O Ministro da Defesa, José Múcio, causou alvoroço com suas declarações, de lamentável franqueza, indicando não ter nenhuma sensibilidade política ou humana em relação à tragédia palestina, um povo vítima de um genocídio deliberado, praticado por Israel com apoio inequívoco dos EUA, que lhes fornece dinheiro e armas. Para Múcio, “questões ideológicas” estão atrapalhando contratos comerciais entre Brasil e Israel na sensível área de defesa (armas), com licitações já realizadas. Com isso, Múcio parece mais um porta-voz dos interesses israelenses no Brasil do que um ministro de Estado brasileiro, já que é pública, até corajosa, a posição do Presidente Lula, rotulando de genocídio a ação sanguinária do governo de Israel, que transformou, como disse, “o direito de defesa em direito de vingança contra todo um povo”.
Assim como o divórcio entre Lula e Múcio nessa questão, que comove a humanidade, é robusto, também fica revelado que o poderio do lobby israelense na esfera de Defesa do Brasil é de tal magnitude que o Presidente nem cogita a demissão de seu assessor, que segue desafinando uma já muito desafinada política externa brasileira. Há temas sensíveis e explosivos – adjetivo mais apropriado –, que Lula não quer, não pode e nem tem força para tratar em sintonia com a ótica de seus próprios pronunciamentos. Recentemente, na ONU, em um gesto forte e sincero que horrorizou o governo matador de Israel, Lula saudou especialmente a presença do Presidente Palestino, que ali estava pela primeira vez, e foi além, dando-lhe um fraterno abraço, imagem que jamais será perdoada pelo sionismo. Isso deveria ser fortemente valorizado pela segurança presidencial, já que o Ministro da Defesa anda em outra onda.
Medidas práticas para isolar Israel
Porém, o tema que surge nesta questão é a necessidade, ou até mesmo a obrigatoriedade, das nações tomarem medidas práticas para isolar e debilitar o governo genocida de Israel, já que a simples adoção de declarações, moções e votos de censura contra essa monstruosidade israelense soa como caricatura e hipocrisia, marcada por sua absoluta ineficiência. É neste contexto que entra o Ministro Múcio, demarcando posições – não terras indígenas, como prevê nossa Constituição –, mas enviando uma ácida mensagem aos brasileiros, na qual, de uma só vez, desautoriza a generosa solidariedade de Lula aos palestinos e também indica que, não importa quantos milhares de palestinos morram, os contratos devem ser cumpridos. E dane-se o resto. E não se trata apenas da compra de armamentos ou tecnologia de defesa, mas também da exportação de petróleo brasileiro para Israel, certamente usado para movimentar a máquina de matar israelense, que já destruiu Gaza, agora destrói o Líbano, ataca a Síria, o Irã, o Iraque e o Iêmen.
A palidez da posição brasileira frente à obrigação do Brasil, e de todos os países democráticos, de parar o genocídio israelense vai ficando cada vez mais nítida. Frente às exigências dos contratos bilaterais Brasil e Israel, as declarações de Lula vão ganhando tom de retórica, pois o congelamento de contratos e a suspensão do comércio bilateral são opções que competem ao chefe de Estado. Sem medidas fortes por parte do Brasil, uma certa tolerância com essa matança desvairada poderá ser a única explicação plausível. “Sou contra o genocídio, mas não posso fazer nada?” seria a síntese? Mas, então, por que outros países podem e estão fazendo muito mais? E o próprio Brasil já fez muito mais.
Vargas foi o primeiro país nas Américas a romper com Hitler
O governo Getúlio Vargas, que tem sido tão elogiado nos discursos recentes do presidente Lula, adotou uma série de medidas contra o nazismo. Primeiro, expulsou o embaixador alemão no Brasil. Depois, proibiu as escolas alemãs e as rádios de disseminarem idioma e ideologia nazista em território brasileiro. Em seguida, Vargas foi o primeiro governo nas Américas a romper relações com a Alemanha de Hitler. E foi além: como parte do esforço de guerra contra o nazi-fascismo, consentiu com a instalação de bases aeronavais no Nordeste do Brasil, além de enviar tropas para lutar na Europa, pelo que o povo italiano até hoje nos deve pela ajuda que demos em enterrar o fascismo de Mussolini e derrotar os alemães na Itália. Perón, por exemplo, levou a Argentina à neutralidade diante do nazi-fascismo, enquanto o Brasil foi o único país da América Latina a enviar tropas para enfrentar o nazismo.
Claro que, do ponto de vista militar, hoje, depois da privatização de Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso, Temer e Bolsonaro, com a instalação do Estado Mínimo, a indústria de defesa brasileira foi perigosamente reduzida. Um desarmamento unilateral. Vale citar que nosso programa espacial está praticamente paralisado, após sofrer, em 2003, um suspeitíssimo acidente que eliminou toda a cúpula dos melhores cientistas que o conduziam. Fato até hoje não esclarecido, o que faz acumular ainda maiores e sinistras interrogações.
Enquanto o Programa Espacial Brasileiro está paralisado desde aquela explosão de 2003, o Irã, há 45 anos, desde o início de sua Revolução, desenvolve uma indústria de defesa moderna, com tecnologia própria, e um programa espacial que lhe permitiu alcançar a construção de mísseis balísticos hipersônicos, além do lançamento de naves tripuladas ao espaço. Isso o faz tão respeitado na região, tendo assumido, nos últimos anos, o papel de principal defensor da Causa Palestina, cuja missão consta de sua Constituição – talvez o único país a assumir a solidariedade à Palestina como tarefa estatal. Diante do abandono do Programa Espacial Brasileiro e da alienação da Base de Alcântara, a alegada necessidade de fortalecimento da Defesa, preconizada por Múcio, soa como fraseologia.
Múcio desautoriza a solidariedade de Lula à Palestina?
O curioso é que a extravagante posição do Ministro Múcio, desautorizando a solidariedade do Presidente à Palestina, encontra, em alas do campo progressista, uma contraditória tolerância. Alguns chegam a mencionar que não se pode confundir política externa com comércio, o que chancela, em última instância, a política de Múcio. Até parece que um comércio bilateral entre Brasil e Israel, que não ultrapassa 2 bilhões de dólares por ano, tem alguma relevância dentro do comércio global brasileiro na escala dos trilhões. Ademais, vale questionar se uma inadequada dependência tecnológica em relação a Israel contribui, de fato, para uma soberana política de defesa brasileira, que vem sendo debilitada há décadas, pois caminha junto com a desindustrialização do país, cuja reversão o próprio presidente Lula coloca como uma das prioridades de seu governo. Será Israel o parceiro mais indicado?
Quando Getúlio Vargas rompeu relações com o governo Hitler, a Alemanha era um dos polos centrais do capitalismo mundial, o que não intimidou o governo brasileiro então. Aliás, praticamente todos os países do mundo, inclusive a URSS, mantinham relações comerciais com a Alemanha, relações que os EUA, por meio de seus principais oligopólios, entre eles a IBM, jamais romperam. Não foi esse o cálculo econômico do governo Vargas, então. Aliás, no Pacto de Não Agressão firmado entre URSS e Alemanha, Stalin manteve o fornecimento de petróleo aos germânicos, posteriormente utilizado na invasão hitlerista à União Soviética, apesar de todos os alertas de Trotsky no sentido contrário.
Não seria nenhuma tragédia para o comércio internacional brasileiro a suspensão, congelamento ou mesmo a ruptura de relações com um país que desafia e pisoteia os padrões civilizatórios mais acanhados. O Brasil só estaria junto com a tendência crescente na humanidade, que visa adotar posições concretas, práticas e materiais, que debilitem e isolem Israel. E possui muitas alternativas para compensar a ruptura desses contratos. Com a China, por exemplo.
E se o Iêmen bloquear navio com carga brasileira para Israel?
Cortar o fornecimento de petróleo brasileiro a Israel permitiria ao Brasil somar-se à corajosa posição de países como Argélia, Iêmen e Iraque, que prometem interromper as vias de abastecimento de combustível caso Israel ataque o Irã. Os países do Golfo, monarquias mais tolerantes ao sionismo, já se comprometeram com o Irã em não adotar a posição de neutralidade que os caracteriza em caso de nova agressão israelense aos persas. E o Brasil? Vai permitir que prevaleça a rudimentar posição do Ministro Múcio, supervalorizando um mesquinho comércio de apenas 2 bilhões de dólares e superdimensionando um contrato como se fosse a única alternativa viável, o que nos levaria, como Estado e país, a fechar os olhos e lavar as mãos diante da carnificina israelense transmitida pela TV diariamente ao mundo?
Essa posição insustentável do governo pode nos levar a uma vergonhosa e acovardada situação. Com a coragem que lhe confere sua sincera posição de solidariedade prática e concreta aos palestinos, o Iêmen está realizando, com pleno direito derivado das Resoluções da ONU, um bloqueio naval no Mar Vermelho, bombardeando navios dos EUA e da Inglaterra, entre outros, que se atrevam a abastecer de petróleo e comida o regime macabro de Israel. Seria lamentável, vergonhoso mesmo, triste para o Presidente Lula se um desses navios atingidos estivesse carregando petróleo, grãos ou carne do Brasil, direcionados a Israel. O Brasil se tornaria alvo por conta de uma posição sustentada pelo Ministro Múcio, quando o governo tem ao seu alcance um leque de medidas práticas que, de fato, ajudem a debilitar e isolar a macabra máquina de matar sionista.
Mas o Ministro Múcio, e a posição por ele sustentada, que inclui até gente progressista, em troca de alguns contratos comerciais, jogará o Brasil do presidente Lula na lata de lixo da história junto a países como EUA, França, Inglaterra e Alemanha, que abastecem com armas e dinheiro o terrorismo estatal israelense. Nenhum desses contratos vale mais que o direito do povo palestino à vida e a ter um país organizado, reconhecido e respeitado mundialmente. Aliás, como deseja o presidente Lula.
(*) Beto Almeida (Carlos Alberto Almeida), jornalista graduado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), fundador do Jornal Brasil Popular, diretor-fundador da TV Comunitária de Brasília, membro da Junta Diretiva da rede de televisão multiestatal para a América Televisión del Sur (TeleSUR), com sede na Venezuela, onde é editor e apresentador do programa Latitud Brasil. É comentarista internacional, membro do Conselho Consultivo da TV Comunitária de Brasília, um dos editores e apresentadores do programa Tecendo o Amanhã, da TV Comunitária do Rio, e membro da Rede de Intelectuais e Artistas em Defesa da Humanidade.