As raízes da cultura brasileira: Darcy Ribeiro e Miguel Nicolelis, identidade, história e soberania nacional.
Existe uma cultura brasileira?
O Brasil teve e tem gênios que, pela sua marginalidade às teses europeias, tiveram impedidos até mesmo do reconhecimento nacional, pelo viés colonizado de nossa educação, quer a formal das escolas, quer a imposta sub-repticiamente pela cultura de massa.
O primeiro gênio, que buscamos para responder a difícil questão proposta na que abre este artigo, é Darcy Ribeiro (1922-1997) e a analisa em seu livro O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil (1995), por diversas perspectivas, tais como o poder, as gestações étnicas e as histórias da nossa História.
O outro gênio brasileiro, o neurocientista Miguel Nicolelis (1961), a responde em seu livro, de 2020, O Verdadeiro Criador de Tudo, trazendo-nos uma função do cérebro humano que, até então, nunca fora colocada em discussão, e que ele denomina “informação gödeliana”, em homenagem ao grande lógico e matemático tcheco Kurt Gödel (1906-1978).
Esta informação, de natureza analógica, não pode ser reduzida a uma representação ou a uma descrição digital porque sua manifestação integral depende de um processo contínuo de transformação da estrutura orgânica de um sistema biológico, dependente das leis da física e da química, e não pode ser reconstruída nem copiada por um algoritmo rodando em um computador”. A manifestação desta informação se dará “na forma de emoções e sentimentos experimentados de modo único pelo indivíduo”, talvez a mais intimista formadora da cultura.
Nicolelis denomina a informação digital de “shannoniana”, pelo desenvolvimento dado por Claude Shannon (1916-2001), no artigo “A Mathematical Theory of Communication”, no Bell System Technical Journal, em 1948, à teoria da informação.
No desenvolvimento destas duas perspectivas, de Darcy Ribeiro e de Miguel Nicolelis, também discutiremos as contribuições dos colonizadores – portugueses, ingleses, estadunidenses –, a dos que foram trazidos para o Brasil contra suas vontades, os escravizados africanos, e daqueles que já estavam aqui muito antes das invasões estrangeiras, os primitivos habitantes de nosso espaço territorial, as diversas tribos dos índios brasileiros.
Nacional ou global, autônomo ou submisso
As manifestações culturais mais primitivas, quando o homem vivia de algum modo isolado, eram, a um só tempo, nacionais e globais, pois não se confrontavam com outras, e, assim sendo, jamais poderiam ser submissas.
“Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos da América (EUA), Canadá, Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais o Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstituindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. São, a rigor, o oposto de nós”, afirma Darcy Ribeiro na obra citada.
A descoberta do Novo Mundo, no alvorecer do sistema capitalista, trouxe questões que ainda não tinham sido propostas à sociedade humana. E da maneira mais violenta. Observe o caro leitor que toda tecnologia, que permitiu a saída da Europa e a conquista das Américas, veio sem ônus e pacificamente da China para Europa. Porém, ao ser apropriada no mundo europeu, transformou uma diversão em agressão – a pólvora; a autolocalização – a bússola, em recurso para dominação.
A cultura brasileira, conforme a análise de Darcy Ribeiro, se forma em contexto de estratificação social, cujas distâncias da classe dominante para as marginalizadas são sempre e facilmente identificadas, sendo suas intensidades variáveis, conforme os modelos econômicos, levantados exemplarmente em seis municípios brasileiros – confrontando perfis de conforto doméstico, rurais e urbanos: Ibirama (Santa Catarina), Leopoldina (Minas Gerais), Júlio de Castilhos (Rio Grande do Sul), Catalão (Goiás), Mococa (São Paulo) e Santarém (Pará) (obra citada, capítulo: Classe, Cor e Preconceito).
O longo período da escravidão, legalmente estabelecida, possibilitou a mais espantosa e muito pouco rebelde convivência, do que se imaginaria ocorrer, pela inaceitável e permanente agressão dos senhores aos escravizados.
O político e importante intelectual senegalês Alioune Diop (1910-1980), fundador da revista Présence Africaine (1947), assim se manifestou em entrevista realizada em março de 1976:
Alguns observadores estrangeiros ganharam o hábito de apresentar aos africanos a multiplicidade das suas culturas como um espantalho, um obstáculo fundamental à sua mútua aproximação. Estes observadores estão principalmente interessados, senão em denegrir as culturas africanas, ao menos em marginalizá-las, quando não chegam mesmo a tratar de subculturas. Insistem, deliberadamente, nas diferenças, nos antagonismos com o fim evidente de dividir os povos africanos
in Alpha I. Sow, “Prolégomènes”, “Introduction a la Culture Africaine”, UNESCO, 1977
Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, em Filosofias Africanas (Civilização Brasileira, RJ, 2020), citam o antropólogo belga Jacques Maquet, que apresenta o entendimento do universo, na tradição africana, como um organismo em constante transformação e crescimento, e exemplificam com os “dogons”, da atual República do Mali, simbolizando o universo como uma semente que faz estourar seu envoltório e passa a crescer em movimento sem limite.
Na ética, que embasa o pensamento africano, o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz, a vida do grupo. Veja a diferença com as religiões oriundas do judaísmo – o próprio semitismo, o catolicismo, os protestantismos, aguçados com o neopentecostalismo, os islamismos, que veem os outros como permanentes inimigos, disputando até mesmo um pedaço de deserto, como o atual Estado de Israel.
Daí vem a resiliência africana que impressiona Darcy Ribeiro e tantos estudiosos da formação do povo brasileiro.
Embora menos visibilizada, a resistência à escravidão pelos primitivos habitantes, no Brasil e nas Américas em geral, produziu o maior genocídio que se tem conhecimento na História, deixando vivos apenas 10% da população originária.
Darcy salienta que “a característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da sua pele. Nesta escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e, como tal, meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. Acresce que aqui se registra, também, uma branquização puramente social ou cultural”.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Censo Demográfico de 2022, identificavam-se 45,3% de pardos, 43,5% de brancos, 10,2% de pretos, 0,8% indígenas, 0,4% amarelos. Assim comparados com os dados de 1872, na citada obra de Darcy Ribeiro: 42% de pardos, 38% de brancos e 20% de pretos. Na parcela dos pardos estavam computados os indígenas e os nipo-brasileiros, ressalvando-se não alcançarem 5% dos totais. E, após a Lei Áurea de 1888, ficou assim constituída, em 1890, nossa população, pela mesma fonte de dados e critérios (Conselho Nacional de Estatística): 44% brancos, 41% pardos e 15% pretos.
Temos o País, formulado pelos colonizadores de todos os tempos, não apenas os lusitanos, e uma realidade que se formou nesta mistura de raças e condições tão específicas como o “cunhadismo”, instituição indígena de “incorporar estranhos à comunidade”, dando-lhes “uma moça índia como esposa”, também denominada “temericó”: “Estrutura de parentesco que possibilitava tornar alguém, de outro grupo, parente dos membros da comunidade”.
O antropólogo britânico Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955), autor, com o colega e conterrâneo Daryll Forde (1902-1973), do aprofundado estudo African Systems of Kinship and Marriage (1950), traduzido por Teresa Brandão, para Fundação Calouste Gulbenkian (Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, 2ª edição, 1982), ressaltam: “Para compreender os costumes africanos relativos ao casamento, temos de ter presente que um casamento é essencialmente uma organização da estrutura social. Entendendo-se por estrutura social o conjunto de disposições que situa as pessoas numa ordem institucional. Criam-se novas relações sociais, não apenas entre o marido e a mulher, entre o marido e os parentes da mulher, de um lado, e entre a mulher e os parentes do marido, do outro, mas, igualmente, em muitas sociedades entre os parentes do marido e os da esposa que, dos dois lados, ficam interessados no casamento e nos filhos que dele se esperam”.
Vieram para o Brasil milhões de bantos, que influenciaram nosso idioma e numerosos costumes. Este povo tem a característica da linhagem matrilinear e notável uniformidade quanto a princípios de filiação e sucessão. As metáforas do parentesco vincam os laços entre as pessoas “nascidas do mesmo ventre” ou “amamentadas pelo mesmo seio”.
Audrey Isabel Richards (1899-1984), antropóloga londrina, colabora no referido trabalho de Radcliffe-Brown e Forde, analisando os bantos. Embora tenha sido política de povoamento dos escravizados a separação das etnias, havia o desconhecimento das relações estabelecidas nas famílias africanas. E o IBGE afirma que “no continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos 16 e meados do 19, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro”, fortemente provenientes de Angola e da Costa do Marfim e destinados a locais da costa brasileira do Recife a São Paulo.
Ensina A. I. Richards: “Os povos da África Central diferem de forma marcante uns dos outros quanto a sua estrutura familiar, e, em particular, quanto às várias formas de grupamento local e doméstico, baseado na família”. E, prossegue: “Estas variações da estrutura da família dependem largamente do contrato de casamento e da medida em que o marido é capaz de exercer a autoridade sobre a sua mulher, que pertence, em virtude da descendência matrilinear, à linhagem ou ao clã da sua mãe e dos seus irmãos e irmãs; e também na medida em que ele consegue alcançar uma posição de autoridade sobre os filhos que a sua mulher gera”.
Esta múltipla origem e tradições que chegaram ao Brasil e se deparam com a identidade dos índios, e que levou 400 anos de relações escravocratas, praticamente impediu que desenvolvêssemos nosso conceito de povo ao qual se lhe atribuísse direitos. Formamos uma sociedade aberta às influências externas, sem o mesmo afã de a ter soberana ou autônoma. O domínio liberal e importador sempre impregnou nosso modo de viver.
Formar cultura transformadora – privatizar atrasa o Brasil
Para que tenhamos o País nacional trabalhista, que se identifique com o desejo de soberania e cidadania, tão necessariamente urgente, antes que vejamos o Brasil fragmentado entre os “gestores de ativos” mais poderosos, com Produto Interno Bruto (PIB) superiores ao nosso, precisamos criar nossa consciência nacional e não consciências identitárias como foram organizadas na atual estrutura administrativa do Brasil, desmembrando nossa nacionalidade.
As questões relativas à cidadania e muitas da soberania, por 400 anos, foram deixadas à iniciativa privada. O Estado se afastou totalmente delas. E no que resultou?
Um país de analfabetos, doente a ponto de afastar os capitais estrangeiros da capital, o Rio de Janeiro, conhecido por sua insalubridade, pela febre amarela, por doenças inexistentes em outras nações.
No campo da soberania, chegamos tarde à energia e, consequentemente, à industrialização.
Não há qualquer radicalismo ao reconhecer que o Brasil brasileiro começa com a Revolução de 1930 e na Era Vargas. E, contrariando a esquerda identitária, festiva e folgazã, os governos militares dos ex-tenentes de 1930 – Costa e Silva, Médici e Geisel, principalmente este último – deram continuidade ao Brasil do Estado Novo: de 10 de novembro de 1937 até 29 de outubro de 1945.
Sempre é mais fácil buscar a culpa do insucesso nos outros. Darcy Ribeiro escreve sobre a tendência de atribuir aos brasileiros a responsabilidade pela sua pobreza, pelo fator racial, pela religião católica e, até mesmo, pela língua portuguesa.
E, efetivamente, há na cultura pacifista e resiliente dos bantos certa acomodação e falta de resposta no mesmo nível às agressões sofridas pelos maus tratos e pela covardia dos colonizadores. Também pode se ver na acomodação do cunhadismo ou temericó, a resposta aquietada e preguiçosa da escravidão dos índios.
Por todo este passado, verifica-se a urgência da insurreição, da tardia revolução brasileira, para assumirmos nosso destino, com o pensamento nitidamente brasileiro do nacional trabalhismo. Estaremos quase 200 anos atrasados da Primeira Revolução Bolivariana, que ainda permanece viva, enfrentando os mesmos algozes de 1826 (Congresso do Panamá): a dominação monroísta.
(*) Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
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