A nota da semana que passou, assinada conjuntamente pelo Ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, esquentou ao que parecia perigosamente as expectativas de um confronto entre o poder militar e o poder civil representado naquele momento pela CPI da Covid, mas no dia seguinte a República continuou na mesma e a CPI voltou a funcionar no mesmo ritmo e no mesmo tom.
E ainda seu presidente, Omar Aziz, seu vice Randolfe Rodrigues e seu relator Renan Calheiros assinaram conjuntamente uma carta desafiadora a Bolsonaro, cobrando confirmação ou negação das declarações a ele atribuídas pelo hoje famoso deputado Luís Miranda sobre esquemas de corrupção na compra de vacinas.
Bolsonaro respondeu escalando mais um passo na estridência, na grossura e na boçalidade de suas reações. Em sua live semanal, em princípio destinada a possibilitar sua interlocução com o eleitorado sem depender da mídia, ele disse o que pensa da carta e da CPI:
— Caguei, caguei para a CPI, não vou responder nada!
Essas explosões de Bolsonaro já não duram um dia de repercussão ou escândalo, porque no dia seguinte ele já inventa outra coisa, que pretende ainda mais agressiva, mas acaba se esvaziando em poucas horas, assim como aconteceu com a nota assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes das Forças Armadas.
Se viesse assinada apenas pelo ministro, que é general da reserva no exercício de um cargo civil, ela não produziria nem espuma. Assinada, porém, pelos comandantes, oficiais-generais da ativa, dava a impressão de que seria seguida por alguma tentativa de conter ou deter a CPI. Mas nada aconteceu, a não ser uma “fonte” do Planalto dizer a um blog que os militares estão muito insatisfeitos.
Um dia depois, a nota dos comandantes parecia apenas um gesto formal de solidariedade sem outras consequências e Bolsonaro teve de engolir uma nova pesquisa do Datafolha apontando mais de metade do país rejeitando-o, achando-o incompetente e decidida a votar contra ele na eleição presidencial que continuava marcada para daqui a um ano e três meses.
Nessa andadura até pode parecer possível que as coisas prossigam de mesmo jeito e que o país aguente mais um ano e tanto ouvindo os impropérios de Bolsonaro, sem que nada aconteça em seguida. De fato, não há sinais de que o processo de impeachment possa ser aberto na Câmara nem de que venha a ter consequências próximas a mais recente revelação a respeito de Bolsonaro – a de que em seu gabinete de deputado ele também, como o filho 01, adotava a prática da “rachadinha”, com alguns funcionários devolvendo parte dos respectivos salários e um deles sendo demitido por não devolver o combinado.
— Estranhos tempos – diria o ex-Ministro Marco Aurélio Melo, há pouco aposentado do Supremo Tribunal Federal.
De fato, estranhos tempos em que um Presidente da República diz, literalmente e sem qualquer consequência, que caga para uma CPI do Senado e, portanto, para o Congresso Nacional, órgão supremo do Poder Legislativo, com o qual deveria interagir em harmonia e respeitando sua independência. (Sem contar que faz a mesma ofensa ao Poder Judiciário, pois a CPI tem, pela Constituição, a prerrogativa de funções judiciais.)
Estranhos tempos em que, durante uma pandemia como a da Covid, um Presidente da República inventa obstáculos para as vacinas e para vacinação e insiste em prescrever medicamentos e tratamentos precoces sem sustentação médica.
Estranhos tempos em que se revela com detalhes que esse Presidente manteve, quando deputado, a pratica delinquente das “rachadinhas” em seu gabinete.
Estranhos tempos em que um Presidente da República, Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do país, ameaça com o cancelamento da próxima eleição presidencial, se ela não for realizada do jeito que ele quer, e ninguém acredita nele.
Estranhos tempos, afinal, em que são patentes os sinais de patologia psiquiátrica na conduta de um Presidente e nada se pode fazer a respeito.
Além de mais de cem pedidos de impeachment à espera de despacho do Presidente da Câmara dos Deputados e de todo o material já acumulado pela CPI da Covid, repetem-se a cada dia atos e práticas de Bolsonaro que tornam um perigo público sua permanência no poder.
Por enquanto, porém, há coisas que funcionam no Brasil, como o compartilhamento de prerrogativas que permite a Estados e municípios atuarem à margem do governo federal, e, operando na jurisdição dos Estados e municípios e na do próprio governo federal, a ação de organismos como o SUS que nos protegem desses perigos.
Deve ser por isso que o Brasil ainda tolera a permanência de Bolsonaro na Presidência.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.