Vandana Shiva (Dehradun, Índia, 1952) participou na conferência Crise climática, ecofeminismo e bem-estar animal do Encontro Internacional Feminista organizado pelo Ministério de Igualdade em 25 de fevereiro. Nesta entrevista, realizada nesse dia, chama a atenção sobre algo: é a única mesa prevista neste encontro para falar sobre ecologia e feminismo, ainda que há mais de cem conferencistas.
Física, filósofa e escritora, em 1982 criou a Fundação para a Investigação Científica, Tecnológica e Ecológica para proteger a biodiversidade e, concretamente, as sementes, ante as práticas expansivas e privatizadoras da Monsanto —corporação que impõe suas sementes modificadas geneticamente—. A revista Time a definiu como uma “heroína meioambiental” e é autora de numerosos livros de referência no ecofeminismo, entre eles Quem alimenta ao mundo? [Capitán Swing, 2018]. A ovação que recebe no auditório, absolutamente lotado, é uma pequena mostra de sua influência.
Em sua intervenção expôs grandes desafios e, ao mesmo tempo, falou de coisas muito pequenas, tais como os micróbios. Como podem os micróbios nos ajudar a deixar de destruir o planeta?
Há uma cosmovisão mecanicista que vai lado a lado com a teoria dos germes de que cada micróbio é uma coisa perigosa que vai nos atacar. Inclusive durante a época do covid muitos cientistas falaram de como tínhamos que acabar com o vírus. Porém somos vírus em 90%, somos micróbios andantes e biomas andantes.
Como os micróbios podem nos ajudar? Em primeiro lugar, podem nos tornar mais humildes ao nos ajudar a recordar que são os seres mais antigos deste planeta, mais que as plantas. Em segundo lugar, podem nos ajudar regenerando a ideia dos ciclos. Porque o que o colonialismo com o extrativismo e com o industrialismo faz é acelerar a ideia de que as matérias-primas são extraídas da terra. A cosmovisão mecanicista criou uma linearidade e um reducionismo do pensamento. Inclusive agora muitos dos movimentos estão equivocados porque de alguma maneira pensam que se pode separar as plantas dos animais e os micróbios das plantas… E ninguém defende aos micróbios…
Bem, você sim…
Não se dão conta de que a vida é um ciclo! Quando nossa vida se acabe, seremos alimento para os micróbios. Podemos aprender dos micróbios a humildade, a nos desfazer da arrogância antropocêntrica e nos dar conta de que a pequenez, na realidade, é uma fonte de poder.
Outras coisa pequenas que são muito importantes em sua carreira são as sementes. Confia nas lições que as sementes possam nos dar?
Confio nas sementes depois de passar quase quatro décadas com elas. Eu não sabia nada de sementes quando comecei, tive que aprender tudo. Comecei porque a indústria que nos trouxe os produtos químicos, os pesticidas, numa reunião celebrada em 1987, disse muito claramente que a razão principal pela qual temos que fazer engenharia genética é para poder obter patentes de sementes. E a razão principal pela qual necessitamos de um tratado internacional era impedir que os agricultores guardem sementes para que todas as sementes fiquem em monopólio.
Expuseram-no e [eu] disse que a ideia de que todas as sementes lhes pertencessem é obra do imperialismo. Imagina o que passará com os campesinos se têm que comprar sementes todos os anos: se endividarão mais. Posso imaginar inclusive que se suicidarão e, de fato, é uma das razões dos suicídios de agricultores na Índia: 400.000 agricultores se suicidaram e a razão principal é a dívida por produtos químicos e sementes. Oitenta e cinco por cento dos suicídios são realizados na zona algodoeira e 95% do algodão estão controlados pela Monsanto e por uma empresa de algodão.
Então, o que as sementes nos podem ensinar? As sementes podem nos ensinar a renovação, a regeneração. Todo mundo fala de regeneração, porém se tu queres aprender [sobre] a regeneração, aprende da semente. Se tomas uma pequena semente, obterás uma nova geração. Porém não só te dá outra: te dá cem, mil, 100.000 sementes. Portanto, as sementes podem nos ensinar como superar a falsa construção patriarcal da escassez e te mostram a abundância. E a terceira coisa que nos ensinam as sementes é que uma semente se converte em planta, porém a próxima geração de sementes a produzem os polinizadores: o crescimento da planta é uma combinação do trabalho dos organismos do solo e do sol. Assim que as sementes também podem nos ensinar a cooperar.
Lamento levá-la a outros cenários, como a guerra na Ucrânia. Esta guerra tem demonstrado aos europeus os limites de nossos recursos. Aprendemos que os recursos não estão disponíveis todo o tempo para nós. Crê que essa é a lição que o norte global necessita aprender?
Penso duas coisas sobre a guerra na Ucrânia e é que, na realidade, se trata de uma crise da democracia. E a crise começou em 2014, quando o governo eleito foi derrocado pela interferência dos Estados Unidos. Isso também levou à guerra já em grandes partes da Ucrânia, nas partes orientais. Se está travando uma guerra onde morre gente todos os dias.
Outra coisa que já estava clara, inclusive antes que a Rússia invadisse a Ucrânia há um ano, é o fato de que já se estavam apoderando de seus recursos. A metade das terras de cultivo da Ucrânia foi ocupada por empresas respaldadas pelos Estados Unidos. A Ucrânia foi o primeiro dos países do Leste Europeu em ser pressionada a mudar suas políticas agrícolas.
Assim creio que, em primeiro lugar, a Europa necessita entender sua relação com o resto do mundo. E, em segundo lugar, estão os limites dos recursos, que na Europa sempre são superados indo a outros países. A colonização é uma colonização europeia, primeiro de Espanha e depois da Inglaterra, que na realidade se produziu para obter recursos. Se apoderaram de todas as nossas terras, se apoderaram de todos os nossos bosques. E houve uma ocupação contínua das sementes, da biodiversidade, da água. Esta colonização tem a ver com a guerra da Ucrânia no sentido de que existe uma economia global baseada na especulação, no crescimento ilimitado, na financeirização. E se os preços do petróleo subiram, não é devido a guerra da Ucrânia senão porque as companhias petroleiras estão extraindo mais lucros do povo. Se os preços dos fertilizantes subiram, é pela mesma razão. E o mesmo com os alimentos. Se culpa muito à guerra de coisas que têm a ver com a economia global.
Muitas mulheres avaliaram nestes dias no encontro as políticas públicas feministas que estão implementando em seus países. Vimos a figuras muito destacadas da Argentina ou, obviamente, de Espanha falar sobre como estão implementando estas políticas feministas públicas. Crê que estas políticas são políticas ecofeministas?
As políticas que se discutiu na conferência foram principalmente políticas sobre o trabalho das mulheres. As mulheres trabalham e cuidam, e são políticas importantes porque o capitalismo sempre se baseou em extrair o trabalho gratuito das mulheres, que é o que sustenta todo o edifício. Hoje em dia, a economia globalizada extrai cada vez mais dos trabalhadores, evidentemente, porém sobretudo das mulheres. Quando realizei estudos sobre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e nos organizamos em todo o Sul quando se impuseram os programas de ajuste estrutural, as mulheres tinham que trabalhar para conseguir empregos no marco do ajuste estrutural só para manter a suas famílias em pé. Numa boa economia, um trabalho é suficiente. Porém quando se derruba tudo e aos trabalhadores não se lhes paga o suficiente, necessitas ter mais e mais trabalho.
Portanto, ante a cobiça globalizada e a falta de responsabilidade por parte das empresas, o resultado é uma carga cada vez maior sobre as mulheres. Incorporar esse tema às políticas públicas começa a dar resultado. Transfere a carga das mulheres ao sistema público.
Se falou muito nestes dias da institucionalização do feminismo. Que ocorre quando o feminismo entra na instituição? Se leva bem com esse feminismo com os feminismos desde a base?
Pelo que observo em termos das pessoas que hoje estão nas instituições em Espanha, são pessoas que antes formavam parte do movimento. São ativistas que hoje ocupam postos ministeriais. O poder provém dos movimentos e no dia em que as instituições esqueçam que a sociedade é em primeiro [lugar] e que as instituições [são] secundárias, nesse dia as instituições se converterão em sistemas opressivos e não libertadores.
Suas companheiras de palestra explicaram como a exploração da terra está relacionada com a violência contra as mulheres. É o ecofeminismo uma proposta para acabar com a violência contra as mulheres?
A violência contra as mulheres se deve ao fato de que alguns patriarcas querem ser donos da terra e querem se apoderar da terra e dos territórios. Muitas oradoras disseram: se trata de nossa terra e nossa vida. Que as mulheres defendem a terra e a vida é evidente se nos fixamos na literatura sobre feminicídios. Ante o fato de que se está produzindo um ecocídio, as mulheres se põem de pé. A violência contra as mulheres e a violência contra a terra estão interconectadas e a paz com a terra e a paz e a sociedade estão interconectadas.
Você explicou que há vários ardis fundacionais do patriarcado. Um é que a mulher é o “segundo sexo”.
Sim. E a outra parte do ardil é que a natureza está morta. Aqui estão as plantas, as árvores que crescem no bosque, as borboletas, as abelhas… e diz que está morta! Duramos cem anos governados por uma ilusão.
Crê que estes ardis agora estão expostos?
Eu comecei a ver isso nos [anos] 70 e 80, quando escrevi meu livro Staying alive: Women, ecology and development. Tratei de entender por que destruímos o bosque quando as mulheres veem que está vivo. O que encontro agora são, certamente, as ecofeministas que disseram isso durante os últimos 30 ou 40 anos, porém os cientistas agora estão se referindo a isto.
Não só vive como também, diz você, criativa…
A palavra “natureza” se compõe de vários termos que significam “primeira força criadora”. Nossa criatividade depende da criatividade da terra.
Participou no movimento dos Chipko nos anos 70s e milita há várias décadas no ecofeminismo. Que novos desafios tem hoje o ecofeminismo?
Me envolvi em Chipko porque havia crescido nos bosques e vi bosques destruídos. Encontrei a Chipko e fui voluntariamente para meu doutorado em Teoria Quântica. Durante esse tempo, só havia um lobby, e o derrotamos: acabamos com o abate comercial nas altas montanhas. Hoje os desafios têm várias vertentes, isso não existia há quarenta anos. Se trata de mega projetos do que se denomina infraestrutura. Eu a chamo de infraestrutura da cobiça e da velocidade.
Quanto mais cresce a infraestrutura da cobiça mais se destrói a infraestrutura da vida. A segunda coisa que não existia nessa época é a globalização. Em nossa época, sabíamos exatamente quem era o empreiteiro do lobby florestal e podíamos fazer com que prestasse contas; hoje em dia, os interesses econômicos são invisíveis, não estão diante de ti, não são de seu país, porém estão no comando de tudo na economia.
O terceiro desafio, que não existia então, nem sequer existia nos [anos] oitenta, é o domínio do sistema financeiro e a financeirização do mundo. Como oculta aqueles que são os que controlam as pessoas, escrevi um livro chamado El planta es de todos, unidad contra el 1% porque descobri que a maioria das empresas agora são propriedade dos fundos de gestão de ativos, os 70%: Coca-Cola, Monsanto, Apple, Microsoft, todas elas proprietárias, e BlackRock, Vanguard e State Street. Agora, estas são entidades invisíveis na vida das pessoas e são anônimas e não estão governadas por ninguém. Não estão governados pelos bancos de reserva nem por governos, se governam a si mesmos. Assim que também mudaram a economia, porque tomaram o valor real de um bosque e o converteram num ativo financeiro. Tomaram o valor real da água e o converteram em objeto de negócio. Estes são os três desafios que são muito diferentes e que nos indicam que agora necessitamos tanto da ação local, que é necessária, como uma solidariedade global e uma solidariedade internacional, porque as forças agora são globais.
Em sua exposição [você] não aludiu ao contexto atual de emergência de ideias totalitárias através de partidos de extrema-direita, como fizeram as outras palestrantes. Crê que a extrema-direita é um problema para o ecofeminismo?
Evidentemente que o é. No meu livro Democracia en la Tierra [Democracia na Terra] explico que, se as corporações globais se apoderam das economias e a globalização destrói as democracias nacionais, então um problema vai ser a concentração do poder. Assim é como surgiram os multimilionários. Assim é como surgiu a Monsanto. Assim é como cresceram todos os monopólios na globalização. Porém outra coisa ficou muito clara: quando o dinheiro se apodera da democracia representativa, basicamente se rouba os instrumentos de tomada de decisões. E também destrói as economias locais e destrói os meios de subsistência.
Assim que uma reação natural é organizar um protesto, como ocorreu em Seattle. Porém, depois disso, começou a militarização e em Genebra mataram a tiros um jovem. Por outro lado, criaram guerras culturais. E, como escreveu Samuel Huntington nesse período, no choque de civilizações só podem saber quem és se sabes a quem odeias. Assim que se criou uma política de identidade baseada na negatividade. Tens que encontrar inimigos, e a ascensão da direita busca inimigos e destrói as liberdades coletivas indivisíveis.
O ecofeminismo tem muito o que dizer, tanto sobre como recuperar a democracia econômica, que tem suas raízes na democracia ecológica, como [também] sobre como recuperar nossa paz dentro da sociedade, vivendo com nossas diversidades.
O ecofeminismo é necessariamente antifascista?
Tem que ser. Quando se construiu o racismo? Com o colonialismo. Quando os escravos se converteram em propriedade, a raça se definiu como uma discriminação. Antes disso, tínhamos a diversidade racial do mundo. Cada vez que houve uma concentração do poder econômico, tivemos o crescimento do fascismo. Mussolini disse [isso] muito claramente, o fascismo é a convergência do poder econômico e político. Por isso, cada vez que destruímos os sistemas públicos e permitimos que o benefício privado cresça sem limites, a cabeça do fascismo se levanta. Assim que o feminismo igualitário está contra de se tratar a terra como um objeto morto, como terra nullius. Está contra tratar a diversidade cultural e racial em termos de superioridade e inferioridade, quando tudo o que é é diversidade e tem que estar, portanto, contra o racismo. E, dado que a concentração do poder econômico e político sobre a base da superioridade cultural é fascismo, tem que ser contra o fascismo.
Por último, voltemos às coisas pequenas. Me pode dar um exemplo de algo pequeno, de uma comunidade local, de comunidades índias, que seja um exemplo de ecofeminismo?
Me permita voltar a minha própria inspiração neste âmbito. Quando os monsantos do mundo quiseram controlar a semente, eu voava de regresso para casa e [me] disse: como se afronta isto? Voltei a pensar no colonialismo britânico e em como Gandhi fez duas coisas. A primeira foi dizer: não usaremos roupa britânica, vamos boicotá-la. E a segunda foi: faremos nossa roupa. Arrancou a roda de fiar, que não sabia como fazer girar. A tecelagem da Índia tinha sido destruída pelos britânicos. Encontrou uma anciã de 80 anos e aprendeu a tecer e mostrou a toda a nação a tecer. E quando as pessoas riam e diziam: como podem uns quantos pedaços de madeira lhe dar liberdade?, ele respondia: “É a única coisa que me importa. Qualquer mulher na cabana mais minúscula pode fazer sua própria roda de fiar e tecer seu próprio tecido. No dia em que milhões de mulheres façam isto, seremos livres”.
Me inspirei nisso e pensei que a semente é realmente uma roda de fiar. Quando tens tua semente, podes cultivar tua colheita. Não te endividas, não tens que comprar transgênicos. Durante o covid, as grandes cadeias de fornecimento colapsaram e os cultivos comerciais se acabaram.
As mulheres guardam as sementes e cultivam o que chamamos de jardins de esperança. Sempre digo que não importa o pequeno que seja, poderia estar em tua varanda, o caso é que dá algo de comida. Assim que estive estimulando as mulheres a terem pequenos jardins da esperança. E alguns deles lhes permitiram superar o bloqueio por covid. Algo tão pequeno abordou o fracasso das cadeias de fornecimento.
(*) Por Patricia Reguero Ríos | 10/04/2023 | Ecologia social, Feminismos. Tradução > Joaquim Lisboa Neto
Biblioteca Campesina, 5 maio 2023
Santa Maria da Vitória, Bahia.
Enlace > https://rebelion.org/el-ecofeminismo-tiene-que-ser-antifascista/
Foto: Vandana Shiva no Encontro Internacional Feminista. Elvira Megías
Foto: David F. Sabadell
(*) Joaquim Lisboa Neto, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.
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