“Talis hominun, oratio qualis vita” – Frase de Sêneca: “Que sua vida seja como sua fala”.
Lá pelas tantas, o General Flores da Cunha em seu “A Campanha de 1923”, exatamente no capítulo “Conclusão”, lasca este ditado. Por sinal, em vários momentos, em latim, cita Sêneca, como também ditos em francês, mostrando o domínio e cultura que tinha.
Este livro é o seu relato pessoal dos fatos da guerra civil de 1923, quando comandou a Brigada do Oeste, mesmo não tendo qualquer formação militar, dando combate ao memorável Honório Lemes, o Leão do Caverá.
Com ele esteve Osvaldo Aranha, a quem tinha em alto conceito, dispensando a ele atenção e deferência. Não sei como foram suas relações posteriormente.
“HOMO RES SACRA HOMINI”
Não é fortuito que o General Flores da Cunha faça esta citação no episódio em que Adão Latorre é morto, o adversário maragato que ficou famoso pelas degolas de 1893-95. Flores da Cunha tinha como princípio o respeito pelas pessoas: “o homem é sagrado para o homem”. Sob seu comando era proibido qualquer castigo aos prisioneiros e abominava qualquer tentativa de passar a faca no pescoço dos adversários. Num caso havido, ele prendeu os autores e os entregou às autoridades.
Ele não cita no livro, mas há registros que quando da rendição de Honório Lemes, este iria lhe entregar as armas, ao que Flores teria dito:
- “Não quero suas armas, general Lemes. Não se tira as armas de um general gaúcho”.
Para mim é o que os heróis e filósofos gregos tinham como princípio norteador: a “aretê”, ou seja, “excelência”, “virtude”. No caso, aparece figura de Osvaldo Aranha que saudara aquela “paz”.
A GUERRA DE 1923
Lendo os relatos dia a dia feitos por Flores da Cunha, é um acinte aceitar o mito de que foi uma “revolução”, foi uma guerra fratricida, uma carnificina. Para isso, nem se precisa ler os relatos pessoais do maragato Zeca Neto, falando de outra região conflagrada, o Sul do Estado. Flores diz tudo.
Flores da Cunha é claro neste aspecto, deplorando os episódios de mortes muitas vezes.
Um dos relatos mais tocantes é o da Ponte do Rio Ibirapuitã, no Alegrete, onde seu irmão Guilherme é ferido mortalmente.
Nesta caso, como houve vitória dos chimangos de Flores, ele não deixou que se castigassem ou matassem os aprisionados.
UM BORGISTA
Formado na tradição do Partido Republicano Rio-grandense de Júlio de Castihos, a quem Flores tinha profunda admiração, ele aderiu à posição de que Borges de Medeiros tinha sido legitimamente eleito no pleito de 1923, hoje sabido como totalmente fraudulento. Ele chega a falar disto no livro, mas não faz qualquer autocrítica, pelo contrário.
Porém, ousou discordar de Borges de Medeiros em mais de uma vez, fazendo duras críticas ao caudilho frente a frente.
GOLPE DE 1930
Em 1930, com chimangos e maragatos unidos, esteve na linha de frente para a chamada “revolução de 30” que deu o poder a Getúlio Vargas, sendo que tem uma passagem em que relata ao final do livro uma conversa dele com Borges de Medeiros, digna de ser lembrada, quando Borges diz a Flores que vai ter revolução e arremata “…) depois de tudo, não irá ela nos devorar a todos?”
Pois o golpe de Vargas, apoiado por ambos, deu a Flores o “cargo” de Interventor por obra daquele, deu-lhe uma eleição para governador, mas ao discordar do Estado Novo renuncia e vai para o exílio no Uruguai. O vaticínio aconteceu. Flores foi perseguido pelo sucessor, Daltro Filho. Este abriu contra ele um processo mentiroso, em muito se assemelhando ao que aconteceu com o presidente Lula. Quem o defendeu nos Tribunais foi Poti de Medeiros, numa peça lapidar.
MUITAS HISTÓRIAS E MUITAS FAÇANHAS
O General Flores da Cunha foi, de fato, um homem de muitas histórias. A luta contra o grupo de maragatos de Honório Lemes que ele descreve em detalhes é de um mestre das guerras, sem ter tido qualquer formação na área. Era advogado na região. Foi prefeito de Uruguaiana, além de ter sido Interventor e Governador do Estado. Depois do exílio foi várias vezes deputado federal, chegando à presidente da Câmara.
Muito se conta de sua inclinação ao jogo, seja no turfe, seja no carteado no Club dos Atiradores. Também se contam muitas histórias dele com amantes, o que não era incomum naqueles tempos, ainda mais num Estado machista como ainda é o Rio Grande do Sul.
Era comum em sua época o uso do chapéu e da bengala. Estes itens parecem ser inseparáveis dele. Tenho anotado fotos dele com a bengala que, quis a sorte, ganhei de um amigo. Fui confirmar e de fato eu tenho a bengala que foi do General. Quero deixar registrado que testamentarei sua doação ao Museu Júlio de Castilhos.
BIOGRAFIA
Andei atrás de escritos dele ou sobre ele. Não há uma Biografia. Parece que ninguém teve coragem de enfrentar o general e seus enigmas.
Regina Portela Schneider e o seu conterrâneo Ivo Caggiani escreveram esboços de sua vida. Há alguns poucos estudos de seu governo.
Porém, o Rio Grande do Sul carece de uma biografia de fato do General Flores da Cunha: um cidadão complexo, ousado, que soube mudar e evoluir.
Em sua homenagem Porto Alegre tem seu nome no Instituto de Educação Flores da Cunha, hoje restaurado. Mas em termos de logradouros Borges de Medeiros tem a principal via do Centro, enquanto Flores da Cunha é uma Avenida no Bairro Belém Novo, antigo 7° Distrito da capital. Isto pode nos dizer muitas coisas.
(*) Por ADELI SELL, professor, escritor e bacharel em Direito.
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