Diante do desencanto das maiorias, López Obrador trouxe o conflito de classes à política, para apostar em infraestrutura e programas sociais. Enfrentou a corrupção e o clientelismo das corporações. O que a experiência mexicana pode ensinar?
O sistema político mexicano sofreu um forte abalo em 1º de julho de 2018, quando Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e seu novo partido MORENA obtiveram uma estrondosa vitória eleitoral, obtendo 53% dos votos em uma disputa com quatro candidatos, alcançando uma vantagem de 30 pontos sobre seu adversário mais próximo. Foi de longe a maior margem registrada desde a “transição para a democracia” do país na virada do milênio. Os partidos que dominaram o campo político ao longo do período neoliberal ficaram em um estado lastimável. Hoje, os índices de aprovação do presidente permanecem na faixa de 60%, apesar de uma imprensa implacavelmente hostil, uma pandemia global, a crise econômica que a acompanhou e as pressões inflacionárias em curso. As velhas rivalidades entre os partidos de oposição foram engavetadas e, conseqüentemente, PRI, PAN e PRD foram forçados a se unir sob pena de se resignarem a perder qualquer chance de vitória nas urnas.
As idiossincrasias da presidência populista de esquerda de AMLO o confrontaram não apenas com a direita neoliberal, mas também com a intelectualidade cosmopolita “progressista” e os autônomos favoráveis ao neozapatismo. Esses grupos o acusaram indistintamente de “transformar o país em uma Venezuela”, de propagar o “conservadorismo” e de agir como “um capanga do capital”. No entanto, à medida que seu mandato de seis anos no poder chega a reta final, um olhar mais atento à carreira de AMLO revela um quadro muito mais complexo. Seu projeto global tem sido afastar-se do neoliberalismo e avançar para um modelo de capitalismo desenvolvimentista-nacionalista. Até que ponto conseguiu isso e o que a esquerda pode aprender com a implementação desse projeto?
Como regra geral, as transições para abandonar o neoliberalismo devem ocorrer no ambiente estrutural moldado pelo próprio neoliberalismo: a erosão da classe trabalhadora como agente político e o desmantelamento da capacidade do Estado. Daí decorre que a tarefa histórica básica da esquerda contemporânea é a reativação da política de classe e a relegitimação do Estado como ator social. Podemos, então, avaliar o mandato de AMLO com base em três critérios fundamentais: o restabelecimento da clivagem de classes como principal organizador do campo político; o esforço de reconcentração do poder de um aparato estatal esvaziado por décadas de governança neoliberal; e a ruptura com um paradigma econômico baseado na corrupção institucionalizada. Vamos considerar cada um desses critérios separadamente.
1. Em maio de 2020, quando eclodiram os primeiros protestos de direita contra o governo AMLO, um vídeo viral circulou nas redes sociais. Ele mostra uma multidão de manifestantes de classe alta participando de uma carreata em uma grande avenida em Monterrey, Nuevo León. Da janela de um ônibus público, um passageiro anônimo começa a arengar aos motoristas: “É isso que move o México!”, diz ele. “Os trabalhadores… os trabalhadores movem o México!” Para muitos, a cena capturou o retorno da política de classe à consciência pública após uma longa ausência.
Poucos meses depois de se tornar presidente, AMLO declarou a morte do neoliberalismo mexicano. Foi uma afirmação ousada, mais uma aspiração do que um fato consumado. Os primeiros sinais de sua realização foram retóricos. Anteriormente, o discurso político se concentrava na divisão entre uma “sociedade civil” vagamente definida e o Estado. Funcionários públicos reconhecem cada vez mais a necessidade de aumentar o “controle cidadão” sobre a “governança”. O antagonismo de classe havia quase desaparecido do discurso público dominante. No entanto, com AMLO ele ressurgiu sob uma roupagem laclauiana: como um confronto entre “o povo” e “a elite” (fifís e machuchones, como ele os chama ironicamente), esta última definida por sua riqueza, seu autoengano meritocrático e seu desdém pela cultura da classe trabalhadora. Essa mudança verbal foi acompanhada por um acentuado processo de realinhamento partidário. Nas eleições de 2018, os votos da classe trabalhadora foram dispersos entre diferentes partidos, inclusive o bloco neoliberal, enquanto AMLO teve certa vantagem entre os profissionais da classe média. Naquela época, 48% dos eleitores com diploma universitário apoiavam os candidatos MORENA ao Congresso. Nas eleições de meio de mandato de 2021, por outro lado, esse número caiu para 33%. O oposto ocorreu na faixa inferior do nível de escolaridade: 42% das pessoas com apenas o ensino fundamental votaram em MORENA em 2018, enquanto 55% o fez em 2021. Pesquisas recentes mostram que os maiores apoiadores de AMLO são trabalhadores comuns, o setor informal e camponeses, enquanto seus oponentes mais vociferantes são empresários e profissionais com nível superior. O fenômeno da “esquerda brâmane”, que caracteriza cada vez mais os padrões de votação na Europa e nos Estados Unidos, evidentemente se inverteu no México.
Por que a mudança? Nos últimos quatro anos houve uma avalanche de reformas pró-trabalhadores. Pela primeira vez, os direitos formais das trabalhadoras domésticas foram reconhecidos e as práticas precárias de contratação foram eliminadas. Como resultado, no ano passado houve um aumento de 109% na participação nos lucros, ou seja, pagamentos de participação nos lucros a que todos os trabalhadores têm direito formalmente, mas que os empregadores conseguiram contornar anteriormente por meio da “terceirização” de seus contratos. Com AMLO, o processo de criação de novos sindicatos foi consideravelmente simplificado, as férias estatutárias foram duplicadas e tramita uma lei para estabelecer uma semana de trabalho de 40 horas (em comparação com as atuais 48 horas). Seu governo instituiu o maior aumento aprovado no salário mínimo em mais de 40 anos. Diante da crise econômica que se seguiu ao confinamento da covid-19, o setor mais pobre da população viu o seu rendimento aumentar 24%.
Essas areias movediças deram origem ao tímido reaparecimento da classe trabalhadora como ator político. Talvez a prova mais clara seja a revolta dos trabalhadores das maquiladoras na cidade de Matamoros, estado de Tamaulipas, onde dezenas de milhares de trabalhadores lançaram as greves mais selvagens da história do setor. Impulsionados pelo aumento do salário mínimo, exigiram aumentos de outros benefícios, recusando-se a aceitar as tentativas dos empregadores de acabar com os bônus, diante do aumento dos salários. O movimento gerou novos e bem-sucedidos esforços de sindicalização e impulsionou uma de suas líderes, Susana Terrazas, a uma cadeira no Congresso na chapa do MORENA.
A decisão de AMLO de se concentrar em programas sociais fortaleceu ainda mais essa nova política de classe. As transferências monetárias aumentaram 65% em termos de cobertura em comparação com os governos anteriores. Em 2021, apesar da crise econômica, o gasto social como percentual do gasto público total atingiu seu ponto mais alto em uma década. Este modelo de política social opera sob uma lógica totalmente diferente da neoliberal até então vigente, afastando-se do modelo de gestão baseado em micro-objetivos e na imposição de comprovação de meios para defender um modelo mais universal. Embora as transferências monetárias continuem reservadas a amplos subgrupos sociais (maiores de 65 anos, estudantes, pessoas com diversidade funcional, etc.), as condições de acesso são mínimas. Os programas de bem-estar social foram consagrados na Constituição, consolidando seu status de garantias legais e não “doações” do Estado; são direitos, não caridade.
Do outro lado do espectro político, os partidos deslocados pelo MORENA formaram uma coalizão, proclamando abertamente sua fidelidade às grandes empresas. Magnatas como Claudio X. González e Gustavo de Hoyos, ex-chefe da confederação patronal, desempenharam um papel crucial no financiamento da oposição e na apresentação de seus pontos de vista. Além de denunciar as leis trabalhistas de AMLO, o setor empresarial tem resistido ferozmente ao seu novo modelo fiscal. Ainda que o governo adote, de forma geral, uma linha ortodoxa em questões macroeconômicas, ele tem feito uma esforço combinado para aumentar a capacidade de arrecadação tributária para o Estado que, historicamente, tem ficado abaixo da média da OCDE e da atual na América Latina e Caribe. Sem alterar a atual estrutura tributária, essas medidas coercitivas tiveram um importante impacto redistributivo. Segundo dados oficiais, o governo aumentou em mais de 200% a arrecadação de impostos pagos pelos mais ricos do país (por isso o Financial Times descreve Raquel Buenrostro, ex-secretária da Administração Tributária de AMLO e atual secretária de Economia, como uma “dama de ferro” que usa o “chicote em relação aos impostos que as multinacionais devem pagar”).
Ao mesmo tempo, a perda de setores das classes médias que têm títulos acadêmicos da base de apoio de AMLO reflete a degradação simbólica destes na grande narrativa da nação, que o presidente vem construindo em suas coletivas de imprensa diárias. Enquanto nos governos anteriores um gabinete cheio de figuras da elite com credenciais universitárias era sinônimo de respeitabilidade e autoridade, os apelos por “experiência” agora são vistos como jogadas vazias de marketing político. Os ministros são elogiados por “estarem perto do povo”, não por seus títulos e condecorações.
AMLO tem sido criticado em círculos socialmente progressistas, predominantemente formados por classes com ensino superior, por seu desinteresse em promover o direito ao casamento gay ou ao aborto. AMLO recusou-se a tomar posição sobre essas questões, propondo, em vez disso, que elas fossem submetidas a um referendo popular; no entanto, isso é amplamente discutível agora que um progresso significativo foi feito nessas questões em nível estadual (curiosamente, o progresso mais significativo ocorreu em áreas onde o MORENA controla o poder legislativo local).
O presidente também tropeçou em sua resposta ao combativo movimento feminista que surgiu em 2019 para desafiar a persistência do feminicídio no México. Desde o início, AMLO parecia mais interessado em “desmascará-lo” como uma campanha orquestrada pela direita (que, de fato, tentou sequestrar o levante) do que ouvir suas demandas. Ele criticou as táticas de ação direta das recentes mobilizações e elogiou o trabalho das cuidadoras, o que foi considerado por muitos como um claro exemplo de condescendência masculina. Embora AMLO tenha aderido a uma política estrita de paridade de gênero na escolha de seu gabinete, as críticas feministas compreensivelmente veem sua presidência como insuficientemente preocupada com as desigualdades de gênero do país.
2. Uma das principais prioridades do governo AMLO tem sido reverter o processo de esvaziamento do Estado. Este processo assumiu várias formas. Em primeiro lugar, promoveu-se a recentralização das funções governamentais, que haviam sido subcontratadas a empresas privadas e semiprivadas. A terceirização de serviços públicos foi abolida para reintegrá-los em instituições públicas centralizadas. O governo também deu fim aos conluios privados que administravam os fundos públicos de forma opaca e altamente discricionária, e os incluiu entre as atribuições dos Ministérios a cargo de cada um deles.
Este programa foi apoiado por uma série de “megaprojetos” de infraestrutura estatais, o cancelamento de outros projetos privados, como o aeroporto de Texcoco, e a expropriação pública de partes das ferrovias. Os projetos emblemáticos de construção da AMLO incluem o aeroporto Felipe Ángeles, o Trem Maia ao redor da península de Yucatán, um corredor de transporte que conectará o Golfo do México ao Oceano Pacífico, um projeto de construção de uma rodovia rural e um grande plano de reflorestamento. Esses projetos visam criar empregos por meio de obras públicas e rejeitar a doutrina fracassada do laissez-faire.
A soberania energética tem recebido atenção especial do governo AMLO, que tem buscado renovar a capacidade produtiva da petrolífera estatal PEMEX e transformá-la em motor de crescimento. Também trabalhou para controlar, ainda que modestamente, o poder das mineradoras estrangeiras. Uma nova Lei de Hidrocarbonetos abre a possibilidade de revogar as licenças para empresas privadas que cometerem certas infrações, enquanto a Lei do Setor Elétrico pretende aumentar a energia gerada pela CFE, a companhia elétrica estatal, limitando a exigência de compra de eletricidade para o setor privado. Ambas as medidas visam melhorar a posição relativa do setor público e repelir a onda de reformas neoliberais. O governo recentemente reafirmou esse compromisso com a compra de treze usinas de propriedade da empresa de energia Iberdrola.
O prolongado período de atrofia do Estado que precedeu o mandato de AMLO inevitavelmente prejudicou algumas de suas políticas mais ambiciosas. O Estado ainda não superou sua dependência das parcerias público-privadas. Foi forçado a usar a infraestrutura administrativa do Banco Azteca, do magnata da mídia Ricardo Salinas Pliego, para implementar seus programas de transferência de renda. Embora haja um plano para que os bancos públicos assumam essas responsabilidades, a transição tem sido lenta. A infraestrutura que é o carro-chefe da administração AMLO, o trem de Yucatan, é de propriedade do Estado, mas incluirá parcerias público-privadas. Serviços públicos terceirizados, como creches, foram fechados com a intenção de desprivatizá-los, mas nem todos foram substituídos, o que significa que os cidadãos devem usar vales do Estado para adquirir serviços essenciais no setor privado. Sem qualquer capacidade administrativa real, AMLO tornou-se cada vez mais dependente dos militares para construir e operar muitos de seus projetos de infraestrutura.
A necessidade de reconquistar o poder do Estado também fica evidente na persistência de graves violências relacionadas aos cartéis de drogas, problema que levou AMLO a criar uma nova Guarda Nacional, formada por militares (reforçada por novos recrutas), retreinados para realizar operações policiais. Os críticos afirmam que isso significa a militarização da vida pública. Eles também apontam que AMLO faz uso aparato repressivo ao longo da fronteira sul do país, onde caravanas de migrantes da América Central são frequentemente recebidas à força. Essas ações são, em grande medida, uma capitulação à perene demanda dos Estados Unidos (antes e depois de Trump) de que o México interrompa o fluxo de requerentes de asilo. Como seus antecessores, AMLO aceitou tais restrições à soberania nacional, talvez porque elas possam ser usadas como alavanca nas negociações com seu vizinho do norte. Ele dedicou uma energia considerável para impedir que as caravanas chegassem aos Estados Unidos, oferecendo vistos de trabalho mexicanos, pedindo um “Plano Marshall para a América Central” e negligenciando a brutal repressão policial. Seu desempenho nessa área só pode ser descrito como péssimo, embora uma exceção importante tenha sido sua recusa em consentir na tentativa de Trump de declarar o México um “terceiro país seguro”, o que teria impedido praticamente todos os refugiados centro-americanos de buscar asilo nos Estados Unidos. .
O retumbante fracasso da Guerra contra o Narcotraficante – com 152 mil mortos, 32 mil desaparecidos e 310 mil deslocados – não impediu o governo de Peña Nieto de aprovar a contestada Lei de Segurança Interna, que legaliza a militarização do país.
3. Em seu discurso de posse em dezembro de 2018, AMLO afirmou que “a marca registrada do neoliberalismo é a corrupção”. O neoliberalismo, em sua opinião, não consiste apenas na contração do Estado, mas em sua instrumentalização a serviço do mercado. Esse processo transformou o México em uma espécie de economia rentista reversa, na qual uma rede de empresas privadas desvia dinheiro dos cofres públicos por meio de uma série de mecanismos legais e ilegais: privatização, subcontratação, venda de serviços superfaturados e criação de empresas de fachada para tirar vantagem de contratos públicos e oportunidades de evasão fiscal.
A noção de neoliberalismo como a economia política da corrupção informou as metas de gastos públicos de AMLO. O conceito principal de seu governo é contraintuitivo: austeridade republicana. Na prática, isso significa a reorganização e recentralização do gasto público com o objetivo de “cortar dos de cima”. Dado que o neoliberalismo mexicano forjou extensos vínculos entre o Estado e as empresas privadas, a austeridade é vista como um instrumento pertinente para romper esses vínculos e se livrar de corporações parasitas cujos lucros dependem da generosidade do governo.
A longo prazo, uma adesão estrita à austeridade republicana pode tornar difícil, se não impossível, a criação de um sólido sistema de bem-estar social. No entanto, por enquanto, conseguiu relegitimar o Estado após décadas de favoritismo e clientelismo. Os temores de que isso desencadearia demissões em massa diminuíram. Além dos grandes gastos com obras públicas e transferências monetárias, setores como ciência, educação e saúde tiveram seus orçamentos aumentados, ainda que minimamente. O problema mais premente decorrente do aperto fiscal de AMLO é que ele prejudica os argumentos a favor de uma reforma fiscal de envergadura, pois implica que a esquerda pode atingir seus objetivos apenas por meio de gastos mais eficientes: reequilibrar as contas em vez de redistribuir a riqueza.
Em teoria, os críticos de esquerda de AMLO poderiam reconhecer seus avanços enquanto faziam uma forte crítica de sua política de gênero, políticas de fronteira e programas de austeridade. Porém, na prática, perderam a oportunidade de construir uma alternativa séria ao MORENA. Até agora, as críticas de esquerda a AMLO foram amplamente monopolizadas pela intelectualidade”progressista”, que por sua vez foi absorvida pelo bloco de oposição dominado pela elite. O movimento autônomo, por sua vez, continua desinteressado em capturar o poder do Estado. Há muito abandonou esse terreno e se concentrou em se opor a projetos desenvolvimentistas, obtendo poucos resultados nesse sentido.
Qualquer avaliação de AMLO e MORENA deve reconhecer as dificuldades de reiniciar um Estado de bem-estar com um aparato administrativo dilapidado e revigorar uma classe trabalhadora que foi quase derrotada como agente coletivo. O atual governo é, naturalmente, afligido por muito mais incertezas e contradições, que estão além do escopo deste pequeno texto. Até que ponto o neodesenvolvimentismo é viável no contexto da atual crise climática? A tributação progressiva pode ter sucesso em um ambiente de crescimento estagnado? Com que rapidez um país pode se desfazer de investimentos estrangeiros? Estas são questões para a esquerda em todo o mundo. Quaisquer que sejam as falhas nas respostas de AMLO, sua tentativa de romper com o neoliberalismo não pode ser facilmente descartada.
(*) Por Edwin F. Ackerman, em El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues
Fonte: Outras Palavras
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