Como Getúlio Vargas ganhou de novo,quando quiseram, mais uma vez, acabarcom ele e com o que seu governo fazia
Esta narrativa foi montada com base em informações, trechos e material de pesquisa de meu livro A Era Vargas, escrito por sugestão de Brizola e publicado em três volumes há mais de vinte anos, em 2001.
Nos últimos dois anos venho trabalhando numa versão atualizada e condensada dele, para caber em um volume apenas, já que hoje nem o leitor mais obstinado tem tempo para enfrentar tantas páginas. Essa versão tenta fazer da saga de Getúlio uma narrativa que às vezes pode parecer um verdadeiro romance, mas um romance de não-ficção e sim de fatos – espantosos às vezes e, no entanto, rigorosamente documentados.
Ela está quase pronta e depende apenas de uma revisão final para ficar disponível já em agosto, quando se completarem setenta anos exatos do momento em que, com sua morte, Getúlio ganhou de novo e fez da tragédia seu maior triunfo.
Se essa nova versão de A Era Vargas fosse um filme ou um seriado de TV, este seria seu trailer. J.A.R., 21 de maio, 2024.
Na noite de 1º de maio de 1954, há setenta anos exatos neste mês, quando assinou o decreto que aumentava em 100% o salário mínimo, o Presidente Getúlio Vargas prestou homenagem em seu discurso a seu ex-Ministro do Trabalho João Goulart, Jango, que se demitira em fevereiro, atingido por um manifesto de coronéis (articulado e escrito pelo então coronel e depois general Golbery do Couto e Silva, futuro cérebro do grupo civil-militar que articulou o golpe de 1964).
Jango era, desde 1952, presidente nacional do PTB, o partido de Getúlio, fundado por ele em 1945, e deixara prontos os estudos para o próximo reajuste do salário-mínimo. Ao associá-lo à proposta que recomendava os 100% de aumento, Getúlio projetava Jango como um de seus herdeiros políticos e de certo modo foi profético.
No ano seguinte Jango seria eleito Vice-Presidente da República, como companheiro de chapa do Presidente Juscelino Kubitschek, e em 1960 seria reeleito, embora adversário do Presidente eleito, Jânio Quadros, porque na época a votação para Vice era separada da votação para Presidente. Em 1961, finalmente, a renúncia de Jânio levou Jango à Presidência, graças à Campanha da Legalidade liderada por Leonel Brizola, então Governador do Rio Grande do Sul.
Jango na Presidência retomou corajosamente os projetos de Getúlio. Em seu governo o Congresso finalmente desengavetou e aprovou o projeto de criação da Eletrobrás (em 1962) e votou o Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia às relações de emprego e trabalho no campo as leis trabalhistas de Getúlio. Por esses e outros avanços, Jango foi derrubado pelo golpe de 1º de abril de 1964.
Na noite de 1º de maio de 1954, Getúlio foi ainda mais profético ao projetar para um futuro que pretendia próximo, mas o regime militar instaurado pelo golpe de 64 bloqueou ao longo de seus vinte anos, o papel dos trabalhadores no desenvolvimento político, econômico e social do país. Falando diretamente aos trabalhadores, Getúlio disse:
— Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo.
Era a antecipação da Era Lula, que a Era Vargas tornava previsível, e Getúlio poderia ser profético também em relação a ele mesmo e dizer que sabia do preço a pagar por esse decreto. Por ele e por outras iniciativas de seus dois governos, como, por exemplo, toda a legislação trabalhista do primeiro deles e agora, no segundo, esse aumento de 100% do salário mínimo, a criação da Petrobrás e a proposta de criação da Eletrobrás.
O salário mínimo, compromisso de Getúlio desde a Revolução de 1930, enfrentou tais resistências e atropelos que só começou a ser pago em 1940 e, corroído pela inflação resultante da Segunda Guerra Mundial, foi reajustado por Getúlio em 1943. Derrubado Getúlio em 1945, seu sucessor, o General Dutra, manteve o mínimo congelado nos índices de 1943 pelos cinco anos de seu governo, de 1946 a 1951, embora nesse período o custo de vida tivesse aumentado 40% na média do país e 60% no Rio, a capital da República e sua cidade de maior população.
De volta à presidência em 51, Getúlio teve de reestudar toda a questão do custo de vida e das perdas de poder aquisitivo do salário mínimo reajustado por ele em 1943 – e a 1º de janeiro de 52 reajustou de novo seus índices.
Na época, cada região do país tinha seu próprio salário mínimo, de acordo com suas tabelas de custo de vida – calculados e fixados pelo governo federal. Nominalmente o mais alto salário mínimo do país, o do Rio, onde a vida era bem mais cara, passou de 410 para 1.200 cruzeiros – quase 200% de aumento. (Em termos reais, esse reajuste foi depois avaliado como equivalendo a um aumento de 14% no poder de compra de quem o recebesse.) Nesse reajuste não houve a mesma reação que em 1954, talvez porque a oposição ainda não tinha conseguido se organizar e também porque o comércio passou a vender e a indústria a produzir muito mais, com o correspondente aumento de seus lucros.
Com o congelamento nos anos em que Getúlio esteve fora do poder, ele não foi apenas o presidente que instituiu o salário mínimo – a mais importante e irredutível garantia de toda a legislação trabalhista da Era Vargas – mas foi também o presidente que instituiu o mecanismo de seu reajuste em função das altas do custo de vida e perda de poder aquisitivo dos salários.
A garantia do salário mínimo e seu reajuste implicava o realinhamento de todos os outros salários e aumentava a participação dos rendimentos do trabalho no conjunto da renda nacional – e eles chegaram a 60% do total, contra 40% dos rendimentos do capital.
Essa promissora distribuição de renda foi revertida logo depois do golpe de 1964, que derrubou o governo do presidente João Goulart. Depois de 64, a relação 60/40 virou ao contrário, 60% para os rendimentos de capital e 40% para os rendimentos do trabalho.
A melhor distribuição de renda que o Brasil alcançou com Getúlio permitiu que no governo do presidente Juscelino Kubitschek, entre 1956 e 1961, a economia do Brasil crescesse a índices que chegaram a 7% ao ano e o salário mínimo alcançasse seu maior poder de compra de toda a sua história, equivalente a 500 dólares mensais.
OS AVANÇOS DE ABRIL
Se avaliava o preço a ser pago pelo decreto do salário mínimo, Getúlio sabia igualmente que custariam tão caro quanto ele os projetos de seu governo que tinham marcado as semanas anteriores, ao longo do mês de abril. Um já estava em andamento, a Petrobrás. Outros dois, não menos ousados, foram propostos ao Congresso pouco antes do 1º de maio>: o da Eletrobrás e o da extensão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais.
A Petrobrás, criada por lei em outubro de 1953, estava em organização e em abril de 54 se consolidou como empresa, com a nomeação de diretores e a contratação dos primeiros funcionários. Em pouco tempo ela estaria pronta para sair do papel e começar a pesquisar e produzir petróleo.
E ainda em abril Getúlio parecia ter pressa quando mandou ao Congresso, quase ao mesmo tempo, o projeto de criação da Eletrobrás e o projeto de extensão dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais. Ambos fariam avançar substancialmente as conquistas da Era Vargas, mas ao mesmo tempo atingiam grandes interesses estrangeiros e também nativos.
O primeiro assegurava direitos como a estabilidade ao trabalhador rural, a limitação da jornada de trabalho, a proteção à mulher e ao menor e a filiação do trabalhador à Previdência Social.
Como o projeto foi simplesmente engavetado, num Congresso de maioria conservadora do qual Getúlio já arrancara o projeto da Petrobrás, não houve qualquer debate sobre as garantias a cada categoria de trabalho rural. A maioria dos trabalhadores rurais ainda vivia em situação feudal e não tinha qualquer relação de emprego com o dono da terra ou do agronegócio: uns trabalhavam em regime de parceria ou meação, dividindo com o dono da terra o resultado de sua colheita; outros eram arrendatários e alugavam um pedaço de terra em troca de um aluguel fixo; e alguns eram contratados temporária ou permanentemente como assalariados para tarefas, por exemplo, como a colheita do café ou o trato do gado.
O engavetamento do projeto de Getúlio congelou por bom tempo a desproteção do trabalhador rural, mas em 1963, nove anos depois e durante o governo do Presidente João (Jango) Goulart, o Congresso afinal aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural, projeto de autoria do deputado Fernando Ferrari, ex-líder e depois dissidente do partido de Jango, o PTB, fundado por Getúlio em 1945.
A principal consequência imediata da aprovação do Estatuto foi a disseminação da sindicalização rural, antes reprimida com tal brutalidade e estupidez que Getúlio foi acusado no Congresso de entregar o Brasil ao comunismo por estimular a criação de alguns sindicatos de trabalhadores rurais. No momento do golpe de 1964 o governo Jango já tinha reconhecido cerca de 1.500 sindicatos de trabalhadores rurais, federações nacionais de todas as categorias e até a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, a Contag.
A ELETROBRÁS, SENTENÇA DE MORTE DE GETÚLIO?
O segundo projeto que Getúlio mandou ao Congresso em abril era o da Eletrobrás, na verdade um conjunto ou pacote de quatro projetos. Três foram engavetados, porque resultariam na criação de uma Eletrobrás parecida com a Petrobrás, só que sem qualquer monopólio. O quarto projeto criava o imposto único sobre energia elétrica e foi rapidamente discutido na Câmara e no Senado. A esse projeto não havia oposição: isolado dos outros, ele criava recursos abundantes para projetos de geração de eletricidade que permitiriam também grandes parcerias com a iniciativa privada, nacional e estrangeira. Aprovado em agosto, foi por questão de dias que ele não voltou a Getúlio, que poderia sancioná-lo, mas vetando dispositivos que considerasse contrários ao interesse nacional.
Mandado ao Congresso em abril de 54, quando ficaram prontos os estudos para sua complicada elaboração, o projeto da Eletrobrás tinha sido anunciado na tarde de 21 de dezembro de 53, num discurso de improviso de Getúlio em Curitiba, numa reunião dos governadores dos Estados-membros da Comissão Interestadual da Bacia do Paraná-Uruguai, a CIBPU.
A bacia dos grandes rios Paraná e Uruguai cobria os Estados do paraná, Mato Grosso, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais e os governadores desses Estados estavam reunidos em Curitiba nas comemorações do centenário do Estado do Paraná, criado em 19 de dezembro de 1853 como Província do Paraná e desmembrado da então Província de São Paulo, da qual era antes a comarca de Curitiba.
Getúlio participava de todas as solenidades comemorativas desse centenário e na reunião dos governadores da CIBPU entusiasmou-se, resolveu discursar de improviso e mobilizar esses governadores, revelando o que seu governo, que já organizava rapidamente a recém-criada Petrobrás, planejava naquele momento na área da política energética:
— … quero chamar a atenção de todas vós. É a necessidade urgente, a necessidade cada vez maior de aproveita¬mento do potencial hidrelétrico do Brasil. O desenvolvimento industrial do país está em atraso porque lhe falta energia elétrica necessária; porque esse desenvolvimento não é acompanhado pela produção de energia barata para essa expansão industrial.
— Esta situação precisa ser resolvida dentro de um plano geral, de programa federal que aproveite a todo o país. Assim como foi criada a Petrobrás, que está sendo montada a fim de forne¬cer recursos necessários para a extração do petróleo brasileiro, estamos elaborando, agora, [o projeto de uma] companhia de eletricidade que deverá ser denominada Eletrobrás.
Horas depois desse discurso, em jantar com os governadores dos Estados da bacia Paraná-Uruguai, Getúlio disse ao Governador do Paraná, Munhoz da Rocha, em tom bem-humorado e de certo modo se felicitando:
— Com esse discurso, Governador, talvez eu tenha assinado minha sentença de morte.
O discurso da Eletrobrás foi uma surpresa e no dia seguinte provocou, nas principais bolsas do Primeiro Mundo, a queda das ações das grandes multinacionais geradoras e distribuidoras de energia elétrica.
Getúlio não se intimidou e em sua mensagem de Ano Novo, pelo rádio, na noite de 31 de dezembro de 1953, reafirmou sua decisão de pedir ao Congresso a criação da Eletrobrás:
— Devo anunciar-vos que em 1954 começarão a ser executados três grandes planos de relevância extraordinária, destinados a transformar a estrutura econômica e a fisionomia do país… O primeiro é o da Petrobrás, por meio do qual demonstraremos de maneira concreta aos pessimistas e descrentes que estamos aptos a resolver o problema do petróleo em bases nacionalistas, isto é, com o trabalho, a técnica e o capital exclusivamente brasileiros.
— O segundo é o Plano de Eletrificação, também de importância vital para o nosso desenvolvimento, que reclama, cada vez mais, de maneira premente, energia abundante e produzida a baixo custo, para a expansão e a intensificação das indústrias, elevando-nos da condição semicolonial…
— Empenha-se ainda o governo em outra obra de singular magnitude, que virá redimir economicamente toda uma prodigiosa região com dimensões de continente. Refiro-me ao Plano de Valorização Econômica da Amazônia…
A reação não foi só das bolsas de valores do Primeiro Mundo quando Getúlio revelou o projeto da Eletrobrás. Nesse momento ele não tem condições de saber, mas um órgão da CIA, o Intelligence Advisory Commit¬tee, acaba de transmitir ao Departamento de Estado um bombástico pacote de “informações” (na verdade fake News, embora essa palavra ainda nem tivesse sido inventada). Segundo a CIA, Getúlio estaria mal de saú¬de, “com a possibilidade de se tornar física ou mental¬mente incapaz de superar os problemas do governo, caso em que o Vice-Presidente Café Filho o substituiria”.
Já era a armação de uma nova tentativa de impeachment, primeiro passo para o golpe.
UM RECURSO AO SUPREMO CONTRA O NOVO MÍNIMO
No mesmo dia em que decretou o aumento de 100% do salário mínimo, Getúlio aprovou o o novo regulamento da Previdência Social e seus institutos, então organizados por categoria profissional e só muito depois unificados no atual INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social).
O novo regulamento resultava dos debates e recomendações do Congresso da Previdência, planejado desde a gestão de Jango no Ministério do Trabalho e realizado pouco depois, com a participação de dirigentes sindicais de todo o país, que representavam milhões de trabalhadores.
O regulamento atendia às reivindicações do movimento sindical e permitia a participação de trabalhadores indicados pelos sindicatos na administração dos institutos ligados à sua categoria profissional. Antes mesmo e sobretudo depois da nomeação de Jango para o Ministério do Trabalho em 1953, Getúlio já vinha nomeando representantes dos sindicatos para cargos de direção na Previdência Social.
Para boa parte do mundo empresarial isso era uma intromissão insuportável nos institutos de Previdência, que tinham sido sucateados no governo Dutra. Com seus quadros funcionais reduzidos ao mínimo, eles mal podiam controlar a arrecadação das contribuições devidas pelos empregadores e das descontadas dos salários dos trabalhadores para financiar seus serviços e o pagamento de aposentadorias, pensões e outros benefícios.
Um caso famoso de sonegação dessas contribuições era o do Rei da Mídia de então, Assis Chateaubriand, dono de jornais e rádios poderosos em todos os Estados, de uma revista semanal que vendia meio milhão de exemplares em cada edição e das duas únicas TVs existentes no país, uma no Rio e a outra em São Paulo, um verdadeiro monopólio privado. Chateaubriand nunca pagava a contribuição patronal devida por suas empresas, nem recolhia à tesouraria dos institutos a contribuição que descontava religiosamente de seus salários.
Com certeza a aprovação do novo Regulamento da Previdência radicalizou ainda mais a revolta de Chateaubriand pelos 100% de aumento do salário mínimo e suas TVs e seus jornais e rádios deram grande cobertura à imediata e barulhenta reação de entidades empresariais contra os decretos de Getúlio.
A reação começou por um manifesto da Associação Comercial de São Paulo, Federação do Comércio de São Paulo, Bolsa de Mercadorias, Federação das Empresas de Transporte Rodoviário, Federação das Indústrias, Centro das Indústrias, Sociedade Rural Brasileira e Bolsa de Cereais de São Paulo.
— As medidas de caráter econômico e social decretados pelo Sr. Presidente da República a 1º de Maio bem como o discurso que então pronunciou – dizia o manifesto – intranquilizaram as classes produtoras de São Paulo e, por certo, do Brasil … Os conceitos expendidos pelo sr. Presidente da República envolvem um desrespeito a ponderáveis forças nacionais como se procurasse gerar condições propícias a uma transformação do regime.
— Se o governo optou pela solução que lhe indicou o interesse eleitoral – dizia ainda o manifesto, ameaçadoramente – cabe-lhe assumir sua responsabilidade, ao invés de pretender culpar as classes produtoras pelo agravamento da situação econômica do país, como tantas vezes fez no passado.
Paralelamente, o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Rio entrava com um mandado de Segurança no Supremo Tribunal Federal, alegando que Getúlio não tinha poderes, pela Constituição, para decretar reajustes do salário mínimo. Era uma alegação cínica e ao mesmo tempo tola, porque em plena vigência da Constituição da época, a de 1946, e com base nela, Getúlio tinha reajustado o salário mínimo em janeiro de 1952 e esse reajuste vinha sendo pago fazia mais de dois anos sem qualquer impugnação.
UM PEDIDO DE IMPEACHMENT PARA SER DERROTADO
A febril cobertura que os “Diários Associados” de Chateaubriand dava à mobilização conservadora contra Getúlio não impedia que ele mantivesse nas página de opinião desses jornais uma curiosa e até simpática pluralidade de pontos de vista.
O alto da página 3 de O Jornal, que se apresentava em seu cabeçalho como “Órgão leader dos Diários Associados” (com essa ortografia então aceita), era ocupado por três colunistas paginados lado a lado: num dos lados um colunista de extrema-direita feroz, Nertan Macedo, sabidamente integralista; no outro lado, um grande amigo de Jango, futuro deputado e líder do PTB e depois Vice-Presidente do PDT de Brizola, Doutel de Andrade, que publicava notícias, não comentários, sem disfarçar suas posições; no centro, finalmente , Murilo Marroquim, que procurava manter o perfil de observador arguto e isento.
Num desses primeiros dias de maio, Marroquim revelou um novo impulso dos grupos conservadores:
— Aberta a luta: livre iniciativa versus intervencionismo. Confirmada a tese do Vice-Presidente da República. As classes conservadoras paulistas contra Vargas. A reação dos círculos centristas do país demonstra … que Vargas retomou sua posição de liderança política, colocando-se francamente com os trabalhadores para as eleições em perspectiva. Até o momento, nada autoriza a imaginar que o processo normal da vida pública seja afetado … Aqui, a tese exposta há alguns meses pelo Vice-Presidente readquire sua oportunidade. O sr. Café Filho observou que a sucessão presidencial se caracterizaria pela resistência do grupo empresarial da livre empresa contra o intervencionismo estatal em ascensão…
A referência a Café Filho, talvez proposital e maliciosa, mostra que o Vice-Presidente já está enturmado com os grupos anti-Getúlio e pronto a servi-los caso se abra para ele a oportunidade de assumir a Presidência.
Só falta um pedido de impeachment para completar a montagem do golpe – e ele acontece apenas três dias depois do decreto do salário mínimo (e a menos de um mês do projeto da Eletrobrás e da instalação da Petrobrás como empresa).
O pedido de impeachment é assinado pelo líder estudantil Wilson Leite Passos, ativo organizador de comitês do Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a Presidente contra Getúlio nas eleições de 1950, e se baseia em duas alegações. A primeira é a existência de um suposto acordo entre Getúlio e Perón, Presidente da Argentina para a formação de um bloco Argentina-Brasil-Chile contra a influência e os interesses dos Estados Unidos na América Latina. A segunda retoma um pedido anterior de impeachment e acusa Getúlio de violação da lei orçamentária por ter autorizado despesas extraordinárias da Comissão Central de Preços – a mesma impostura futura das pedaladas fiscais invocadas contra a Presidente Dilma Rousseff décadas depois…
Coincidência ou não, caem as exportações brasileiras de café para os Estados Unidos. A previsão é de uma queda de 5% no consumo, embora se esperasse que poderia chegar a 12%. Em março de 1954, os Estados Unidos importaram apenas 84 milhões de libras-peso de café brasileiro, contra 118 mil libras-peso em março de 1953.
O pedido de impeachment anda rápido na Câmara dos Deputados e no fim de maio a Comissão Especial criada para opinar sobre ele discute o parecer do relator, deputado Vieira Lins, do PTB e Vice –Líder do governo, que propõe o arquivamento do processo. O parecer é aprovado por 12 votos a 4.
Nesse momento ainda não se sabia que o pedido só tinha sido apresentado para ser derrotado, não para derrubar Getúlio.
A DERROTA DO IMPEACHMENT FACILITARIA O GOLPE
Boa parte da UDN, o principal partido de oposição, achava que o pedido não tinha sentido, mas um dos maiores líderes do partido manteve-se intransigente – o Brigadeiro Eduardo Gomes. É o que diz John W. Foster Dulles em sua biografia de Carlos Lacerda:
— Afonso Arinos … encontrou Eduardo Gomes inflexível na exigência de que o líder da UDN no Congresso [apoiasse a proposta de impeachment de Getúlio.]. Afonso Arinos disse ao Brigadeiro que o impeachment não era o caminho certo a seguir e que o projeto provavelmente seria recusado, beneficiando o Presidente. O Brigadeiro insistiu.
Afonso Arinos conta como foi:
— Foi o Brigadeiro que me pediu, pessoalmente, que encaminhasse o requerimento. Eu disse a ele: “Brigadeiro, é completamente impossível. Esse recurso nunca deu resultado, mesmo quando era recomendável. Todas as tentativas fei¬tas durante a República fracassaram. Não há justificativa alguma para o que o senhor está querendo que eu faça, é uma aventura. O senhor está me mandando chefiar uma aventura destinada ao fracasso.” Ele falava sempre por meias pala¬vras – não por sutileza, mas por reserva militar – e me disse: “Mas dr. Afon¬so, isso é preciso.” Insistiu, insistiu, e da última vez chegou a ir à minha casa em Petrópolis. Ficou pedindo, pedindo, e afinal me disse:
“Isso é necessário para que se forme, no meio militar, a consciência de que não há solução legal”. Aí, descobri o jogo.
O Brigadeiro queria que o impeachment fosse derrotado – e quanto maior a derrota melhor – para convencer militares ainda indecisos (ou contrários a Getúlio mas defensores de seu afastamento por meios legais) de que não existia a possibilidade de acabar com ele a não ser por um golpe militar, como acontecera na derrubada de seu primeiro governo, em 1945.
De acordo com o desejo do Brigadeiro Eduardo Gomes, que fora derrotado por Getúlio na eleição presidencial de 1950 e antes pelo candidato apoiado por Getúlio, o General Eurico Dutra, na de 1945, o pedido de impeachment foi votado no plenário da Câmara na sessão de 16 de junho e rejeitado por 136 a ridículos 25 votos. Com esse resultado, ficava muito mais fácil arregimentar apoio militar para o golpe.
POR 6 A 2 O SUPREMO CONFIRMA O SALÁRIO MÍNIMO
Outra expectativa dramática, nesses dias, era o decreto do salário-mínimo, contra o qual tinha sido impetrado mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal pelo Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem. A 5 de julho, o Supremo decidiu, por 6 votos a 2, que era perfeitamente legal e constitucional o decreto de Getúlio que aumentava em 100% o salário mínimo.
— Em vigor o novo salário mínimo! – anunciara com ponto de exclamação uma das manchetes da Última Hora na manhã seguinte.
E acrescentara nos subtítulos:
No dia seguinte, Getúlio recebe uma representação dos sindicatos de trabalhadores e diz aos visitantes:
– Afinal, vencemos.
Essa vitória seria a última de Getúlio vivo, mas encerrava uma ironia: se o Supremo tivesse derrubado o aumento do salário mínimo, as entidades empresariais e a mídia a elas associada ficariam muito mais sossegadas e a febre do golpe cederia bastante.
A VAIA NO JÓQUEI
Na tarde de domingo, 1º. de agosto, Getúlio chegava ao Jóquei Clube, no Rio, para assistir ao Grande Prêmio Brasil, e foi recebido com uma vaia ao ser anunciada sua presença na tribuna de honra. Segundo a Última Hora, jornal que o apoia, ele foi hostilizado apenas por uma parte do público da tribuna social e imediatamente aplaudido pelo público muito maior das arquibancadas populares, que, assim, calou a vaia.
A vaia, em geral manifestação popular e plebeia, partiu desta vez da tribuna frequentada pelos grupos mais ricos e aristocráticos. A vaia a Getúlio na elegantíssima tribuna social do Jóquei Clube tinha indiscutivelmente duas causas imediatas.
Uma, o aumento de cem por cento do salário mínimo decretado por Getúlio, outra a violenta campanha contra ele de seu mais furioso inimigo político, Carlos Lacerda, tanto em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, de tiragem inexpressiva, quanto nas televisões dos “Diários e Emissoras Associados”, de Assis Chateaubriand, e nas rádios e jornais de Chateaubriand em todos os Estados.
Essas as duas causas imediatas e imediatamente perceptíveis. Mas havia outras, invisíveis e desconhecidas da maioria dos brasileiros naquele momento. Entre elas o petróleo, que ao longo da primeira metade do século provocara guerras, revoluções, golpes e muita corrupção ao redor do mundo e naquele início de sua segunda metade era uma das causas da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética e das ameaças de uma Terceira Guerra Mundial, desta vez com a bomba atômica.
A PETROBRÁS SAI DO PAPEL
Nenhum dos grandes jornais deu a notícia. Mas a Petrobrás assume neste 1º de agosto o controle efetivo de todas as reservas de petróleo em território brasileiro, de todos os campos em pesquisa e exploração, de todos os navios transportadores, de todas as unidades de processamento e armazenamento de óleo bruto e derivados e de todas as outras instalações industriais ligadas à atividade petrolífera e de propriedade do governo federal. É o caso da Refinaria de Mataripe, construída na Bahia para processar preferencialmente o petróleo de Lobato, ali perto.
Agora a Petrobrás sai do papel e passa a exercer, de fato, o monopólio estatal do petróleo. A principal missão da Petrobrás não seria a produção de lucros, mas garantir, nas melhores condições para a economia do país, o abastecimento de derivados de petróleo em todo o Brasil.
No momento em que Getúlio pediu ao Congresso a criação da Petrobrás, o Brasil produzia apenas 2.100 e refinava apenas 5 mil barris por dia de petróleo. O Brasil dependia quase totalmente de petróleo e de derivados (gasolina, diesel, óleo combustível) importados. Em caso de guerra ou de uma simples crise internacional, o Brasil não teria petróleo para mover sua economia. Nem para realizar operações de patrulhamento e vigilância necessárias à proteção de suas fronteiras e de seu litoral. O Brasil não teria como defender seu território e garantir sua independência e soberania.
Cinquenta anos depois da criação da Petrobrás, o Brasil produzia, por dia, mais de 1 milhão e 600 milhões de barris de petróleo (para um consumo de cerca de 1 milhão e 800 mil barris) e refinava 1 milhão e 800 mil barris, isto é, a totalidade de seu consumo. E sessenta anos depois já explorava petróleo nos campos do Pré-Sal, com reservas estimadas em mais de 50 bilhões de barris.
Nenhum dos grandes jornais registra o fato de que nesse domingo a Petrobrás deixa de ser uma empresa de papel, uma abstração jurídica, para tornar-se uma realidade muito mais difícil de destruir que até esse momento.
Até outubro de 1953, a Petrobrás era um projeto, que os interesses opostos fizeram de tudo para derrubar ou desfigurar no Congresso. De outubro de 1953, com a sanção da Lei 2004, a maio de 1954, ela se tornara uma criação legal, que só poderia ser desfeita por outra lei que a extinguisse ou despojasse de alguma prerrogativa essencial. Em abril de 1954, a Petrobrás fora instalada como empresa, com registro em cartório, investidura de diretores e contratação dos primeiros funcionários. A 1º de agosto, porém, ela dá o passo mais importante no processo que a transformará na maior empresa brasileira e numa das maiores indústrias petrolíferas do mundo, ao assumir o controle jurídico e físico de todas as instalações de propriedade governamental de uma nascente e promissora indústria petrolífera, inclusive uma refinaria e alguns navios.
Nenhum dos grandes jornais registra esse fato. Mas os grandes jornais vêm publicando anúncios enormes, de página inteira, às vezes duas páginas inteiras, promovendo a nova gasolina azul da Esso, a subsidiária do grupo Standard Oil (Rockefeller) no Brasil. Normalmente as gasolinas, os lubrificantes e os derivados de petróleo são anunciados nas rádios e já agora nas TVs e não nos jornais… Esses anúncios nos jornais não se destinam a vender gasolina – não se destinam a vender o que quer que seja. Eles foram programados e pagos para consolidar e angariar simpatias. Simpatias contra a Petrobrás. Eles, no entanto, não saem no jornal do governo, A Noite, um dos vespertinos mais populares do Rio de Janeiro.
A Petrobrás sair do papel e o novo salário mínimo podem levar Getúlio a pressentir que alguma coisa de muito sério vai acontecer ou ser armada contra ele. A vaia no Jóquei não será um presságio? Para Getúlio, foi mais que um presságio. Foi uma certeza, como dirá amanhã ao filho mais velho, Lutero.
“VAI ACONTECER DE NOVO!”
Na manhã de segunda-feira, 2 de agosto, horas apenas depois da vaia no Jóquei, Getúlio perguntou ao filho Lutero se ainda se lembrava “daquela história de 45”. Lutero fora ao Palácio do Catete para levar ao pai seu abraço de filho depois da vaia no Jóquei, e foi surpreendido por essa pergunta.
As lembranças, depois de tanto tempo, podem tornar-se confusas, mas deve ter sido em março de 1945 que Lutero chegou dos Estados Unidos com um recado para o pai, que nesse momento preparava a convocação de eleições que poriam fim ao regime então vigente do Estado Novo. Lutero era médico e servira como tenente-médico, incorporado à FAB, a Força Aérea Brasileira, nas forças expedicionárias brasileiras que lutaram na Itália contra a Alemanha de Hitler na Segunda Guerra Mundial.
Ortopedista, uma das especialidades mais necessárias na guerra, Lutero logo se tornou conhecido por suas façanhas cirúrgicas e ele começou a ser chamado para operar oficiais e soldados das forças norte-americanas, inglesas e de outros países aliados, na frente de operações da Itália.
Nos meses finais da guerra, no início de 1945, antes mesmo do colapso e da capitulação da Alemanha nazista, as forças brasileiras de terra e ar, a FEB e a FAB, deram por encerrada sua participação nas operações na Península Italiana, da qual as tropas alemãs eram definitivamente expulsas. Nesse momento, em fevereiro ou março de 1945, Lutero foi convidado para visitar os Estados Unidos, onde queriam agradecer-lhe pelo que fizera, como um dos melhores cirurgiões das forças aliadas, pelos oficiais e soldados norte-americanos feridos em combate na frente italiana.
Recebido e homenageado como grande médico, é claro que Lutero foi ouvido também como o filho do Presidente do Brasil. Num almoço em Nova York, no distrito financeiro de Wall Street, no último dia da viagem, pediram que ele falasse dos planos de seu pai para o futuro do Brasil.
Lutero não confiava em seu inglês, mas foi em frente e contou sobre os projetos de Getúlio, desde a Revolução de 1930, em favor do desenvolvimento e da emancipação econômica do Brasil. Esses projetos tinham sido acelerados, nos anos da guerra e em virtude das demandas que ela impunha, pela implantação, por exemplo, da grande siderurgia (a usina de Volta Redonda estava em construção) e pela retomada, com apoio do Presidente Roosevelt, das reservas de minério de ferro antes alienadas aos interesses do americano Percival Farquhar, reservas com as quais se constituiu a Companhia Vale do Rio Doce para garantir o fornecimento de ferro para o esforço de guerra aliado contra Hitler. Completava esse quadro o primeiro projeto brasileiro sob controle nacional de uma grande usina de hidroeletricidade (o projeto de Paulo Afonso, no rio São Francisco).
Lutero falou também dos planos políticos do pai – e do projeto já em pleno andamento de desmonte do Estado Novo, uma ditadura implantada por Getúlio em 1937 para impedir a emergência de uma ditadura fascista no Brasil – desmonte que teria começado antes se a guerra não se prolongasse tanto.
À saída, o anfitrião insistiu em levá-lo até o elevador – era um daqueles enormes arranha-céus no distrito financeiro de Manhattan. No caminho, longe dos olhos e ouvidos dos outros convidados, interrompeu o percurso para dizer mais ou menos o seguinte, segundo reconstituição feita por Lutero em agosto de 1979 ao autor desta narrativa.
— Este almoço foi para o médico Lutero Vargas, não para o filho do Presidente do Brasil. Mas sua exposição sobre o Brasil me deixa à vontade para pedir que o senhor comunique a seu pai, o Presidente, o que desgraçadamente vai acontecer nos Estados Unidos.
— O Presidente Roosevelt está gravemente doente e desenganado, e tem poucas semanas de vida. Roosevelt tem grande admiração pelo Presidente Vargas e a maior gratidão pela ajuda do Brasil na guerra.
— A maioria dos grandes banqueiros e industriais americanos não gosta do Presidente Vargas. O pretexto é que ele chefia um governo ditatorial, mas a verdadeira razão é que o programa econômico do governo brasileiro prejudica interesses de grandes grupos americanos.
— Roosevelt compreende que o Brasil tem o direito de se desenvolver, e que isso será bom para os Estados Unidos. Por isso apoiou a construção da usina de Volta Redonda. Mas os grandes banqueiros e industriais também não gostam de Roosevelt. Assim que ele morrer, o novo governo vai retirar o apoio a seu pai e vai tentar derrubá-lo.
— Mas não vão derrubar ditadores como Franco, da Espanha, que apoiou Hitler e a Alemanha nazista, e Salazar, de Portugal, que ficou neutro. Não vão mexer com os militares argentinos, como esse coronel Perón, que controlam o governo e só agora rompem com a Alemanha para a Argentina poder entrar na ONU.
De volta ao Rio, Lutero transmitiu ao pai o aviso e não estranhou que ele parecesse indiferente:
— Exagero. Imagina… Essas coisas não são assim.
Getúlio evitava contagiar a família com os problemas e perigos que enfrentava – e até com suas preocupações. Supondo que fosse isso, Lutero não insistiu.
Agora, em 1954 e aparentemente sem propósito, Getúlio pergunta a Lutero se ainda se lembra dessa conversa de 1945.
— Claro, lembro, mas por quê lembrar agora?
— Como tu tinhas razão, meu filho. Na época eu não acreditei que isso fosse possível.
Só à medida que avançarem os dias deste mês de agosto, Lutero começará a compreender o que Getúlio diz em seguida:
– Vai acontecer de novo…
Lutero compreenderá que o pai já se sabe com a cabeça a prêmio. Essa conversa e essa certeza de Getúlio aconteciam, portanto, três dias antes do atentado contra Carlos Lacerda, na madrugada de 5 de agosto, a partir do qual as coisas se precipitariam.
O ATENTADO E A CRISE DE AGOSTO
O atentado contra Carlos Lacerda aconteceu no início da madrugada de 4 para 5 de agosto, três dias apenas depois da conversa de Getúlio com Lutero e Getúlio soube dele nas primeiras horas da manhã.
As informações começavam pela notícia menos pior, Lacerda tinha escapado, com um ferimento a bala, num dos pés. Mas seu acompanhante, que estava com ele para protegê-lo e era um major da Aeronáutica, Rubens Florentino Vaz, morrera na hora.
Getúlio sabia que seria responsabilizado por qualquer coisa que acontecesse com Carlos Lacerda – e nesse momento Lacerda já o acusava, em edição extra da Tribuna da Imprensa: não ousava acusá-lo de ter sido o mandante do atentado, mas de estimular crimes como esse ao proteger ladrões e assassinos.
Lacerda acusá-lo ara previsível, mas a morte de um militar que acompanhava Lacerda daria muito mais munição aos adversários e inimigos de Getúlio. Pior ainda era que o motorista Nelson Raimundo, que conduzira um dos pistoleiros, tinha ido à polícia e informara que seu táxi fazia ponto no cruzamento das ruas do Catete e Silveira Martins, precisamente a esquina do Palácio do Catete, sede da Presidência da República e residência oficial de Getúlio.
Pronto, era o bastante para envolver Getúlio no atentado. Uma vez que o objetivo desta narrativa é mostrar como Getúlio ganhou de novo quando de novo tentavam acabar com ele e com o que seu governo vinha fazendo, não será necessário mergulharmos nos sucessivos episódios da crise de agosto de 54, bastará mencionar um episódio nunca mencionado na torrencial literatura contra Getúlio que se acumulou nos últimos setenta anos.
O PREÇO DA CHANTAGEM: “… É SÓ ELE DESISTIR DA PETROBRÁS”
Muito antes do atentado da Rua Tonelero, amigos e colaboradores de Getúlio, como Oswaldo Aranha e Tancredo Neves, esforçavam-se para conter ou, pelo menos, atenuar a fúria dos ataques dos “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, ao governo e à pessoa de Getúlio.
Sem a televisão de Chateaubriand, Carlos Lacerda não levaria tão longe e tão fundo sua campanha contra Getúlio.
Dono das únicas Tvs existentes no Brasil, uma no Rio, a capital política, e outra em São Paulo, a capital econômica do pais, Chateaubriand controlava um verdadeiro monopólio privado na área das telecomunicações e ainda era dono e de jornais e rádios poderosos em todos os Estados e de uma revista semanal ilustrada, O Cruzeiro, que vendia meio milhão de exemplares a cada edição e supria a ausência de televisões fora do eixo Rio-São Paulo.
Com tudo isso, Chateaubriand era o Rei da Mídia no Brasil da época e seu império pautava automaticamente toda a mídia de todo país.
Os esforços desses amigos e colaboradores de Getúlio, , segundo Tancredo Neves, resultaram inúteis. Mas no dia 16 de agosto, associando-se pessoalmente a eles, Getúlio recebeu Chateaubriand no Palácio do Catete – encontro que seria revelado pelo próprio Chateaubriand na sessão do Senado de 24 de agosto, horas depois da morte de Getúlio – discurso que começa lembrando por quanto tempo os dois se conheciam:
— Nestes trinta anos e pouco – diz Chateaubriand – estabeleceu-se entre mim e Getúlio Vargas uma intimidade tão constante, tão permanente, sem embargo das divergências doutrinárias, de pontos de vista contrários no encarar os problemas do Brasil, que a nossa amizade pôde ser conservada de tal modo, nestes três decênios, que há oito dias dele recebi um convite para ir ao Palácio do Catete.
— Esse nosso encontro foi uma das páginas mais dramáticas da nossa vida, pois o que Getúlio Vargas me pedia era o que eu estava disposto a lhe dar: o ato de justiça de esperar que os acontecimentos nos quais se achava envolvida a sua autoridade, pudessem merecer do Judiciário o julgamento indispensável para que os seus concidadãos aferissem da limpeza, da decência e da dignidade de sua pessoa naquele emaranhado de acontecimentos, de nenhum dos quais, estou certo, havia tido ciência.
A 16 de agosto, nesse encontro, Assis Chateaubriand declarou-se disposto ao ato de justiça de aguardar a decisão da Justiça sobre os acontecimentos nos quais estava envolvida a autoridade de Getúlio. A 16 de agosto, Assis Chateaubriand, o jornalista e empresário de jornal, rádio e TV mais poderoso do Brasil daquele momento, não duvidava “da limpeza, da decência e da dignidade [do Presidente] naquele emaranhado de acontecimentos”. De nenhum deles, Chateaubriand estava certo, Getúlio “havia tido ciência”.
Apesar disso, os jornais de Chateaubriand, as rádios de Chateaubriand e a TV de Chateaubriand permaneceram, por mais oito dias, até o desfecho da crise, à disposição de Carlos Lacerda e seus acólitos, contra Getúlio.
Chateaubriand também não revelou, no mesmo discurso, o encontro que tivera, em plena crise, com o General Mozart Dornelles, Subchefe do Gabinete Militar de Getúlio, a quem conhecera na Revolução de 30 – Mozart na condição de combatente, Chateaubriand na de jornalista.
Da realização desse encontro e do que nele foi dito, o autor da presente narrativa teve notícia pelo Senador Francisco Dornelles, filho do General Mozart, primeiro em conversa particular e depois, no início de 2005, em depoimento gravado e filmado para o documentário de televisão Tancredo Neves, Mensageiro da Liberdade. Em outra oportunidade o Senador Francisco Dornelles disse a mesma coisa em depoimento para a TV-Senado.
Chocado com a virulência dos ataques de Lacerda a Getúlio nas televisões de Chateaubriand, a do Rio e a de São Paulo – contou o senador – o General Mozart procurou Chateaubriand para pedir que a dureza e a crueza das expressões de Carlos Lacerda fossem atenuadas.
— Eu sou o maior admirador do Presidente – respondeu Chateaubriand. – Eu adoro o Presidente. Se ele quiser eu tiro o Lacerda da TV e entrego a TV a quem ele quiser para fazer a defesa do governo…
E completou, numa reviravolta que surpreendeu o General e era o preço da chantagem:
— … é só ele desistir da Petrobrás.
De volta ao Palácio do Catete, e chocado com a exigência de Chateaubriand, o General Mozart decidiu aconselhar-se com o Ministro da Justiça Tancredo Neves, seu cunhado (o General era casado com Mariana Neves Dornelles, irmã de Tancredo). Queria saber se deveria contar a Getúlio o que ouvira de Chateaubriand.
Tancredo respondeu:
– Acho que você deve contar, sim. O Presidente precisa saber disso. E se é isso, nós dois sabemos que o Presidente morre mas não desiste da Petrobrás.
Getúlio morreu dias depois, na manhã de 24 de agosto, e só como transcurso do tempo foi possível ir identificando as consequências de seu suicídio.
De imediato ele impediu a guerra civil que seria inevitável e imediata se ele fosse deposto ou morresse resistindo – e essa era a maior angústia dele nessa crise, que outros brasileiros morressem por causa dele, sobretudo jovens.
Em questão de dias foi possível saber que o novo governo não ousaria nem derrubar o aumento do salário-mínimo nem mexer na Petrobrás, apesar das pressões que sofria.
Com mais algum tempo foram derrotadas as tentativas de adiar e depois cancelar as eleições para o Congresso ainda em 54 e depois as verdadeiras campanhas golpistas contra a candidatura, contra a eleição, contra a posse e contra o governo do Presidente Juscelino Kubitschek, eleito em 1955.
Finalmente, o suicídio de Getúlio adiou por dez anos o golpe de 1964.
EPÍLOGO
Para alguns adversários, a morte marcava a derrota final de Getúlio. A história mostraria, porém, nos anos e nas décadas seguintes, que não foi bem assim. E um desses adversários, talvez o mais inteligente e sem dúvida o mais sereno, percebeu instantaneamente a verdade. Chamava-se Prudente de Morais, neto, era neto de Prudente de Morais, o primeiro Presidente civil da República, e foi um dos maiores jornalistas e melhores advogados de sua época.
Adversário de Getúlio, mas sempre elegante em seus artigos diários, publicados sob o pseudônimo de Pedro Dantas, ele seria também, dez anos depois, um dos mais obstinados adversários do Presidente João Goulart, até a queda deste em 1964. Tornou-se uma das vozes mais ouvidas pelos dirigentes do novo regime, a começar pelo Marechal Humberto Castello Branco, o primeiro Presidente do ciclo militar. Nessa época, logo depois do golpe de 1964, Prudente empenhava-se em conseguir emprego para jornalistas perseguidos, em evitar que fossem presos e, quando o eram, em tirá-los da cadeia.
Em 1975, esse defensor dos homens e do movimento de 1964 aceitou a presidência da Associação Brasileira de Imprensa, a ABI, que agonizava, sufocada pela brutalidade do principal instrumento jurídico da ditadura, o Ato Institucional número 5, o AI-5. Logo depois, liderou os protestos da ABI e outras entidades da sociedade civil contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog num quartel em São Paulo.
Em agosto de 1954, Prudente era um dos diretores e principal articulista do Diário Carioca, um pequeno jornal que se definia, já no cabeçalho, como “o máximo de jornal no mínimo de espaço” – apenas 12 páginas nos dias úteis, quando os jornais maiores vinham com um mínimo de 24, e 24 aos domingos, quando os grandes chegavam a cem páginas e até mais.
Era um jornal inteligente, irônico, bem escrito – e abolira o tratamento cerimonioso e às vezes untuoso com que o noticiário tratava as pessoas importantes. Foi o Diário Carioca que, em seus títulos e manchetes, transformou o “Sr. Juscelino Kubitschek” no simpático JK. A si próprio, o jornal se referia como DC. Em pouco tempo, essa revolução na linguagem jornalística viria a contagiar toda a imprensa brasileira.
Na madrugada de 23 para 24 de agosto, ninguém no Diário Carioca foi para casa. Manifestos de almirantes e brigadeiros, falando pela Marinha e pela Aeronáutica, exigiam desde a véspera, pelo menos, a renúncia de Getúlio. A estes somara-se, na noite de 23, um manifesto de generais em nome do Exército, com a mesma imposição. Na noite anterior, voos rasantes sobre o Catete anunciavam a hipótese de bombardeio do Palácio por alguns pilotos da Força Aérea, inteiramente rebelada.
Na sede do Diário Carioca, por volta das oito e meia da manhã, Prudente de Morais está sozinho em sua sala, escrevendo. Ouve da redação, a poucos metros, o ruído de vozes excitadas ou exaltadas; ouve em seguida um estouro que pode parecer um tiro, mas é seguido do tilintar de copos. Ele se levanta a vai à redação, onde alguém abriu uma garrafa de champanhe. Prudente imagina que Getúlio renunciou e que os colegas comemoram o fim da crise – sem sangue.
— Ele renunciou? – pergunta por via das dúvidas.
— Não – respondem – ele se matou.
O que se segue nesta reconstituição é o que ficou na memória do autor desta narrativa daquilo que ouviu do próprio Prudente, cerca de quinze anos depois, em seu escritório, numa tarde em que não havia outras visitas e ele parecia muito envolvido por essa e outras lembranças.
— Você sabe – disse ele, interrompendo o que prometera contar – que eu não sou de me exaltar, de perder a cabeça.
Prudente era também de extrema delicadeza com todos, e quando chegava ao Diário Carioca, no fim da tarde, segurando na mão esquerda a pasta e o chapéu e com a bengala pendurada no braço, fazia questão de estender a mão direita para cumprimentar com um sorriso cada um dos que ia encontrando. Até os contínuos e os gráficos, sujos de graxa, que estivessem na redação não dispensavam seu aperto de mão.
— Pois nessa hora perdi a cabeça – disse ele, referindo-se ao impacto que lhe causava a notícia do suicídio de Getúlio.
— Senti um calor, acho que uma vermelhidão subindo pelo peito, pelo pescoço e pela cabeça. Dei um murro na mesa à minha frente, gritando: “Vocês não entenderam!” e disse um palavrão.
Prudente não era nenhum puritano, era poeta, boêmio e um grande conversador. As histórias que ele contava, sempre com muito humor, podiam ser entremeadas de palavrões que alguém ou ele próprio tivesse dito, não o palavrão ofensivo e rancoroso, mas o palavrão bem-humorado, para fazer graça. Mesmo nessa hora, o palavrão não soa agressivo, é mais um expletivo de admiração que de hostilidade.
— Eu perdi a cabeça – insiste – e soltei um palavrão.
E o repete num verdadeiro berro:
— Filho da puta!!!
Diante da surpresa dos colegas e constrangido pela própria violência, ele como que se desculpa:
— Vocês não entenderam!
O que ele quer dizer é que não há o que comemorar, não há por que brindar com champanhe:
– Vocês não entenderam! – repete Prudente, mais calmo. E arremata com uma frase que em apenas quatro palavras expressaria sua sensação de derrota e decepção e definiria para sempre aquele momento e toda a história de Getúlio Vargas:
– Ele ganhou de novo!