concentração de renda promovida nesse processo, uma vez que as políticas neoliberais aprofundam essa tendência capitalista, mostra como Marx estava certo em sua análise. Enquanto uma minoria cada vez mais reduzida cresce em riqueza, a maioria crescente empobrece.