Maria Arminda do Nascimento Arruda, usando como exemplo a produção nacional “Ainda Estou Aqui”, indicada para representar o Brasil no Oscar, tece reflexões sobre a importância do cinema como ferramenta cultural
Para além do hype que alguns filmes trazem ao mundo, como foi o caso de Deadpool & Wolverine e Divertidamente 2, estreados este ano, o cinema também é uma importante fonte de reflexão social e produção cultural. No contexto nacional, o filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por nomes como Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Selton Mello, estreará nas telas dos cinemas brasileiros no dia 7 de novembro e é tido como a grande esperança do Brasil no Oscar 2025, escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o País na busca por uma vaga entre os indicados, principalmente para a categoria de Melhor Filme Internacional.
Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e vice-reitora da Universidade de São Paulo, o Brasil voltou a participar dos eventos e festivais internacionais do cinema, como o Festival de Cannes e o de Veneza (dois dos considerados três grandes festivais de cinema, juntamente com o Festival de Berlim) e o próprio Oscar, o que pode projetar um país. Ela explica que qualquer linguagem da cultura tem uma relação com o seu contexto, mesmo sendo em um diálogo internacional, com produções de cultura fora do Brasil.
De acordo com a especialista, isso é recorrente no contexto brasileiro, seja em filmes como Bacurau, em filmes produzidos pelo cineasta cearense Karim Aïnouz, ou mesmo no filme de Walter Salles. Para reforçar seu ponto, ela ainda fala sobre Antonio Candido, importante crítico literário que já escreveu, em um de seus textos, que a lei geral da cultura brasileira sempre foi a relação entre o local e o cosmopolita.
“Ainda Estou Aqui é impressionante, a sua importância na projeção do Brasil e na denúncia também, no que foram as percepções durante o regime militar. Não existe produção isolada, não existe produção nacional. Como é que a incorporação das formas da linguagem externa reverbera para tratar dentro de uma obra que está tratando de uma problemática local? Ainda Estou Aqui é isso, em um mundo da ditadura no Brasil”, complementa.
Importância do cinema
Maria Arminda informa que, em geral, as linguagens da cultura, como o próprio cinema, têm um papel transformador na construção da sensibilidade e de visões de mundo, sendo isso parte do efeito que as linguagens culturais têm sobre a vida da sociedade. “O cinema americano do pós-guerra foi importante para construir toda uma ideia do american way of life e, ao mesmo tempo, foi importante ao imperialismo americano, que é toda a construção de uma visão dos Estados Unidos do pós-guerra como uma sociedade democrática e civilizada”, exemplifica.
A vice-reitora também destaca o impacto do Cinema Novo no Brasil, um movimento cinematográfico que emergiu com força na década de 1960, trazendo uma crítica profunda às desigualdades e aos desafios da modernização brasileira. “A importância do Cinema Novo em construir uma visão política e, ao mesmo tempo, mostrar as dificuldades da modernização brasileira foi central. Veja Os Fuzis, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, por trás deles estava não só uma renovação muito grande da linguagem cinematográfica, como também uma construção das dificuldades da modernização brasileira, na medida em que trata dessas realidades”, afirma.
Esses filmes, assim como outras produções culturais, ajudaram a criar uma consciência social sobre os problemas do Brasil, um processo que contribuiu para uma nova sensibilidade nas questões políticas e sociais. “O cinema tem um papel central na construção de concepções e de sensibilidades. Na medida em que se forma toda uma nova sensibilidade, isso vai reverberar do ponto de vista das ações no mundo e, portanto, na mudança da sociedade”, explica. Conforme Maria Arminda, um exemplo disso em outra linguagem é a literatura e o romance do século 19, que tiveram um papel fundamental para formar a sensibilidade feminina.
Enfraquecimento da cultura
A professora afirma que não existe cultura, e sobretudo cinema, sem financiamento. Ela entende ser difícil um produtor conseguir se autofinanciar, o que torna necessário políticas culturais para todas as áreas. Se há cortes no orçamento da cultura, a produção cultural, sobretudo de artes performáticas ou industriais, como é o caso do cinema, empobrece.
Segundo Maria Arminda, o empobrecimento do cinema ou enfraquecimento de qualquer cultura tem impactos significativos em uma sociedade, especialmente em tempos de discursos de ódio e fragmentação social, como é o contexto do Brasil. “A cultura porta sempre um processo civilizador, porque produz concepções do mundo e, ao mesmo tempo, nos traz perspectivas que têm um papel de esclarecimento das dificuldades que uma sociedade vive. Então, a curto, médio e a longo prazo, toda crise de qualquer linguagem da cultura é crise civilizatória e tem um efeito terrível”, informa.
Contudo, a especialista relata que o cinema brasileiro está em um processo de recuperação — de acordo com a Agência Nacional de Cinema, o cinema nacional apresentou um aumento em relação aos últimos seis anos, já que, somente em janeiro de 2024, atingiu um público de 3 milhões de espectadores, número quase 30 vezes maior do que o observado no mesmo período do ano passado (114 mil). “É muito interessante perceber que, quando as sociedades tendem a se tornar mais democráticas, também há um processo de retomada das linguagens da cultura, e isso está acontecendo no Brasil”, conclui.