A obra prima de Carlos Drummond de Andrade “A Máquina do Mundo” descreve o momento extremo em que se decide o destino da relação entre o sujeito e a verdade, a consciência e a história, a potência humana e seu limite, o desejo e a finitude, a ação e a inércia, a ousadia arriscada e a indiferença estéril. Momento precioso e fugaz em que o mundo se abre ao caminhante e lhe oferece a oportunidade de colher o segredo de seu mistério.
Naquele instante, os caminhos se bifurcam entre a passividade do cético, desatento — desenganado, diz o poema —, resignado a seguir a mesma velha trilha sombria, e a curiosidade inconformista, audaciosa o suficiente para entregar-se ao assombro, olhando com os olhos de ver e agarrando a oportunidade com as unhas.
Acolher a revelação requer atitude e coragem, e a consciência desta exigência talvez baste como síntese do que lhe seja permitido vislumbrar e apreender. Desse modo, o enigma tematizado pelo poeta diria respeito à agência humana, desafiada a posicionar-se, no breu da história, entre a impotência e o arrojo.
O dilema, se o abordarmos numa chave política, remete tanto às reflexões clássicas sobre a phronesis — que pode ser entendida como prudência ou interpretação —, quanto à célebre fórmula maquiaveliana, que nos propõe pensar a ação pública a partir da conjugação das categorias fortuna e virtude. Fortuna, ou destino, é o que se impõe a nós, indivíduos e coletividades, como acontecimentos que não decorrem de nossa vontade e restringem, ou ampliam, o repertório das escolhas e as possibilidades da ação. Virtude é o que fazemos com a realidade ditada pela fortuna: seja reduzindo danos, contornando obstáculos e extraindo benefícios do que porventura tenha frustrado nossos interesses e limitado o campo do possível, seja explorando a nova oportunidade, quando os ventos do destino sopram a nosso favor. Observemos que a fortuna, como realidade (externa, objetiva, coercitiva) que se impõe a nós, pode ser um acidente natural, uma contingência imprevista ou fruto de intervenções alheias, intencionais ou não.
Transpondo a dicotomia para a grande escala da história, e aclimatando as categorias à temperatura escaldante dos trópicos que habitamos, diria que o governo Lula formou-se, em janeiro de 2023, num ambiente constrangido por inúmeros fatores que o precederam e limitaram:
- A intensificação da crise climática;
- O tensionamento geopolítico global, gerado pelo declínio do império estadunidense, ante o fortalecimento da China e de alianças que buscam promover uma ordem multipolar;
- A hiperpolitização da economia no espaço transnacional e sua despolitização, no Brasil, na medida em que decisões sobre rumos da política econômica foram subtraídas da agenda pública democrática, isto é, do âmbito que contempla a participação popular, reduzindo-se a cálculos técnicos ao redor de receita e despesa, circunscritos dogmaticamente por parâmetros fiscalistas, alheios a questões substantivas, relativas a horizontes estratégicos do desenvolvimento nacional e à qualidade de vida das maiorias — o exemplo talvez mais escandaloso do sequestro da política econômica é a chamada “autonomia do Banco Central”;
- A crise multidimensional do neoliberalismo, que tem levado lideranças mundiais do capitalismo de plataforma a aderir a movimentos neofascistas, sem constrangimentos (o que acontecera também no Brasil, sob a égide do rentismo);
- O avanço em diversos países — o Brasil vinha sendo mais um caso — de projetos golpistas da ultradireita e de suas variantes gradualistas (cujos métodos preferem a corrosão gradual ao emprego ostensivo da força), que impuseram à resistência popular a incômoda e paradoxal defesa da ordem estabelecida (defesa, portanto, do “sistema”, cujo caráter antipopular, entretanto, é incontestável), suscitando uma contradição que requer sinuosa elaboração ideológico-política: como sensibilizar a massa da população, sustentando a ideia de que a democracia liberal (incapaz de garantir as conquistas constitucionais, insuficientes mas significativas) é uma trincheira que separa a hipótese de um futuro digno do abismo irreversível?
- A pequena diferença entre os votos conquistados pela ampla coalizão lulista e a votação alcançada pelo projeto neofascista, que deixou o poder sem reconhecer a legitimidade das eleições, preparando golpe de Estado, mantendo suas bases mobilizadas e preservando o apoio expressivo de núcleos ideológicos e igrejas populares;
- A guerra híbrida contra o PT e demais partidos e movimentos progressistas, protagonizada pelas Forças Armadas — contando com a adesão das polícias —, que se envolveram, ao lado de Bolsonaro, e mesmo antes de seu governo, em articulações golpistas e em sucessivas ameaças de abolição violenta do Estado democrático de direito. Alguns exemplos não deixam margem a dúvida: a mensagem do general Vilas-Boas na véspera do julgamento no STF do habeas-corpus apresentado pela defesa de Lula e o apoio ao Lawfare que levaria à prisão de Lula, excluindo-o das eleições presidenciais de 2018. Lembremo-nos de que a futura candidatura presidencial de Bolsonaro foi informalmente lançada, ainda em 2014, na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN). O hibridismo refere-se ao amálgama de linguagens, armas, recursos e atores: militares, jurídicos, midiáticos, empresariais;
- A composição do Congresso Nacional que resultou das eleições de 2022, hegemonizada pela direita e a ultradireita, num contexto em que o Legislativo praticamente se apropriou de parte expressiva do orçamento discricionário. A correlação de forças negativa para o novo governo também se verificava nos executivos estaduais;
- Embora tenha havido, durante a disputa, um deslocamento da mídia corporativa em direção à coalizão lulista ante a radicalização golpista de Bolsonaro, desde o início do governo atual todo o seu peso foi investido na defesa de pautas neoliberais, acuando, enfraquecendo e chantageando o presidente. Nas mídias sociais, a despeito da atuação de redes progressistas, a lógica perversa dos algoritmos continuou privilegiando o extremismo neofascista.
Procurei mapear o campo da fortuna, isto é, elenquei algumas das condições mais relevantes que restringiam, na posse de Lula, o repertório das ações governamentais viáveis, isto é, daquelas que não comprometem a estabilidade mínima do próprio governo. É claro que o próprio juízo sobre a viabilidade é parte da virtude política ou de sua ausência. Por outro lado, poucas coisas são dadas, na política; a maior parte depende de construção, o que caracteriza sua natureza plástica e dinâmica. Até mesmo a correlação de forças, que inclui as percepções sociais, é mutável e sujeita à luta política. Afinal, a virtude se realiza duelando com a fortuna.
Desde a posse, o governo tenta se equilibrar, buscando a melhoria dos indicadores econômicos e amargando a diferença entre indicadores e percepção popular, moldada pela combinação variável entre experiência e interpretação (ideologicamente mediada). Na prática, são indissociáveis: experiência e interpretação. Depara-se, portanto, com os efeitos negativos da luta ideológica que, paradoxalmente, se recusa a travar. O presidente parece crer que ganhos residuais bastarão para conquistar apoio popular. Observando o quadro mais amplo, profundamente atravessado por disputas entre valores, não parece consistente a hipótese de que para vencer a próxima eleição sejam suficientes melhoras residuais para a massa trabalhadora (precarizada, atomizada e cética), se tais benefícios estiverem dissociados de interpretações que os conectem a um projeto de futuro verossímil e sedutor, a uma imagem de futuro crível, na qual interajam valores materiais, simbólicos, morais e afetivos.
Felizmente, o governo não é o único agente político. Há movimentos sociais ativos e mobilizações avulsas. Mudanças positivas podem vir da sociedade. Não por acaso, vieram daí iniciativas que impuseram recuos à sanha reacionária do Congresso, alterando momentaneamente a correlação de forças. Dois exemplos notáveis foram as respostas explosivas ao projeto de lei antiaborto, que criminalizava a mulher e lhe atribuía penas superiores às do estuprador; e o projeto de privatização das praias. Esses casos demonstram que a virtude política de atores não governamentais pode produzir novas realidades, ou seja, oferecer ao governo novas configurações da fortuna, novas oportunidades para assumir iniciativas e, por sua própria virtude, levar adiante processos de transformação.
Ao longo de seus dois primeiros anos, o governo federal perdeu ao menos três oportunidades extraordinárias: uma foi ocasionada pela natureza (fenômeno típico do antropoceno, manifestado como emergência climática), evidentemente com a colaboração de gestores irresponsáveis; outra, pela combinação entre natureza e ações criminosas; e a terceira, pela criminosa ação golpista de militantes bolsonaristas e de seus líderes militares e políticos. Refiro-me às enchentes no Rio Grande do Sul, aos incêndios em regiões de floresta e cerrado, e às invasões predatórias dos prédios dos três poderes, em 8 de janeiro de 2023. Enchentes e incêndios promoveram reconfigurações na cena pública, eis a fortuna imprevisível fornecendo ao governo duas chances para mitigar as condições draconianas do arcabouço fiscal, avocando a prerrogativa — que o Supremo chancelaria e o Congresso teria que absorver — de redefinir a escala e a magnitude do enfrentamento à crise climática. Essa manobra, contudo, teria implicações, entre elas a superação definitiva das dubiedades e hesitações, refletidas no contraste entre os sucessivos recuos internos e os compromissos retóricos internacionais com a transição energética, o controle das emissões e a salvação do maior tesouro biodiverso do planeta.
O oito de janeiro caiu como uma bomba e plasmou a nova realidade a enfrentar — do ponto de vista do governo, tratava-se da fortuna: a objetividade alheia à sua vontade e à sua ação. Uma nova realidade a condicionar o campo do possível. A reação de Lula e de seus auxiliares, a despeito de falhas anteriores (como a má condução da transição na Defesa, no GSI e na ABIN), foi extremamente ágil, lúcida e competente, recusando-se a morder a isca de uma GLO, que seria o cavalo de Tróia. No entanto, eu ousaria afirmar que os desdobramentos não foram explorados de modo virtuoso. Explico: o cisma entre autoridade (cuja fonte é a soberania popular mediada pelo voto) e poder (o controle efetivo dos aparelhos de coerção, que garantem, em última instância, o exercício prático da autoridade) ainda existia, ostensivamente; as Forças Armadas ainda abrigavam manifestantes clamando por golpe ao redor dos quartéis e persistiam silentes ante a escalada predatória pós-eleitoral, em Brasília — e não só. O comportamento face aos atos em 8 de janeiro era, no mínimo, dúbio.
Observe-se que a ruptura entre autoridade e poder, que corroía o Estado de direito ao longo do período bolsonarista, já se insinuava desde o golpe parlamentar contra Dilma. De fato, era uma realidade virtual desde a redemocratização, como se deduz da ambivalência do artigo 142 da Constituição, que contaminou as polícias e contribuiu para o processo de sua ilegal autonomização, tornando-as verdadeiros enclaves institucionais, cujo controle externo o MP recusou-se a exercer.
O caos na Praça dos Três Poderes conferiu, paradoxalmente, inesperada força ao governo federal para, depois da timidez revelada no primeiro momento, assumir plenamente o comando da Defesa, não apenas trocando comandos, mas apresentando ao país um plano de reforma institucional das três Armas, visando subordiná-las, definitivamente, à suprema autoridade civil e política — como tem, reiteradamente, pleiteado Manuel Domingos Neto. A iniciativa poderia vir acompanhada da sempre postergada reforma das polícias, ou melhor, da arquitetura institucional da segurança pública. Naquele momento de fraqueza do golpismo, de desestabilização do bolsonarismo, a correlação de forças teria permitido avanços significativos.
Apesar dos pesares, este artigo não será a crônica das oportunidades perdidas. Depois de resultados eleitorais negativos nos municípios, seguidos da tentativa de normalização do bolsonarismo pelas elites, no rastro do fortalecimento de pautas regressivas, como cortes de gastos sociais, e perigosíssimas, como a anistia para os condenados pelo 8 de janeiro — ensaio geral para o cancelamento da inelegibilidade de Bolsonaro —, tudo isso coroado pela vitória de Trump nos Estados Unidos, a fortuna abriu as asas da tragédia e pôs na mesma Praça dos Três Poderes o cadáver de um extremista neofascista, que se autoimolou, enquanto atentava contra o STF. Paralelamente, a virtude de outros atores, Rick Azevedo e Erika Hilton, produziu, graças ao movimento “Vida Além do Trabalho”, uma inflexão impactante na agenda pública, acuando os conservadores, desnudando os compromissos de classe dos bolsonaristas e de seus aliados, ao reintroduzir um tema clássico da luta de classes: a redução da jornada de trabalho. Poucos dias depois, além da atuação positiva no G20, o governo se deparou com prisões e indiciamentos de golpistas, um terremoto que atingiu mais que o bolsonarismo e as tentativas de normalização do neofascismo brasileiro: alcançou o envolvimento nos planos golpistas de 2022 da alta hierarquia das Forças Armadas.
A fortuna voltou a acenar para o presidente Lula, lhe oferecendo a chance para ousar uma intervenção virtuosa e redefinir os rumos de seu governo, sem arriscar-se a uma aventura que o isole e desestabilize. Abraçar a redução da jornada de trabalho pode reatar laços do governo com milhões, deixando centrão e bolsonaristas em dificuldades, a despeito do clamor chantagista das elites. A esta bandeira, readequada às circunstâncias, Lula poderia somar propostas objetivas contra a injustiça tributária e a política de juros altos, que servem, cada qual à sua maneira, à concentração e à financeirização do capital. A temporada de reformas efetivamente democráticas e progressistas, não apenas nos campos da Defesa e da Segurança, pode, enfim, encontrar seu momento. É fato que não há virtude sem risco, mas tampouco nos é dado negligenciar, sem custos, as oportunidades tão raras em que a fortuna ilumina a máquina do mundo.
(*) Luiz Eduardo Soares é escritor, cientista político e antropólogo. Professor visitante da UFRJ e ex-secretário nacional de segurança pública, é coautor de Elite da tropa (Objetiva, 2005) e um dos autores do livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo; Carta Maior, 2015). Suas obras mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu duplo (Todavia, 2019) e Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020).
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