Hegemonia monetária internacional favoreceu o imperialismo e aventuras militares dos EUA. Mas abusos – como sequestros de reservas e sanções – forçaram Sul a articular alternativas. É preciso entender os impactos da desdolarização
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, e especialmente depois que Washington impôs sanções abrangentes a Moscou, vários países em todo o mundo – incluindo Brasil, China, Índia, Irã, Arábia Saudita e África do Sul – têm resistido à hegemonia do dólar americano na economia global. À medida que esse movimento de desdolarização ganha força, somos forçados a perguntar: o domínio do dólar americano está ameaçado? Acabar com a hegemonia do dólar americano beneficiaria o mundo?
O economista progressista Gerald Epstein lança luz sobre o debate da desdolarização nesta entrevista concedida com exclusividade para Truthout (traduzida para o português por Outras Palavras). Ele explica o papel que o dólar desempenha como moeda internacional na manutenção da hegemonia global dos EUA, discute como o imperialismo ajuda a aumentar o papel do dólar como moeda e analisa se a desdolarização está realmente acontecendo e como a perda do estatuto de moeda de reserva do dólar pode afetar os EUA e a economia mundial. Epstein é professor e co-diretor do Political Economy Research Institute (PERI) na University of Massachusetts Amherst, e autor de um livro a ser publicado pela University of California Press intitulado, Busting the Bankers’ Club: Finance for the Rest of Us [Detonando o Clube dos Banqueiros: Finanças para o resto de nós].
C.J. Polychroniou – O dólar americano tem sido a principal moeda de reserva do mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, graças a um acordo alcançado pelos EUA e seus aliados em Bretton Woods em 1944 para criar um regime cambial internacional no qual o dólar estava atrelado ao ouro. Os EUA cortaram unilateralmente os vínculos entre o dólar e o ouro em 1971, encerrando efetivamente o sistema de Bretton Woods, mas o dólar ainda continua sendo a moeda de reserva internacional, embora outras moedas de reserva (não-dólar) tenham aumentado substancialmente nos últimos 10 a 15 anos. Qual é hoje o papel real do dólar como moeda de reserva primária para a economia global?
Gerald Epstein – O dólar americano é a “moeda internacional” dominante, usada em grande parte do mundo. Tem dominado pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, e provavelmente um pouco antes. Primeiro, devo explicar os papéis que a “moeda internacional” desempenha.
Como a “moeda doméstica” (ou moeda nacional) – o bom e velho dólar americano usado nos EUA, por exemplo –, a moeda internacional exerce vários papéis diferentes. Serve como um “meio de troca” nas transações cotidianas; ou seja, você o usa quando compra um pedaço de pizza ou um carro novo. Uma segunda função é como uma “reserva de valor” para guardar algumas de suas economias. Por exemplo, se você tem um cofrinho, provavelmente tem notas de dólar ou moedas nele. Terceiro, é usada como uma “unidade de conta”; ou seja, as unidades nas quais os preços são anunciados. Por exemplo, estamos usando o dólar como unidade de conta quando dizemos: “essa banana custa 1 dólar e 75 centavos” ou “essa casa custa 1 milhão e 750 mil dólares”. ou “Devo 25 mil dólares em empréstimos estudantis que ainda devo pagar por causa da Suprema Corte”. A moeda internacional também é usada como “meio de pagamento”; ou seja, é usado para pagar os juros e o principal das dívidas.
A moeda internacional também tem algumas funções adicionais importantes que a moeda doméstica não cumpre. As mais importantes são: como uma “moeda de intervenção”, que é quando é usada pelos bancos centrais para comprar e vender moedas internacionais a fim de afetar sua taxa de câmbio internacional (por exemplo, quando o banco central mexicano compra pesos mexicanos com dólares americanos para sustentar o valor do peso em relação ao dólar); e como “moeda âncora”, que é quando um país deseja vincular o valor de sua moeda ao valor de outra moeda (por exemplo, quando a Namíbia deseja manter o valor de sua moeda igual ao rand sul-africano). Da mesma forma, a maioria dos bancos centrais mantém “reservas” (reservas cambiais) compostas por moedas estrangeiras e, em alguns casos, ouro, a fim de intervir nos mercados de câmbio e ter moedas estrangeiras para pagar importações e atender empréstimos estrangeiros, quando necessário.
O dólar dos EUA desempenha um papel dominante em muitos desses usos como moeda internacional em muitas partes do mundo. O grau em que desempenha essas funções varia de acordo com a função, área geográfica e ao longo do tempo. Mas, no geral, não há outra moeda que desempenhe tantos papéis em tantos lugares quanto o dólar americano. Devido a esse domínio, o dólar americano costuma ser chamado de “moeda-chave” internacional.
Mas o dólar americano não é a única moeda que desempenha esses papéis. As mais importantes, nestes últimos casos, incluem o euro, a libra esterlina, o iene japonês, o franco suíço e, em algumas partes do mundo, o renminbi (ou yuan) chinês.
Observe como apenas algumas moedas desempenham esses papéis. As moedas da maioria dos países quase não desempenham nenhum papel como moeda internacional. Por exemplo, a maioria dos países não pode nem mesmo tomar empréstimos nos mercados de capitais internacionais em suas próprias moedas. Quando o Equador toma empréstimos de bancos estrangeiros, os empréstimos são denominados em dólares ou euros, por exemplo. Quando o Equador tem que pagar seu empréstimo, tem que ter dólares suficientes para isso. Quando os Estados Unidos tomam empréstimos da Arábia Saudita, eles só precisam pagar em dólares, uma moeda que os EUA imprimem. Facinho, facinho.
Assim, embora se fale muito da diferença entre a “moeda-chave” (o dólar americano) e todas as outras, talvez a mais importante demarcação da desigualdade e hierarquia no mundo é entre as chamadas moedas fortes [hard currencies] (moedas que também servem como dinheiro internacional) e moedas fracas [soft currencies] (moedas que não servem como dinheiro internacional). Os países com moedas fracas estão em grande desvantagem porque devem adquirir moedas fortes para sobreviver na economia global.
Agora posso dar uma perspectiva histórica quantitativa sobre isso.
Em 1950, os EUA produziam 62% da produção industrial mundial. Em 1975, quase 80% das reservas cambiais oficiais do mundo eram mantidas em dólares, e os EUA representavam 43% da produção manufatureira mundial. Em 2022, os EUA responderam por menos de 20% da produção industrial mundial – cerca de 22% do PIB mundial. Mas 60% das reservas internacionais oficiais do mundo ainda eram mantidas em dólares americanos.
Até que ponto o papel preponderante do dólar americano na economia global está ligado ao tamanho e à força da economia americana?
Como sugerem os números que apresentei acima, na época em que os EUA ultrapassaram a libra esterlina britânica na época da Primeira Guerra Mundial, o tamanho e a força econômica dos EUA foram muito importantes para determinar o papel internacional do dólar. Mas, na virada do século 21, o tamanho relativo e a força da economia dos EUA caíram muito (na verdade, a economia chinesa agora é ou em breve será a maior economia do mundo), mas o papel geral do dólar americano como moeda internacional permaneceu dominante.
Existe uma conexão entre a resiliência do papel do dólar como moeda global e a dinâmica da financeirização e/ou os mecanismos da hegemonia imperialista dos EUA?
Sim, para ambas as perguntas. Embora os Estados Unidos tenham se tornado muito menores no mundo em termos de produção industrial e até mesmo na produção de serviços não financeiros, eles continuaram financeiramente como uma grande potência global. O dólar americano é usado em 60% dos empréstimos e depósitos bancários do mundo; responde por quase 70% da dívida global emitida em moeda estrangeira (por exemplo, empréstimos internacionais do Brasil em moeda estrangeira); e o dólar americano está envolvido em quase 90% das transações cambiais globais, a maioria das quais referem-se a vários tipos de negociação e especulação financeira.
Em suma, os EUA se tornaram um dos países mais “financeirizados” do planeta e esse domínio financeiro sustenta o papel internacional do dólar. É importante ressaltar que a causalidade também ocorre no sentido inverso: ter o dólar como a principal moeda internacional também aumenta o papel, os lucros e o poder das finanças dos EUA no mundo.
Da mesma forma, o imperialismo ajuda a sustentar o papel de moeda chave do dólar dos EUA e esse papel de moeda chave facilita o poder político e militar global dos EUA – ou seja, o uso do poder internacional para extrair recursos de outros países para o benefício principalmente dos capitalistas dos EUA e do 1% [mais rico da sociedade].
Há muitas evidências, começando com o trabalho de meu ex-aluno de pós-graduação, Roohi Prem, que identifica a importância da atuação militar e poder diplomático como base primeiro da libra esterlina e depois do papel-chave do dólar americano. Os países que dependem dos EUA para apoio militar e venda de armas e que fazem parte de alianças diplomáticas e militares dos EUA têm maior probabilidade de manter dólares americanos como reservas monetárias. Isso era muito evidente no caso da Alemanha Ocidental durante a década de 1960, que era totalmente dependente da defesa dos EUA, mas aparece nos dados hoje de maneiras mais sutis. Mais uma vez, a causalidade ocorre em várias direções. Os países usam suas reservas em dólares como um sinal de que fazem parte do “campo” dos EUA e os americanos veem a posse de dólares como um sinal de apoio.
O que os EUA ganham com tudo isso?
Há um debate entre economistas e cientistas políticos sobre isso. Alguns economistas, como Robert McCauley, ex-Bank for International Settlements (BIS), e Paul Krugman, do City College, dizem que a resposta é: não muito. Mas, se isso fosse verdade, como se poderia explicar tudo o que o governo dos EUA faz para proteger e promover o papel do dólar? Por exemplo, o Federal Reserve e o Tesouro dos EUA se envolvem em grandes operações de resgate financeiro em tempos de crise, como a crise financeira de 2008 e a crise da covid-19 de 2020, para oferecer a salvação em dólares para bancos centrais estrangeiros, para que possam estabilizar o uso do dólar pelos bancos desses países e outras instituições financeiras. Eles usam capital diplomático para garantir que a principal rede global de sinalização de transações (SWIFT) seja favorável ao dólar, etc. Alguns argumentaram que os EUA fizeram grandes esforços para garantir que os preços do petróleo continuem sendo denominados em dólares.
O fato é que ter o dólar como a principal moeda mundial dá ao governo dos EUA um poder significativo para dar as ordens financeiras na economia global; dá uma vantagem às instituições financeiras americanas na economia global porque elas têm acesso fácil a dólares americanos do Federal Reserve; e torna mais fácil financiar o enorme déficit orçamentário dos EUA e os empréstimos externos.
O dólar americano vem enfrentando desafios do renminbi e do euro nos últimos anos, a tal ponto que há crescentes apelos de países como o Brasil e vizinhos chineses do Sudeste Asiático para que o comércio seja feito em outras moedas além do dólar americano. De fato, a Rússia e a China desenvolveram seu próprio gateway de pagamento e cada vez mais países buscam alternativas ao dólar americano. Você diria que a desdolarização é real? E isso é bom?
Como você disse, há tentativas de reduzir a dependência mundial em relação ao dólar americano. Existem áreas, particularmente na Ásia, onde o renminbi passou a ser mais usado como denominação comercial; também na Europa, o comércio tem sido faturado mais em euros e menos em dólares. Portanto, há um impulso em algumas áreas para desdolarizar. No entanto, como já indiquei, a força geral do dólar permaneceu muito alta. Parte do motivo é a força financeira e militar/política dos EUA. E parte do motivo é simplesmente a inércia. Uma vez que muitas pessoas no mundo falam inglês, o inglês continua sendo a língua internacional; uma vez que muitos países usam o dólar, eles continuam a usar o dólar.
A desdolarização seria uma coisa boa? Depende, até certo ponto, do que venha a substituir o dólar. Se, como previu o economista John Maynard Keynes, uma moeda global administrada por um banco central global que refletisse melhor os interesses e as necessidades da população mundial substituísse o dólar, sim: isso provavelmente seria uma coisa muito boa. Se o renminbi o substituísse? Ou se houve um compartilhamento mais amplo de várias moedas, como é a evolução mais provável? Sim. Isso quase certamente seria melhor. O domínio das finanças dos EUA e do aventureirismo militar global dos EUA que é auxiliado pelo dólar não é saudável para o mundo. Um papel mais compartilhado para a defesa global seria, a meu ver, um resultado muito mais justo, com esperanças de que seja mais pacífico.
É claro que o papel do dólar per se não é a fonte de todos os males, nem domesticá-lo será a solução para todos os males. Mas pode ajudar.
O argumento mais comum que se ouve contra a desdolarização é que, na realidade, não há alternativa confiável, embora se diga frequentemente que, se os países começassem a negociar uns com os outros em suas próprias moedas, haveria um aumento do risco cambial e flutuações potencialmente selvagens nas taxas de câmbio. Esses não são argumentos sólidos contra a desdolarização?
Há alguma verdade nisso, talvez. Mas, por outro lado, o problema já persiste para os países em desenvolvimento: o capital especulativo de curto prazo entra e sai ainda mais rapidamente. O problema-chave aqui são os fluxos especulativos descontrolados do capital internacional, não a existência de um sistema multimoeda.
O que aconteceria se o dólar americano fosse destronado como a principal moeda de reserva do mundo? Como isso afetaria a economia global, bem como a economia dos EUA e as classes trabalhadoras?
Como sugeri, pode reduzir o aventureirismo militar dos EUA. Também pode reduzir, no entanto, a capacidade dos EUA de incorrer em grandes déficits orçamentários e déficits em conta corrente. O primeiro ponto acarretaria que a classe trabalhadora precisaria construir e utilizar mais força política para exigir que as prioridades do governo atendessem às necessidades das pessoas, em vez do 1% do topo, bancos, empreiteiros militares e empresas de combustíveis fósseis. Déficits em conta corrente também podem aumentar a produção local nos EUA, o que, nas circunstâncias certas, pode ser um benefício para o emprego doméstico.
Quanto ao resto do mundo, pode transferir parte do poder financeiro e político global para outros lugares. Se os trabalhadores do mundo ou os capitalistas do mundo fora dos EUA irão capturar esse poder é uma grande questão, que não tenho como responder aqui.
(*) Por Gerald Epstein em entrevista a C.J. Polychroniou para Truthout | Tradução: Maurício Ayer
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