Um dos mais escandalosos e hediondos casos de grilagem na Bacia do Rio Corrente, ocorrido no fim dos anos 1970
A chamada invasão pernambucana continua trazendo malefícios aos nossos lavradores.
Desta vez, um dos atos mais audaciosos e covardes no campo da grilagem foi praticado por um grileiro de Caruaru (PE) em cima de uma lavradora analfabeta.
O POSSEIRO conseguiu, através dos senhores MANOEL DE SOUZA RAMOS e ANTONIO DE SOUZA RAMOS, um relatório elaborado elo Delegado Especial de Polícia, Bacharel Geraldo Arthur Reis de Castro, designado para apurar os fatos relacionados ao litígio entre o grileiro pernambucano MÁRIO CLEMENTE DA SILVA e o pequeno proprietário MANOEL DE SOUZA RAMOS.
Desse relatório extraí alguns trechos analisados na sequência destas linhas.
A história começa quando dona ANA DE ARAÚJO RAMOS, analfabeta de 78 anos, mãe de oito filhos, ficou viúva de Avelino Marques de Souza Ramos, que era proprietário agrícola da fazenda Formoso do Rio Guará.
Com a morte do marido, Ana Ramos recebeu parte da herança, ficando a parte restante a ser dividida entre os herdeiros.
Algum tempo depois do falecimento de Avelino, Ana Ramos foi procurada por um amigo seu, Américo – residente em Inhaúmas, município de Santa Maria da Vitória, o qual comprou nas mãos da viúva uma pequena porção de terra; porém, como Ana já estava bastante velha e sem condições de cuidar da terra, resolveu vendê-la totalmente a Américo.
Passados alguns meses, AMÉRICO cai vítima de doença fatal, ficando à beira da morte.
REINALDO RODRIGUES DA PAIXÃO, residente em Santa Maria, tendo conhecimento da situação de Américo, resolveu, como de costume, “já que era testa de ferro de Mário Clemente da Silva”, adquirir a terra por um preço muito aquém do que a mesma merecia, aproveitando-se das condições precárias do lavrador.
Reinaldo conseguiu comprar a terra na mão de Américo, só que com o detalhe de que este último não possuía, ainda, nenhum documento de compra da propriedade a Ana Ramos.
Como não existia condição de se legalizar a transição, pelo fato de Américo, nesse período, ter falecido, Reinaldo Paixão foi à procura de Ana de Araújo Ramos, a fim de que esta assinasse uma procuração por instrumento público, outorgando a UBALDINO BIQUIBA GUARANY (delegado do INCRA nesta cidade) plenos poderes para firmar a escritura.
Ana Ramos, inocentemente, pensava estar vendendo a terra a Reinaldo Paixão, quando na verdade este já tomava providência no sentido de passá-la em nome de Mário Clemente. Afinal, testa de ferro é pra isso mesmo…
E agora o “grande golpe”:
A escritura, ao ser lavrada, constava nela que a extensão da terra vendida por Ana Ramos a Reinaldo [ou melhor, Mário Clemente] era de 120 (cento e vinte) hectares.
Mas, segundo o relatório do delegado, “aproveitando-se das escrituras antigas não lançarem os limites com exatidão – e, através de uma escritura de reti-ratificação das mais esdrúxulas, ao arrepio da norma legal e em o cumprimento de procedimentos formais como: pedido de justificação judicial, instrução com depoimentos dos confrontantes, ouvida do representante do Ministério Público, lavrou-se uma reti-ratificação sem o mandado judicial, efetuando-se o registro, transformando-se os 120 (cento e vinte) hectares em 12.000 (doze mil) hectares, isto sem alterar o preço”.
Continua o relatório: “Após a aceleração de tal ato jurídico, tendo em seu poder a escritura ‘legalizada’, o sr. Mário Clemente da Silva, através de homens a seu mando e cargo, passou a escorraçar pequenos posseiros e proprietários, miserabilizando, ainda mais, o pobre e sofrido homem do campo.”
“De início, tentava Mário Clemente e seus ‘procuradores’ comprarem as terras circunvizinhas a sua propriedade por preços irrisórios e, quando não conseguia, após insistentes e ameaçadoras propostas, lançava mão de seus homens e tratores, derrubando cercas e se apropriando da terra.
A partir daí, os seus desmandos aumentaram e [MCS] passou a impedir a passagem dos moradores da região por uma estrada real próxima a sua fazenda, chegando ao ponto de derrubar a ponte municipal, de mais de século e meio, sobre o Rio Guará”.
“As famílias desabrigadas, os danos causados, as alterações de limites, as ameaças diretas e indiretas, os esbulhos possessórios (grilagem), a falsidade ideológica, mesmo que culposa, por parte do Oficial de Registros, Evandro Filardi Alves (Correntina–NR), se encontra, ao nosso ver, comprovada nos autos”.
“A participação em coautoria de Reinaldo Rodrigues da Paixão e a utilização de Ubaldino Biquiba Guarany também se encontram estereotipadas e caracterizadas nos autos, através de prova anexada”.
Enquanto isso, Mário Clemente, sentindo que as autoridades estavam se empenhando em combater tão escandalosa prática de grilagem, resolveu contra-atacar, apresentando uma representação criminal contra Manoel de Souza Ramos, um dos que não se amedrontaram e nem cederam suas terras.
O grileiro acusava o lavrador de invadir sua propriedade e roubar rolos de arame farpado. Para apurar este caso, foram ouvidas diversas pessoas e todas negaram as acusações feitas por Mário Clemente contra Manoel de Souza Ramos.
O grileiro, a certa altura do inquérito, confessa ter realmente derrubado a ponte sobre o rio Guará, além de admitir a participação de Reinaldo Rodrigues da Paixão nos seus negócios.
Fica, então, comprovada a participação direta também de Ubaldino Biquiba e Evandro Filardi Alves.
Outro depoente, sr. Alpiniano Marques de Souza Ramos, declara que passou a ser procurado por Reinaldo Paixão para que lhe vendesse a sua parte da herança. O pequeno proprietário, se vendo assediado insistentemente por Mário Clemente, através de Reinaldo Paixão, resolveu se desfazer da fazenda, embora o preço pago pela terra tenha sido irrisório.
Mas os empregados e jagunços de Mário Clemente, não satisfeitos por não verem as terras de Ailon Marques de Souza Ramos e Manoel de Souza Ramos em poder do grileiro/patrão, derrubaram, por duas vezes, a mando de Mário Clemente, 4.000 (quatro mil) metros de cerca, tentando com isso, amedrontar os herdeiros, fazendo com que eles se afastem da fazenda ou então vendam-na por um preço muito baixo.
Enquanto isso, um jagunço de Mário Clemente, chamado ROGÉRIO, chegou a dizer que tinha ordem de atirar em quem quer fosse aparecer por lá, pela fazenda, mesmo que fossem quinhentas (500!) pessoas.
O oficial de Registros de Correntina, Evandro Filardi, tentando se defender, insiste em negar a verdade sobre fatos do conhecimento de toda a população correntinense.
Outro herdeiro prejudicado pelo grileiro pernambucano é Lionel Marques de Souza Ramos, que conta ter sido procurado também por Reinaldo Paixão, este como procurador de Mário Clemente.
O latifundiário pretendia adquirir uma porção de terra, deixada como herança a Lionel, pelo seu pai Avelino Ramos.
Mas como Lionel não tinha condições nem tampouco necessidade de vender a propriedade, começou a receber pressões, descobrindo, por exemplo, que seu rebanho bovino estava se reduzindo. Investigando, acabou descobrindo que os empregados do grileiro abriam passagens nas divisas e espantavam o gado pro outro lado do rio, indo as reses se perderem nos gerais que circundam a propriedade.
Outra vítima do grileiro Mário Clemente foi MANOEL JESUS CURVELO. Ele adquiriu de Alfredo Francisco dos Santos e sua esposa uma área de terra no Formoso do Rio Guará. De repente, Manoel Jesus foi surpreendido com a notícia de que Reinaldo Paixão tinha vendido suas terras a Mário Clemente.
Depois da desonesta transação, Mário Clemente colocou os seus trabalhadores dentro da propriedade de Manoel Curvelo, abrindo uma estrada variante para o seu uso. E, covardemente, aproveitou-se do fato de que, em certo dia, Manoel não estava em casa, apareceu com homens armados e expulsou da casa a mulher e os filhos do lavrador, ficando ela e eles desamparados e desabrigados.
Antonio de Souza Ramos afirma que Reinaldo Paixão, utilizando-se de outros procuradores profissionais encarregados de assinar escrituras públicas, incentivava o grileiro pernambucano a comprar grandes extensões de terras por preços sempre abaixo do que as propriedades realmente valiam. Aproveitava-se, sobretudo, da ignorância do povo, amedrontando-o com pistoleiros contratados pelo grileiro.
Manoel de Souza Ramos, o mais perseguido por Mário Clemente, costumava levar seu gado para os gerais, por causa da cheias dos rios; um dia, quando voltava, encontrou uma cerca em plena estrada, junto ao porto do Rio Guará, ficando, portanto, impedido de passar com sua boiada.
Ele, Manoel, suspendeu então a cerca e passou com o gado; alguns dias depois, voltando com o gado, pelo mesmo caminho, o encontrou fechado e com guardas armados, dispostos a não deixar que ele passasse. Tudo isto a mando de Mário Clemente, que também mandou derrubar a ponte sobre o Rio Guará, como já descrito acima.
O grileiro passou, então, a tentar comprar a fazenda de Manoel Ramos, propondo Cr$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil cruzeiros), proposta rejeitada pelo proprietário. O grileiro, ante a resistência do lavrador, depois de criar vários problemas, chegou ao ponto de mandar derrubar com um trator de esteira mais de quatro quilômetros de cerca da fazenda de Manoel.
Outro depoimento de grande importância é o de ANTONIO FERREIRA DOS SANTOS.
Disse ele que sua esposa recebeu uma herança junto ao Rio Guará, na qual ele trabalhava. De certo tempo pra cá, funcionários, eufemismo pra definir a jagunçada de Mário Clemente, passaram a persegui-lo, procurando lhe tirar a terra a qualquer custo. A perseguição chegou a culminar com a invasão à terra do lavrador, por parte de empregados e jagunços de Mário Clemente, fortemente armados, desacatando na ocasião a esposa do camponês, simplesmente porque ela reclamava dos maus-tratos que os jagunços faziam a uma vaca, através de pauladas.
Destaque-se o depoimento de dona ANA DE ARAÚJO RAMOS, que viu seus 120 hectares se transformarem em 12.000 hectares.
Diz dona Ana que, após a morte de Américo, foi procurada por Reinaldo Rodrigues da Paixão, que lhe disse que teria de fornecer documento para assinar escritura da terra vendida a Américo, em favor de Mário Clemente da Silva. A viúva foi convencida por Reinaldo Paixão a firmar procuração dando poderes a Ubaldino Biquiba Guarany, pelo fato de ser analfabeta.
Dona Ana, ingenuamente, confiou nas palavras de Reinaldo e assinou a procuração por instrumento público. Depois, ela veio a saber que a sua pequena propriedade de 120 hectares foi transformada em 12.000 hectares.
Como consequência dessa jogada extremamente suja e desumana de Mário Clemente e seus lacaios, diversos posseiros que existiam dentro da área se viram prejudicados, caindo então nas garras ferinas do grileiro pernambucano.
Tecendo rápidas considerações sobre o maldito fenômeno da grilagem, sem dificuldade conseguimos notar que a audácia dos hediondos grileiros é cada vez mais ostensiva, contando com apoio de políticos do governo além de, para piorar a situação, contar com o apoio incondicional de funcionários públicos corruptos, para cometer a afronta de transformar um minifúndio de 120 num latifúndio de 12.000 hectares de terras.
Além disso, torna-se necessário refletir sobre o clima de terror criado por Mário Clemente da Silva na região onde pratica suas grilagens. Imagine-se mulheres e crianças defrontando-se com armas de fogo em poder de pistoleiros do grileiro. Tudo isso indica que dias piores virão pros pequenos lavradores baianos.
E indica também que as terras baianas, a esta altura com 10% do seu total em mãos de estrangeiros, correm o risco de caírem, antes do que a gente pensa, nas mãos de latifundiários pernambucanos, alagoanos, paraibanos, além de baianos é claro, tais como Jener Pereira Rocha, Luiz Américo Lisboa, Alberto Nunes e outros menos votados mas igualmente desumanos.
Entretanto, o maior perigo é que as terras acabem se tornando propriedades exclusivas de latifundiários, sendo baianos ou não.
É ponto pacífico que o latifúndio, principalmente o improdutivo, venha de onde vier, é um mal a ser combatido implacavelmente.
E, com uma luta incessante, pode e tem que ser derrubado.
Publicado originalmente n’O Posseiro nº 6 outubro 1979
PS: A denúncia contida nesta reportagem gerou uma derrota fragorosa assestada contra o grileiro.
Destrinchando…
Assim que a edição acima citada começou a circular, fui na agência local do Banco do Brasil vender alguns exemplares, lá existiam funcionários leitores do nosso periódico, além de contribuintes mensais da Biblioteca Campesina.
Logo depois de ter retornado a biblioteca, recebi a visita de um contínuo do banco dizendo que o gerente Xavier estava interessado em comprar alguns exemplares, 10 precisamente.
Tudo bem, fui lá, vendi, recebi e zarpei, 5 minutos nesse tipo de estabelecimento já é demais pra mim.
Alguns meses depois fui informado por um dos funcionários do BB que um projeto rural, vultoso, requerido por Mário Clemente tinha sido indeferido pela direção geral do banco em Brasília.
Só aí fiquei sabendo que os exemplares do jornal que Xavier tinha comprado foram enviados pra matriz do banco na capital federal.
Tão escandalosa foi a trama que nem naqueles tempos de ditadura, tava começando a tal da abertura com o general-presidente Figueiredo [“quem for contra a democracia eu prendo e arrebento!”], se pôde permitir apoiar um grileiro extremamente perverso, monstruosamente cruel.
Recebi também recado mandado pelo chefe dos pistoleiros de MC, Rogério de tal, dizendo que viria a Santa Maria me fazer engolir o jornal.
Quarenta e três anos depois ainda num saboreei uma página sequer do Posseiro e vou continuar sem saborear já que o pistoleiro foi comer capim pela raiz há muito tempo.
(*) Por Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.