Seres sobrenaturais convivem diariamente com as pessoas em suas rotinas comuns, no Maranhão. Eu tomei uma cerveja com um desses encantados: seu Pedro Légua Boji. Mas eu não entendia direito o que estava acontecendo. Eu conversava com uma senhora com saias brancas rodadas, mas era ele quem me respondia em espírito. Mesmo sem entender a religiosidade, porém, são claras as lutas dos quilombolas. Conto aqui a história de Anacleta, que se encantou em setembro e nesta semana foi homenageada por sua trajetória guerreira.
Eu conheci Anacleta Pires da Silva em 2018, na casa dela, no quilombo Santa Rosa dos Pretos, território étnico-racial nas margens da BR-135, em Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão. Conversei pouco com ela, pois era dia de festa no terreiro de dona Severina, que comemorava o aniversário do encantado Pedro Légua Boji. Mas agora, nesta semana da Consciência Negra em 2024, a comemoração dos quilombolas foi para a Anacleta, porque em setembro ela própria se encantou, aos 58 anos, vítima de um câncer de mama.
Qualquer pessoa que chegue ao território de Santa Rosa dos Pretos imediatamente vai saber quem é Anacleta por causa das suas lutas em que estão inseridos os quilombos na abrangência da Estrada de Ferro Carajás, que escoa anualmente cerca de 230 milhões de toneladas do minério que saem do Pará em rumo ao embarque no porto de São Luís, passando por 27 municípios. Um deles é Itapecuru-Mirim, a 120 km da capital, e onde estão mais de 70 territórios quilombolas, entre eles Santa Rosa dos Pretos que tem 20 comunidades impactadas por duas ferrovias, dois linhões de transmissão de energia, grilagens e a BR-135, que corta as terras dos negros ao meio. Para visitarem o vizinho, as crianças enfrentam caminhões pesados em alta velocidade.
A força de Iansã
Desde pequena, Anacleta precisou ser ventania, para conseguir ter o que comer, poder estudar, se formar, criar seus quatro filhos, Joseane, Joércio, Josicléa (Zica) e Josidália.
— Ela é como a força da orixá Iansã, é vento forte que tenciona instituições que em suas estruturas carregam um viés racista em suas relações e ações para os quilombos e quilombolas — me conta Dayanne Santos.
Day é outra negra maranhense de luta. Hoje faz pós-doutorado em ciências sociais pela UFMA. Morou na minha casa em Porto Alegre, no período em que aquilombava a Ufrgs, fazendo doutorado em Sociologia. Feminista, neta de uma marisqueira e de um pescador, foi criada no mar, em São José de Ribamar, pertinho do centro de São Luís, filha de mãe lavadeira que criou suas crianças com auxilio do Bolsa Família.
Dayanne Santos escreveu sobre Anacleta, em parte de seu trabalho de doutorado: “Despertou para o entendimento de que a estrutura de sua família tinha que mudar aos 7 anos de idade enquanto ajudava e acompanhava sua mãe com as tarefas de casa e de sustento para dentro de casa. Imaginem ter que lavar roupa sem sabão? E por ser mulher e preta, não ter a oportunidade de ir para a escola. Como conseguir estudar?”
Trabalho até a morte
E Anacleta venceu. “Formou-se em pedagogia pela UFMA. Antes foi professora por muitos anos, alfabetizou muita gente do município de Miranda do Norte e das comunidades assistidas pela escola na qual ela trabalhou durante 15 anos. Depois parou de trabalhar para gerar seus quatro filhos e depois deles grandes voltou a estudar e entrou junto com eles na universidade”, escreveu ainda a socióloga. “Anacleta era diretora da Escola Elvira Pires, situada dentro de seu quilombo, na qual continua a luta por uma educação que respeite os saberes dos quilombos e forme a juventude para a defesa de suas comunidades, plantando amor e revolução”.
Em seu enterro, filhos e parentes contaram que Anacleta trabalhou até quase os últimos dias de vida. Fazia o que podia quando já estava muito fraca. Mas não se entregava. Foi enterrada no cemitério dentro do próprio quilombo.
Dayanne conta que foi andando com Anacleta que se reconheceu como mulher negra protagonista de sua história e filha de santo, tambor de mina:
Folhas de cura e flechas
— Eu me encontro com Anacleta primeiramente no tempo, nas matas e na beira dos igarapés. Depois eu tenho a honra de dividir esse plano existencial com ela na luta e defesa do nosso povo e assim nos miramos juntas contra a colonialidade e o racismo. Juntas somos mulheres linha de frente que são chamadas pelos encantados a se tornarem flechas na defesa da mãe natureza e folhas para curar nossos povos das mazelas, maldades e adoecimentos ocasionados pela branquitude que deseja e alimenta o genocídio do nosso povo por meio do dito desenvolvimento econômico.
Tambores, religião e lutas se misturam. Mesmo quando quem não conhece os rituais pensa que estão fazendo somente festas.
O Maranhão tem 24% dos quilombos do Brasil. O censo do IBGE de 2022 encontrou 8.441 localidades quilombolas no território brasileiro, associadas a 7.666 comunidades quilombolas declaradas pelos informantes. Os dois municípios com maior quantitativo são maranhenses, Alcântara, com 122 localidades, seguido por Itapecuru Mirim, com 121. As primeiras comunidades remanescentes de quilombos foram identificadas no Maranhão. Em 1988, a Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos fundou o Projeto Vida de Negro, que realizou levantamentos históricos e antropológicos para a criação da jurisprudência que regulamentaria a Constituição Federal. Tomando como estudo de caso a comunidade de Frechal, no município de Mirinzal, outras tornaram-se passíveis de reconhecimento.
Quem são os encantados?
Embora eu tenha conversado com encantados na casa de Anacleta, foi Dayanne quem melhor me explicou o que são as encantarias. Conflitos ambientais, colonialismo e racismo nos processos de lutas em Itapecuru-Mirim fizeram parte do objeto de estudos que fez na Ufrgs, depois de ter morado no quilombo Santa Rosa dos Pretos. No mestrado, estudou a relação das pessoas e encantados na luta pela permanência e titulação do território.
— Nem sei se posso explicar o que são os encantados — me disse, lá em Porto Alegre. Eu imaginei logo que ela estivesse temerosa em resvalar em segredos místicos que não pudesse revelar.
— Cada casa tem o seu fundamento, seu axé, nenhuma é igual à outra, muito menos no que diz respeito a festas e obrigações. E por isso as encantarias, os encantados são um grande mistério, até mesmo para as mães e pais-de-santo. Mas, pensando a partir das conversas e experiências que tive, a partir de um território negro composto por mais de 20 quilombos, em uma rica rede de parentescos marcados por casamentos e apadrinhamentos tanto de pessoas com pessoas, como de pessoas com encantados, digo que são expressões muito fortes de quem já foi escravizado, resistiu às chibatas e está resistindo à colonialidade moderna — me contava Dayanne.
Day me disse que os encantados podem ser espíritos desencarnados, e podem também nunca terem sido gente. São seres que incorporam em pessoas. Mas essa não é a única forma de comunicação. Conta-se que muitas crianças brincam com encantados e, às vezes, convivem com eles como se fossem gente comum, visitando-os em suas misteriosas moradias, que podem existir no fundo de uma lagoa ou em qualquer mata. Adultos também se relacionam com eles mesmo fora dos ritos sagrados.
Tomei uma cerveja com o encantado
Na festa na casa de Anacleta, eu perguntei pro seu Pedro Légua Boji de onde ele era — eu tinha sido incentivada a experimentar o diálogo por uma antropóloga que conhecera em São Luís e morava no quilombo, casada com um quilombola; mas eu não estava entendendo direito o que acontecia. Eu falava com uma senhora com saias rodadas brancas da religião afro, e era ele quem me respondia em espírito.
Seu Pedro Légua Boji me contou que era de uma família de Codó, tão extensa que ninguém podia contar o número de parentes. Imaginei algo como um céu estrelado. Depois fui saber que Codó é conhecida como cidade de feitiçarias e mistérios, a mais conhecida de todas, por causa da numerosa diversidade de encantarias invisíveis que residem em suas matas.
Eu tomava uma cerveja com Seu Pedro Légua Boji. É normal tomar uma cerveja com encantados no intervalo dos rituais religiosos, quando já é alta a madrugada e eles param pra descansar. Pedi pra ele cantar:
— É o mar, é o morro. É o morro, é o mar. Seu Pedro Légua veio trabalhar. — Foi então o momento mais deslumbrante pra mim naquela noite. O rosto negro retinto, turbante branco na cabeça, aquela boca que se abriu imensa deixando sair um canto rouco vindo das entranhas negras de um mundo longínquo que me inundou os ouvidos. Hipnotizada, eu vi e ouvi a própria Clementina de Jesus com sua voz ancestral, me encher de religião, história e arte.
(*) Cristina Ávila, jornalista.
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