O nome dele é Sérvulo Borges, ex-militar e hoje uma aguerrida liderança quilombola. Mas, entre 1986 e 1989 ajudou como soldado pela força da Aeronáutica a remover 312 famílias quilombolas que viviam à beira-mar em Alcântara, no Maranhão, para livrar de pessoas o espaçoporto da Agência Espacial Brasileira, destinada a lançamentos de foguetes. O recruta Sérvulo Borges era jovem e se lembra bem da história. A última moradora a sair da comunidade engoliu a revolta calada, vendo a sua casa ser tomada por militares, desalojados gatos, cachorros, galinhas. Ele próprio a segurava por um dos braços: era uma senhora a quem o despejo pesava ainda mais do que a idade. O major-capelão a agarrava pelo outro braço. A uns 50 metros da sua morada, a mulher buscou forças onde mal tinha, e se sacudiu revoltada, fazendo os homens a soltarem. E ali voltou-se: primeiro a cabeça, depois todo o seu corpo para o lado da casa, chorando. Permaneceu imóvel no choro por uns cinco minutos sem dizer nada. O lugar era onde queria morrer, mas nunca mais viu a residência onde nasceu e foi criada.
Alcântara foi o município revelado com a maior população residente (9.344) em um território quilombola, entre os 494 oficialmente delimitados no país, conforme o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022. Também ficou em terceiro lugar entre os municípios de maior população quilombola, com 15.616 pessoas entre o total de aproximadamente 18.466 habitantes.
Naquele despejo na década de 80, as 312 famílias expulsas de casa faziam parte de um grupo de 32 comunidades, entre as quase 200 que até hoje resistem em Alcântara — que se localiza na Amazônia Maranhense, no bioma amazônico, cujo registro de floresta original ocupa 34% do Maranhão, o equivalente a 81.208,40 km², englobando 62 municípios do estado, inclusive São Luís e Alcântara, atualmente ligados por barcos e ferry boat em cerca de 1h30m de navegação.
Os quilombolas são descendentes das pessoas escravizadas pelo tráfico humano que cruzou o Atlântico vindo do continente africano por mais de três séculos. Os negros formaram agrupações de refúgio e resistência. Os quilombos, hoje também são denominados comunidades quilombolas ou remanescentes de quilombos.
À beira-mar, a cidade de Alcântara encanta turistas por causa dos casarios onde vivia a aristocracia rural maranhense que mandava seus filhos estudarem em Coimbra, Portugal, nos séculos 18 e 19. Os calçamentos de pedras e ruínas aprimoram ainda mais a arquitetura, mas são igualmente apavorantes para olhares apurados. Em uma das praças ainda está um pelourinho, um poste de castigos de escravizados. Ao redor, até as árvores tortas parecem ter sido contorcidas pela dor que se mantém viva no cenário. Alcântara é um recorte da história da riqueza, da escravidão e do progresso que avançou e ainda avança sobre os povos tradicionais brasileiros.
Para dar lugar ao espaçoporto de foguetes, 32 comunidades foram retiradas das suas terras tradicionais ocupadas por séculos. A principal estratégia dos militares foi montar equipes de pessoas negras para o trabalho. Assim, com persuasão ficou mais fácil.
— Um preto com outro preto conversando, mesmo que ele seja doutor, mas ele é preto — afirma Borges, o ex-militar que já ultrapassou seus 60 anos e é grande liderança quilombola, com incrível linguagem e sensibilidade que o fez entender porque foi cooptado para integrar a Aeronáutica. Elé é fundador do Movimento de Atingidos pela Base (MAB), que luta pelos territórios tradicionais.
Para explicar esta história, ele fala não somente pela boca, mas com o corpo todo e a alma:
— O opressor com o oprimido iguais, achando que são iguais —. E acentua: “achaando”.
O major-capelão também era negro.
— Negro, preto, preto retinto —. Sérvulo Borges lembra que Ildefonso era paulista, bonito e alto. Acompanhava o grupo de trabalho com assistentes sociais negras, a maioria maranhenses, com o mesmo linguajar que ajudava com a identidade local.
— Nhora, pra cá, nhora pra ali — recorda-se Borges delas indicando pra onde deveriam ir as quilombolas na remoção.
Dos “filhos de Alcântara” foram selecionados 30 jovens para trabalhar na futura base, cuja construção tinha começado em 1982. Foram levados para fazer um curso em São Paulo, num avião Buffalo CC-115 da Força Aérea Brasileira (FAB), em julho daquele ano. Era o primeiro voo dele e provavelmente de todos os meninos.
— Eu, Sérvulo Borges, eu não sabia que eu ia ser militar. Eu tava indo para fazer um curso, mas nunca me disseram, ‘tu vai ser soldado’.
— Tinha jovens semianalfabetos, jovens analfabetos que só assinavam o nome — Foram levados para São José dos Campos onde permaneceram por cinco meses e depois ficaram um mês na capital. Sentiram muito o frio, “de doer na alma”, mas naquele momento Borges estava encantado e se encontrou no aprendizado de enfermagem.
Mas não voltaria para Alcântara para cuidar de pessoas como imaginava. Todos os meninos voltariam para cumprir as ordens de despejo aos próprios parentes que foram transferidos para sete agrovilas construídas pela aeronáutica em áreas distantes do lugar tradicional.
Borges lembra que eles passariam a morar distante cerca de 20 km do mar, que era local de subsistência de pesca, onde então chegariam depois de quatro horas caminhando. O despejo seria feito pelos parentes bonitos, malhados, roupa limpa de botões dourados. E dinheiro no bolso. Tinham sido recebidos com abraços pelas famílias saudosas, em registros fotográficos pelo jornal O Imparcial. Não tinha pais tristes.
Os 30 meninos ajudaram no despejo. Depois, alguns seguiram a carreira militar, se aposentaram, e outros foram para outras profissões. Têm medo de emitir opinião sobre o passado. “Tem uns que nem conversam comigo”, diz Borges. Ele é o único com coragem de contar esta história. Não demorou tanto, dali partiu para ser integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.
A luta de Sérvulo Borges e outros quilombolas que hoje atuam nas organizações locais é pela sobrevivência física e cultural em suas terras centenárias em Alcântara, nas chamadas Reentrâncias Maranhenses, na divisa com o Pará. São faixas litorâneas, ricamente marcadas por rios e igarapés com águas doces mergulhadas em baía salgada pelo Atlântico com extensos manguezais em marés — as maiores do mundo, denominadas macromarés que diariamente sobem e descem visivelmente gigantes, deixando nas areias fartura de alimentos para bichos e gentes.