Comissão Nacional da Verdade usa o termo ‘genocídio’ em alguns trechos do relatório, mas adota com mais frequência ‘graves violações de direitos humanos’
A principal lei de proteção dos povos indígenas do Brasil está prestes a completar 50 anos. Trata-se do Estatuto do Índio (Lei 6.001), que determina, entre outros pontos, que os indígenas têm direito à demarcação e à posse das terras que ocupam, devem ter seus valores culturais respeitados e precisam ser protegidos pelo Estado.
Não foi por benevolência, no entanto, que em 19 de dezembro de 1973 o presidente Emílio Garrastazu Médici assinou o Estatuto do Índio – em vigor até hoje.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a ditadura militar se empenhou na criação do estatuto porque o Brasil vinha sendo acusado no exterior de genocídio dos povos originários.
No entender dos militares, a nova lei neutralizaria as denúncias, que eram reiteradamente feitas por jornais, políticos e organismos estrangeiros.
Entre 1970 e 1973, período em que o projeto do Estatuto do Índio permaneceu em discussão no Congresso Nacional, senadores tanto da Arena quanto do MDB refutaram diversas vezes as acusações de genocídio.
O senador Vasconcelos Torres (Arena-RJ) discursou:
– Somos cinicamente acusados de genocídio, numa tremenda campanha de imprensa contra o Brasil de graves repercussões internacionais.
Para o senador Adalberto Sena (MDB-AC), não haveria problema se os jornais estrangeiros se limitassem a citar as arbitrariedades políticas do regime militar, como a cassação de mandatos:
– Nada teríamos a dizer disso, porque realmente constitui uma anormalidade. Contudo, eles têm deixado de lado esses fatos para se apegarem a mentiras. Uma dessas balelas é a de que tratamos mal e chegamos mesmo a matar índios. Todos sabemos que não é verdade. Não existe nenhuma ação governamental no intuito de eliminar aqueles que foram os primeiros habitantes da nossa terra.
O senador Mem de Sá (Arena-RS) ficou furioso ao saber que partiram acusações até do Senado dos EUA, mais especificamente do gabinete de Ted Kennedy, irmão do falecido presidente John Kennedy:
– É de pasmar que um senador que leva o nome Kennedy garanta com uma tranquilidade grotesca que “o governo brasileiro admitiu que o Serviço de Proteção ao Índio estava assassinando índios sistematicamente”. Esse bravo congressista, pelo que se depreende de sua verbiagem, reserva para governos sul-americanos a virilidade das agressões que não se anima a dirigir aos governantes de seu próprio país nem muito menos aos da Rússia, da China ou de Cuba. Se é contra o Brasil, vale tudo. Qualquer asseveração fantasiosa passa a ser dogma no discurso do senador de Massachusetts.
O senador Eurico Rezende (Arena-ES) contou aos colegas que sentiu na pele os efeitos dessa “campanha tremendamente mentirosa” quando esteve em Dakar, capital do Senegal, para proferir uma palestra numa universidade:
– Fui recepcionado com imensa vaia. Alguns estudantes mais exaltados não queriam que eu fizesse a conferência. Fiquei perplexo. O vice-reitor me disse que os jornais da Europa tinham intoxicado a opinião pública do Senegal noticiando que no Brasil se praticava o genocídio, isto é, que o governo estimulava o extermínio das tribos. Com muita dificuldade, falei alguma coisa.
Não pude terminar a conferência. Quase toda a imprensa alemã e parte da imprensa francesa cometem uma injustiça para com o Brasil, exibindo uma mentira que contaminou a África inteira.
O senador Benedito Ferreira (Arena-GO) apontou o jornal francês Le Monde como um dos mais engajados:
– O “Le Monde”, comprometido com o esquerdismo, muito se prestou à terrível campanha provavelmente por haver a afinidade da raça [entre Brasil e França], por existirem ligações históricas ou por lá terem montado o tristemente famoso “comitê” de tentativa de desmoralizar e comunizar o Brasil.
De acordo com o senador José Lindoso (Arena-AM), as acusações de genocídio não condiziam com a índole do brasileiro:
– O índio representa aquele que foi o dono primeiro da terra, com o qual estamos dialogando na construção de uma civilização, esta civilização brasileira representada por uma democracia racial, sem abismos entre grupos de raças ou de qualquer outra espécie, porque as pontes são as da solidariedade, do diálogo e da fraternidade cristã.
Na defesa do governo, o senador Luiz Cavalcante (Arena-AL) foi ainda mais longe:
– Médici é hoje nome que está até na maloca dos índios. E não somente maloca. Também está nos corações dos que nela habitam.
De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, pelo menos 8.350 indígenas morreram comprovadamente em decorrência de violências diretas e omissões do governo brasileiro entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar (1964-1985).
O documento avalia que o número real de mortos deve ser “exponencialmente maior” mas é impossível de ser determinado porque muitos casos não foram documentados.
A virada dos anos 1960 para os anos 1970 foi caracterizada pelo incentivo da ditadura à ocupação da Amazônia. Os generais no poder acreditavam que essa era uma região despovoada e, como tal, vulnerável a infiltrações “subversivas” e invasões estrangeiras.
Com o intuito de garantir a segurança nacional e, ao mesmo tempo, construir o “Brasil grande” o governo militar investiu pesado na abertura de espaços na floresta para nela assentar pequenos colonos oriundos de outros pontos do país, permitir a instalação de grandes empreendimentos agropecuários, liberar a extração de madeiras e minérios e construir rodovias e usinas hidrelétricas.
Em 1970, por exemplo, o general Médici lançou o Programa de Integração Nacional (PIN), que incluiu a abertura da rodovia Transamazônica, entre o Amazonas e a Paraíba, e a criação de vilas e comunidades rurais às suas margens. Os slogans do PIN foram “integrar para não entregar” e “terra sem homens para homens sem terra”.
A Amazônia, contudo, não era uma terra sem homens. Os grupos indígenas que viviam nos locais das obras tiveram que sair. Alguns deles jamais haviam tido contato com os brancos.
Cabia à Fundação Nacional do Índio (Funai), comandada por militares, fazer o primeiro contato e tentar convencê-los a se mudarem. Os indígenas que aceitavam acabavam por vezes sendo transferidos para lugares inadequados, sem condições de subsistência ou perto de grupos inimigos.
Os que não aceitavam a mudança por bem, por sua vez, saíam por mal. Os embates entre os indígenas e as forças de segurança pública ou os vigias das obras eram corriqueiros e resultavam em mortes e até massacres. As flechas não tinham como fazer frente às balas.
Embora os problemas tenham sido mais frequentes no Norte, os indígenas foram considerados obstáculos a projetos da ditadura em todas as regiões do Brasil.
O jornalista Rubens Valente, repórter da Agência Pública e autor do livro “Os Fuzis e as Flechas: a história de sangue e resistência indígenas na ditadura” (editora Companhia das Letras), explica por que os generais no poder tinham tanta aversão à palavra “genocídio”.
– Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, a ONU enquadrou o genocídio como crime contra o direito internacional, e o Brasil ratificou a convenção. Por isso, se houvesse alguma acusação formal contra o país, o governo seria julgado pelos tribunais internacionais e poderia ser condenado. Era tudo que a ditadura não queria. A palavra “genocídio” era combatida de todas as formas.
A Comissão Nacional da Verdade usa o termo “genocídio” em alguns trechos do relatório, mas adota com mais frequência a expressão “graves violações de direitos humanos”.
– Trata-se de uma discussão que não é simples, porque envolve a conceituação jurídica de “genocídio” – continua Valente. – De qualquer forma, os povos indígenas que foram submetidos a tantas violações e sofreram perdas monumentais de vidas humanas sentem que o que sofreram foi, sim, um genocídio.
Mais tarde, em 1980, o Brasil foi condenado pela quarta sessão do Tribunal Russell, em Roterdã, por violar direitos humanos dos povos waimiri atroari, ianomâmi, nambikwara e kaingang de manguerinha.
Os documentos históricos do Arquivo do Senado indicam que os parlamentares conheciam a realidade.
Em 1968, antes de o governo propor a criação do Estatuto do Índio, o senador Aurélio Vianna (MDB-Guanabara) leu para os colegas uma reportagem do Correio da Manhã sobre o chamado Relatório Figueiredo, um extenso documento resultante de uma investigação sobre os abusos cometidos pelo Estado brasileiro contra os indígenas. Foi esse escândalo que deflagrou as críticas internacionais.
O jornal avaliou que as violências descritas no Relatório Figueiredo “só encontram paralelo na ação de extermínio em massa praticada pelo Nazismo”. O Correio da Manhã seria fechado em 1974, sufocado financeiramente pela ditadura.
– Causou-me profunda revolta. A impressão que se tem é a de que o nosso país, pela irresponsabilidade de certos dos seus dirigentes, transformou-se numa segunda Rodésia – discursou Vianna, citando a matança no país africano em guerra civil.
– Se o mundo está revoltado pela execução daqueles grupos humanos que vêm lutando pelo direito de ser cidadãos da própria pátria, o que não dirá do genocídio que se vem praticando no Brasil por autoridades governamentais? Muitas vezes nos comovemos quando um africano é assassinado barbaramente e até achamos graça quando se fala no assassinato de um índio.
O senador Clodomir Millet (Arena-MA) também ficou chocado com a reportagem:
– É costume em nosso país usar-se mal a palavra. Chama-se de selvagens, entre nós, essas pobres vítimas indefesas e inermes da fúria sanguinária e selvagem de homens ditos civilizados.
Em 1973, pedindo a aprovação do Estatuto do Índio, o senador fluminense Vasconcelos Torres mencionou o marechal Cândido Rondon, sertanista que primeiro dirigiu o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e se imortalizou pela defesa das populações indígenas na primeira metade do século XX, e afirmou:
– Os êmulos [antagonistas] de Rondon no SPI se deixaram embotar [cegar] na preservação dos seus ideais humanísticos a ponto de ter sido aquela sigla traduzida, na linguagem candente do ministro [do Interior] Albuquerque Lima, como “Serviço de Prostituição dos Índios”.
O senador Nelson Carneiro (MDB-Guanabara) apresentou um requerimento para que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado se manifestasse sobre a veracidade da denúncia noticiada pelo Jornal do Brasil de que em Resplendor (MG) existia um presídio ou reformatório exclusivo para indígenas da etnia krenak.
A ideia original de Carneiro era pedir uma comissão parlamentar de inquérito sobre o caso, mas mudou de estratégia por saber que a oposição não tinha força suficiente para criar CPIs que não fossem do interesse da ditadura.
Numa crítica velada ao regime militar, o senador do MDB argumentou:
– A constatação do que realmente ocorre [em Resplendor] poderá sugerir à douta Comissão de Constituição e Justiça [a elaboração de uma] proposição que discipline a recuperação dos índios delinquentes e certamente ajudará o governo em seu empenho de contraditar os que, no estrangeiro, acusam o Brasil de sistemática política de destruição dos remanescentes indígenas no país.
Na CCJ, a análise inicial coube ao senador governista Osires Teixeira (Arena-GO), que pediu e conseguiu o arquivamento do pedido de Carneiro. Teixeira respondeu:
– A Funai não mantém colônia penal em área alguma sob sua jurisdição, não sendo verdadeiras as informações da reportagem. O que a Funai mantém em Resplendor é uma colônia para reeducação de índios desajustados do seu ambiente social. O recolhimento só se faz a pedido da própria comunidade, cujos tuxauas [chefes indígenas] também são consultados pela Funai sobre o retorno do membro faltoso ao seio tribal quando esta já o considera recuperado. Na colônia se ministram cursos de tratorista, capataz rural, oleiro, pedreiro, carpinteiro e horticultor, com o objetivo de ensinar algo de útil que posteriormente será transmitido à própria comunidade.
A recente Comissão Nacional da Verdade concluiu que o que havia em Resplendor era, sim, uma cadeia indígena e que nela ocorreram “trabalho forçado”, “desaparecimento de prisioneiros” e até “morte por tortura no tronco”.
O senador Danton Jobim (MDB-Guanabara) avaliou que a situação das populações originárias era mesmo dramática, mas seria exagero qualificá-la de “genocídio”
– Tem havido fatos lamentáveis, deprimentes e ignominiosos envolvendo silvícolas nas margens da Transamazônica, cuja autenticidade não comporta desmentidos, pois o próprio governo os denunciou. Tem sido difícil às autoridades deter a cobiça dos chamados brancos ou civilizados que se situam perto ou dentro de terras indígenas. Incidentes se sucedem em episódios crudelíssimos, cenas hediondas. No entanto, o suposto genocídio não se pode caracterizar como tal, pois não é fruto de nenhuma política oficial deliberada, mas episódios ligados à luta de posseiros ou grileiros com índios que defendiam seus territórios.
Para o senador Ruy Santos (Arena-BA), o problema todo era imunológico:
– Vou dar uma informação a respeito do genocídio de índios, que, como médico, sempre acompanhei. Há uma razão muito simples para a mortandade: quando entram em contato com a civilização, não estão com a imunidade natural que nós, que vivemos aqui, temos. Se formos apurar os dados estatísticos, encontraremos cifras altas de mortalidade por sarampo, por exemplo.
As doenças, de fato, pesaram. A Comissão Nacional da Verdade afirma, porém, que em certos casos as doenças foram introduzidas em aldeias propositalmente e em outras situações o poder público simplesmente se omitiu e deixou de oferecer vacinas antes da chegada da “civilização” às terras indígenas.
Do Monitor Mercantil com informações da Agência Senado
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