As esquerdas sempre lidaram mal com a caçada da ditadura aos militares que se opuseram ao golpe de 64. Lidaram mal com a caçada, as sequelas e a memória.
Omitiram-se por conveniência política, desinformação e por covardia. Por conveniência porque era preciso, depois da anistia, exaltar o feito dos políticos e militantes civis retornados após anos de exílio.
Os políticos anistiados tinham a possibilidade de retomar os sonhos, a carreira e em especial os projetos eleitorais. Eles eram de novo os protagonistas da democracia.
Os militares perseguidos e cassados estavam condenados a não serem mais nada, porque a anistia não significava muita coisa para eles e para servidores públicos civis na mesma situação.
Tivemos assassinados, desaparecidos e torturados identificados e tivemos também militares perseguidos que ficaram invisíveis.
Os militares perderam carreiras e empregos, foram humilhados, vigiados. Muitos foram presos, torturados e transformados em párias já sem farda.
Foram mais de 6 mil militares, de todas as patentes, com a vida destruída pelos ditadores.
Ninguém falava deles, porque eles não tinham votos, com a chance da reabilitação gloriosa de uma eleição, e não dispunham nem mesmo de um discurso público.
Os militares não tinham tribuna, nem trincheira, nem proteção de ninguém importante. E a população nada sabia deles por causa da ignorância produzida pela ditadura.
E temos então o terceiro motivo pelo qual os militares caçados foram abandonados. Os anistiados e os recém-chegados à política da distensão não queriam broncas com os militares que ficaram mais de duas décadas no poder.
Prevaleceu o apelo de que era preciso pacificar o país. Não falem da perseguição aos militares discordantes da ditadura massacrados pelos próprios militares.
A defesa dos mais de 6 mil cercados e caçados poderia ser confundida com o alinhamento à luta e à memória dos que afrontaram hierarquias e comandos e, como minoria, pegaram em armas.
Falar do drama dos militares insubordinados era correr, entre outros, o risco de induzir a uma confusão com as ações de Carlos Lamarca?
É assim que os militares perseguidos desde o primeiro dia do golpe e depois cassados e afastados dos quartéis só vão reaparecer como vítimas da ditadura cinco décadas depois, pelo menos para o grande público, porque seus dramas engavetados finalmente são revelados pela Comissão Nacional da Verdade.
Antes, ninguém sabia quase nada sobre a morte em vida desses mais de 6 mil brasileiros que os militares consideravam conspiradores contra a democracia, porque o golpista sempre diz defender a democracia.
É uma omissão que as esquerdas trataram como tabu, um esquecimento constrangido e abafado, mesmo que dos 436 mortos e desaparecidos na ditatura, 35 sejam militares.
Tentemos imaginar hoje o sentimento dos sobreviventes de famílias de oficiais, tenentes, sargentos e cabos caçados pelos próprios colegas, dedurados e considerados traidores.
O que sente hoje o filho de um militar perseguido pela ditadura, diante da informação de que oficiais do entorno de Bolsonaro tramavam um golpe contra a democracia?
O que pensa o filho de um militar expulso do quartel, que viu a família perder trabalho, renda e perspectivas, que viu pai e mãe mudarem-se de cidade para escapar de perseguições?
O que os netos de um militar que teve a vida destruída depois de 64 pensam de coronéis que articulavam agora um golpe com o colega coronel ajudante de ordens de Bolsonaro?
O que eles acham de uma das conversas de Mauro Cid com o coronel Jean Lawand em que o último, frustrado com o fracasso do golpe, se preocupa em avisar os que durante 52 dias estavam cagando em banheiros químicos nos acampamentos.
Essa era a preocupação do coronel golpista. Avisar os desatinados que cagavam na rua sob a proteção dos militares e pedir para que voltassem para casa.
O que o filho de um coronel cassado depois de 64 pensa dos coronéis encarregados da cobertura a manés e terroristas que defecavam na frente do QG do Exército em Brasília?
Pela memória dos que tentaram resistir contra a ditadura, os golpistas de Bolsonaro devem passar pelo processo que eles, os perseguidos pós-64, não passaram.
Devem ser julgados como traidores da democracia e das Forças Armadas, não pelos próprios militares, mas pela Justiça comum que vai julgar todos os golpistas.
E devem ser expulsos dos quartéis por traição, por desonra e por incompetência por terem fracassado até como guardinhas de banheiros químicos.
(*) Por Moisés Mendes, jornalista em Porto Alegre. Foi colunista e editor especial de Zero Hora. Escreve também para os jornais Extra Classe, Jornalistas pela Democracia e Brasil 247. É autor do livro de crônicas ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim).
Texto reproduzido do site RED, o qual foi publicado, originalmente, no Blog do Moisés Mendes.
Foto: Reprodução.
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