A Eletrobras é a sexta empresa brasileira de capital aberto em valor de mercado. Entre 2018 e 2020, registrou R$ 30 bilhões de lucro líquido, dos quais R$ 6,4 bilhões no ano passado, em meio à pandemia de Covid-19. Controla 164 usinas hidrelétricas, termelétricas e nucleares, com capacidade instalada de 42.000 megawatts (MW), um terço da geração de eletricidade nacional.
Além disto, possui 58 mil quilômetros de linhas de transmissão (57% do total nacional) e tem o maior centro de pesquisas de eletricidade do Hemisfério Sul, o Cepel (Centro de Pesquisas de Energia Elétrica), responsável pelo desenvolvimento de softwares, ensaios de equipamentos e sistemas e outras atividades cruciais para o setor, atuando em parceria com universidades e outros centros de pesquisa na qualificação de recursos humanos.
Sob quaisquer critérios, é uma empresa estratégica, rentável e de cujo controle o Estado brasileiro não pode prescindir. Até porque não há qualquer motivo que justifique a transferência do controle a grupos privados ou a empresas estatais estrangeiras – que já controlam uma fatia considerável do setor elétrico no País (81% das aquisições e fusões realizadas entre 2016 e 2018) -, como pretende a ala ultraliberal do governo, agrupada em torno do ministro da Economia Paulo Guedes.
No último dia 19 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou sem qualquer discussão relevante a Medida Provisória (MP) 1031/21 para a privatização da empresa, em um afã incompatível com a importância do assunto, ainda mais em um momento em que a prioridade das atenções deve ser dada à emergência sanitária e socioeconômica. E apenas desinformados, iludidos ou fundamentalistas ultraliberais podem acreditar que a venda da empresa traria algum benefício à sociedade, como insiste Guedes, agora, alardeando a falaciosa proposta de que a venda das empresas estatais seria benéfica para o combate à desigualdade.
No setor elétrico, o que se viu até agora foi exatamente o oposto. Na década de 1990, antes do início do afã privatizante desfechado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil tinha uma das tarifas elétricas mais baixas do mundo, com um sistema majoritariamente hidrelétrico, confiável, referência mundial na área e estruturado para assegurar as necessidades de crescimento da economia e da população em geral. Na época, uma das promessas, repetida ad nauseam na grande mídia, era a de que a “competição” traria tarifas mais baixas para os consumidores, tanto comerciais como residenciais.
Hoje, a tarifa média brasileira é a segunda mais cara do mundo em paridade de poder de compra, segundo os critérios da Agência Internacional de Energia. A base hidrelétrica caiu de 85% para cerca de 65% e segue caindo, com a construção crescente de termelétricas de altos custos operacionais e parques eólicos e solares, que não podem operar na base do sistema (geração contínua), devido à sua intermitência.
E, em vez de ter a sua expansão e operação orientada para as necessidades dos consumidores, a motivação central do setor passou a ser a geração rápida de lucros para os acionistas das empresas e, para o governo, obter receitas das vendas das empresas para alimentar o serviço da dívida pública.
Além das tarifas estratosféricas, a confiabilidade do sistema diminuiu consideravelmente, como ficou evidenciado no célebre “apagão” de 2000-2001 e, mais recentemente, no que deixou o Amapá às escuras durante três semanas, no final de 2020, escancarando as deficiências e os problemas da operação privada orientada exclusivamente para os lucros.
Na ocasião, a concessionária Linhas de Macapá Transmissora de Energia, controlada pelo grupo espanhol Isolux Corsan, não tinha sequer técnicos para a manutenção regular das suas instalações, sendo necessária a intervenção de técnicos da Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, para restabelecer o serviço.
A Eletrobras é uma das empresas mais simbólicas da grande capacidade dos brasileiros de enfrentar com soluções criativas e próprias os problemas do seu desenvolvimento, rivalizando em importância com a Petrobras, Vale do Rio Doce, Embratel, Embrapa, Embraer, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras, algumas já privatizadas, mas cuja criação resultou do compromisso dos seus idealizadores com a agenda do progresso nacional.
Idealizada ao final do segundo governo de Getúlio Vargas, em 1954, a criação da Eletrobras enfrentou toda sorte de pressões contrárias por parte dos paulos guedes da época, que atendiam por sobrenomes como Gudin, Chateubriand, Cotrim, Campos e outros menos votados. Em essência, os mesmos que se opuseram ferreamente à criação da Petrobras, fundada no ano anterior, ardentes adeptos da falaciosa tese da “vocação agrícola” do País e contrários a qualquer esforço de desenvolvimento soberano – o discurso atual mudou ligeiramente, mas continua refratário às iniciativas nacionais.
Por conta disto, a empresa só começou a funcionar em 1962, no governo de João Goulart, quando a capacidade de geração instalada em todo o País não passava de 5.700 MW e a pequena disponibilidade de eletricidade se mostrava um grande obstáculo para a modernização da economia.
Entre parênteses, a privatização da Eletrobras parece ser a principal motivação de Guedes para aferrar-se a um cargo do qual qualquer pessoa com um mínimo de brios já teria se retirado, principalmente, pelos pífios resultados de sua política econômica (MSIa Informa, “Os cálculos de Paulo Guedes”, 17/05/2021).
Em relativamente pouco tempo, a Eletrobras forjou uma equipe de profissionais de primeira linha, que planejaram e construíram um dos sistemas de geração mais eficientes e de melhor custo/benefício do mundo, com uma combinação perfeita entre as características físicas e as necessidades do Brasil. O sistema foi construído com base em usinas hidrelétricas com grandes reservatórios de regularização das vazões das bacias hidrográficas dos rios São Francisco e Paraná, interligadas por redes de transmissão capazes de transmitir energia a um número crescente de regiões, de acordo com as diferenças dos períodos de cheias e de secas dos rios, minimizando os riscos decorrentes de estiagens excepcionais, como a que volta a ameaçar o País este ano.
A rigor, o seu único grande “pecado” foi a construção de barragens em rios navegáveis sem eclusas para viabilizar o transporte hidroviário, embora isto não fosse atribuição específica da empresa.
Tais avanços ocorreram em paralelo com a capacitação de grandes empresas de engenharia civil para o projeto e a construção de barragens, usinas, linhas de transmissão e numerosas outras obras de infraestrutura, desenvolvendo tecnologias adequadas aos solos e climas nacionais, façanha ainda pouco conhecida da maioria dos brasileiros.
Embora não detenha mais as atribuições de empresa centralizadora e coordenadora do sistema elétrico, retirada pelo modelo mercantilista-privatista hegemônico a partir dos anos 90, a Eletrobras ainda desempenha um papel fundamental no setor. E, a julgar pelos precedentes, a renúncia do Estado ao seu controle poderá ter sérios impactos negativos na expansão da oferta de eletricidade a custos razoáveis, que será imprescindível a qualquer esforço de retomada do desenvolvimento nacional.
Por conseguinte, está nas mãos do Senado, onde a MP deverá ser votada em junho, recolocar a questão no âmbito dos interesses maiores do País, e não dos que o veem apenas como um gigantesco “balcão de negócios”.
(*) Por Resenha Estratégica. Movimento de Solidariedade Ibero-Americana
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