Era 1986, quando a Assembleia Nacional Constituinte se reuniu para “instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”, como escrito no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil.
Desde então o Brasil deixava um longo período de ditadura militar, com apoio empresarial e dos grandes veículos de comunicação, envolvendo aí um jejum eleitoral, mas viemos nos afeiçoando ao exercício democrático – a livre organização partidária e social, ainda que moldada por uma sociedade marcadamente racista e patriarcal, exclui da participação em todas as esferas dos poderes as maiorias de seu povo, mas formalmente consolidou o sufrágio universal, a periodicidade das eleições executivas e parlamentares, e, estruturalmente, criou a votação eletrônica, conferindo mais segurança aos pleitos, sendo certo que a cada eleição o processo ganha mais em tecnologia garantidora da vontade política dos eleitores e eleitoras.
Para as eleições deste ano de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral totalizou os números – somos 154.454.011 milhões de eleitoras e eleitores em condições de votar, mas o percurso até o encerramento do processo eleitoral, com a diplomação das eleitas e eleitos, já mostra um temerário tensionamento, conforme dados do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GIEL/UNIRIO).
Trabalho instituído desde 2019, o Observatório levanta fatos de violência contra lideranças políticas, por meio do monitoramento das mídias – impressa, eletrônica e digital, sistematizando os casos que envolvam qualquer forma de agressão, da ameaça ao homicídio, hipótese que ganhou destaque nacional com o assassinato de uma liderança do PT em Foz do Iguaçu, Paraná, quando comemorava com familiares e amigos convidados, seus 50 anos de idade, tendo por mote decorativo da festa, o PT e o pré-candidato Lula. O crime foi praticado por um policial penal federal, que se identificava como bolsonarista, identificação mostrada por todas asmídias e confirmada por sua esposa em depoimento policial e a veículos de comunicação.
Na sequência do fato que mobilizou dirigentes políticos de todos os perfis ideológicos, veio de ser noticiado que em Maceió, Alagoas, uma mulher sofreu ameaça de um Policial Militar, porque usava camiseta com estampa do pré-candidato Lula, elevando os temores da escalada de violência política em face das eleições presidenciais.
Sobre o crime de Foz do Iguaçu, há que se realçar, com fundadas preocupações, a célere conclusão do inquérito policial instaurado para investigar o homicídio praticado por Jorge José da Rocha Guaranho,vitimando Marcelo Arruda, ao excluirda peça a motivação política do crime, trazendo grande estupefação no mundo jurídico, primeiro, porque a sequência dos fatos evidenciou que a ida do homicida à festa particular, em recinto fechado, proferindo palavras de ordem de conteúdo político, retornando ao local para praticar o crime, não permitiu tergiversar sobre as razões para tamanha violência; os mesmo sequer se conheciam, disseram a esposa do autor do crime e outros.
Ao assim proceder, a autoridade policial lança na cena política o debate acerca do devido tratamento pelo sistema de justiça, da mobilização política que reproduz em atos extremados, os discursos de ódio a permear ambiente que deveria ser defranca, transparente e democrática discussão sobre os graves problemas que assolam a população brasileira, notadamente a miséria e a fome que humilham nossas famílias.
Em face da beligerância que se desnuda, é preciso que as instituições garantidoras do funcionamento democrático do país assumam firmemente a condução dos feitos, restabelecendo a ordem jurídica violada, sob pena de sucumbirmos ao império do arbítrio, situando as disputas no campo próprio, sob os marcos civilizatórios, e na arena do debate, cabe trazer Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, pág. 104: “O que quer dizer que, mesmose acreditarmos que suas ideias sejam idiotas, nós não as vemos como uma ameaça existencial”.
Dada a gravidade que é a política ganhar as páginas policiais, é certo que o que se espera da sociedade, das instituições, é uma sólida demonstração de maturidade política, coesão em favor da democracia, vez que a terra arrasada por um modelo econômico predatório, agravada por sequelas da persistente pandemia em seus momentos mais agudos, impactando o SUS, a educação, gerando desemprego e trabalho precário, enfim, são gigantescos os problemas e desafios que as e os agentes políticos, públicos, precisam encarar e responder ao povo que não quer só comida, menos ainda ossos; quer cidadania, dignidade e respeito e o ambiente de paz é determinante para tal.
Por fim, ante as fragilidades que hoje sobressaem e assustam a vida institucional, volto à obra citada, pág. 81: “A erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos. Tomado individualmente, cada passoparece insignificante – nenhum deles aparenta de fato ameaçar a democracia”.
Brasília-DF, 15 de julho de 2022
(*) Por Vera Lúcia Santana Araújo, advogada, é integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno. Artigo exclusivo para o Jornal Brasil Popular.
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