“Depois dos acontecimentos da manhã de 15 de novembro de 1889, o governo provisório então organizado sob a chefia de Deodoro dava à publicidade um Manifesto e baixava, naquele mesmo dia, o seu decreto nº 1, constitutivo do novo regime. Dizia esse decreto, em seu artigo 1º: “Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo da nação brasileira a República Federativa”. Formou-se o primeiro ministério com elementos de relevo na propaganda e na implantação da República: Fazenda – Conselheiro Rui Barbosa; Interior – Aristides Lobo; Justiça – Campos Sales; Exterior – Quintino Bocaiuva; Agricultura, Comércio e Obras Públicas – Demétrio Ribeiro; Marinha – Eduardo Wandenkolk e Guerra – Benjamin Constant Botelho de Magalhães” (Theodorico Lopes e Gentil Torres, Ministros da Guerra do Brasil 1808-1948, Rio de Janeiro, 1949, 3ª edição).
Dois elementos ressaltam na descrição de Lopes e Torres, em epígrafe: a condição “provisória” da República e a organização alargada do Estado, calcada na de Tomé de Souza (1549): provedor-mor (fazenda, agricultura, comércio e obras públicas), ouvidor-mor (justiça e interior) e capitão-mor da costa (marinha). A representação Exterior não caberia numa colônia e o Exército talvez fosse a parte desembarcada do capitão-mor da costa. Nenhuma função “civil” era ocupada por militar e, diferentemente do Império, civis não ocupavam pastas militares.
Ao qualificar os ministros como “elementos de relevo na propaganda e na implantação” da República, os citados autores parecem estar afirmando ter sido a política atividade unicamente civil. Mas o poder governamental ficara em mãos militares. Creio que foi uma polarização cultivada desde o Império, como que o poder agrário exportador temesse ser ofuscado ou suplantado pelo poder militar. Criaram a Guarda Nacional e os recursos orçamentários para as Forças Armadas (FA) só foram mais substantivos durante a Guerra contra o Paraguai, retomando após a vitória aos baixos valores habituais (Liberato de Castro Carreira, História Financeira e Orçamentária do Império no Brasil, Senado Federal, Brasília, 1980, dois volumes).
“Qual a origem do militarismo no Brasil?”, indaga Paulo Timm (Os militares e a política no Brasil, A Folha, Torres (RS), 08/15 maio 2020). “Curiosamente”, responde, “me parece que aqui não foi a despolitização da vida pública, mas no fato de que esta jamais se constituiu num caminho verdadeiramente popular para a construção da Política”.
Perspicaz observação do colunista gaúcho, professor Paulo Timm. Brasil e Estados Unidos da América (EUA) conquistaram a independência debatendo centralização (federalistas e conservadores) ou autonomia regional (republicanos e liberais) quando tinham a gravíssima questão da escravidão racial a seu lado. Ou seja, uma opção de poder para as cúpulas políticas sem considerar a questão social. Tanto lá no norte quanto aqui no sul, a questão social não era permitida ingressar nas opções políticas. Como hoje, vigente o avassalador neoliberalismo, é empurrada a questão nacional para fora do tablado da política.
E nem se diga que não tínhamos pensadores arrojados. Em junho de 1808, no primeiro número do Correio Braziliense, Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823) enaltecia a ação libertadora de Francisco Miranda e Simón Bolívar. E, em 1855, vinha a lume “O Socialismo” do General José Ignácio de Abreu e Lima (1794-1869).
O que era o socialismo de Abreu e Lima? “O socialismo não é uma ciência, nem uma doutrina, nem uma religião, nem uma seita, nem um sistema, nem um princípio, nem uma ideia: é mais do que tudo isto, porque é um designo da Providência. Em que consiste o socialismo? Na tendência do gênero humano para tornar-se ou formar uma só e imensa família” (General Abreu e Lima, O Socialismo, com Prefácio de Barbosa Lima Sobrinho, Editora Paz e Terra – FAPERJ, RJ, 2001, 2ª edição).
Assinala Barbosa Lima Sobrinho, no referido prefácio, que Abreu e Lima precede de 17 anos a “Teoria do Socialismo”, do historiador lisboeta Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894), e acrescenta: “Tanto Abreu e Lima como Oliveira Martins admitem a propriedade privada, embora naturalmente limitada pelos interesses sociais. Para Abreu e Lima, os fundamentos da sociedade se constituem de dois pilares: a família e a propriedade”. “E a ideia de confundi-la com a marcha da civilização ou com as conquistas do progresso, valia por uma demonstração da importância que os dois pensadores atribuíram à justiça social”.
No Brasil a questão social foi apodada como caso de polícia, como as ações políticas nacionalistas foram contestadas como estatismo ou autoritarismo, como se o liberalismo fosse tão somente um modo livre de responsabilidade com a Pátria e descomprometido da vida em sociedade.
Dessa maneira, a política jamais pode se entranhar na alma do povo, ser parte do necessário debate sobre o futuro da sociedade e, ao fim, ficar enxovalhada como mera distribuição de benesses para os permanentes detentores do governo. Pois o poder efetivo jamais se afastou dos colonizadores, Estados ou ideologias estrangeiros.
Sem ter política, sem discutir rumos distintos para o País, sem incorporar nesta prática argumentativa todos os cidadãos, caímos num marasmo sucessório das mesmas tendências, dos mesmos compromissos, só despertados quando por movimento em que as Forças Armadas foram fundamentais, como o civil de 1934 ou o militar de 1967. E desde os ideais apresentados por José Bonifácio, o Patriarca da Independência, são estes dois episódios os únicos em nossa História nos quais o Brasil foi verdadeiramente soberano, buscando constituir soluções nacionais, com seus próprios meios.
Mas há outro empecilho à verdadeira e efetiva independência nacional.
Mestre Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), na obra seminal de 1966 “Administração e estratégia do desenvolvimento: elementos de uma sociologia especial da administração” (com uma 2ª edição, FGV, RJ, 1983, e título “Administração e Contexto Brasileiro”), distingue três ordens de elementos na estrutura da ação. Os elementos aestruturais, “uma espécie de subsolo”, que “por si sós nunca dão forma à situação administrativa”. Os elementos estruturais ou configurativos, “que dão forma aos elementos aestruturais, ou os aglutinam ou combinam formando com eles um sistema coerente”. E a decisão como elemento estruturante.
Analisemos sob esta ótica o modelo imposto na primeira organização do Brasil, então colônia na qual a experiência da gestão privada – as Capitanias Hereditárias – fracassara, e o Reino Português constituía um Governo-Geral cuja estrutura, de algum modo, se repetirá até 1930.
Elementos aestruturais são a força de trabalho, as condições materiais e o sentido e orientação das condutas. Vê-se, desde logo, a fragilidade de uma estrutura sem povo, sem recursos autóctones e dirigida para atender um interesse estrangeiro. Por conseguinte, a configuração estaria ajustada à economicidade de meios para menor ônus e maior agilidade no atendimento ao poder externo. Para uma sociedade livre, independente, a inadequação é evidente. E a eficácia decisória estará fortemente comprometida pela extraterritorialidade do objetivo.
Em 1925, conforme cita Guerreiro Ramos, a psicóloga e pedagoga inglesa Mary Sturt enunciou em seu livro “Psychology of Time”: “o tempo é um conceito, e este conceito é construído pelo indivíduo sob a influência da sociedade em que vive”. Prossegue o mestre: “o tempo não é uniforme e identicamente percebido pelos indivíduos. Em outras palavras, a percepção do tempo é afetada por fatores sociais e culturais”.
No século XVI e, provavelmente, nos três séculos seguintes, a estrutura identificadora das funções seria a mais adequada para se obter um resultado único e comum aos diversos esforços empreendidos. Mas quer a Teoria dos Sistemas Gerais, quer os recursos da Teoria da Informação e da Cibernética exigem a perfeita identificação dos objetivos, muito mais do que as tecnologias aplicadas, para o sucesso do trabalho.
E, como vimos, mantivemos e ainda mantemos a organização do Estado brasileiro sob pressupostos não mais condizentes com a contemporaneidade nem a eficácia pretendida.
Cabe assinalar uma diferença nem sempre bem percebida entre as ações públicas e privadas. A ação privada é muito mais facilmente avaliada: deve apresentar lucro contábil, resultado financeiro positivo devido à ação operacional. A ação pública exige eficácia, adequabilidade dos meios aos objetivos e a competência agregadora e consonante para obter o ganho para o Estado e a Sociedade. Portanto o simplismo de avaliar a ação pública por indicadores financeiros mostra somente a incapacidade do analista.
A melhor modalidade de estruturar o Estado Nacional é pelos objetivos, facilitando assim as opções que seus executores deverão tomar diante das inescapáveis rotas distintas ou até conflitantes.
Temos dois eixos basilares do Estado Nacional contemporâneo: a soberania e a cidadania.
Caberá ao Estado Nacional, representando a sociedade como um todo e garantindo esta representatividade pela participação ativa, planejar e orientar todas as ações, públicas e privadas, para consecução das metas cronologicamente distribuídas. Como Abreu e Lima, resguardada a propriedade com função social, abrem-se diversas formas de organização desde o empreendedorismo individual às formas cooperativas e associativas empresariais.
Haverá, indiscutivelmente, funções unicamente cabíveis ao Estado, como da Defesa Nacional e da Garantia dos Direitos, para que interesses privados não desvirtuem seus objetivos. Também há de se atribuir a potestate estatal para garantir a própria soberania. Abdicar dos suportes materiais para o exercício do poder pode significar abdicar do próprio poder, o que é inadmissível quando se trata da Soberania Estatal, responsável por toda uma população nacional.
Assim considerando teríamos o Estado Nacional Brasileiro constituído de um único poder, centralizado quanto ao planejamento e o controle e descentralizado quanto à execução. Atuando diretamente como Estado e com Empresas Públicas, vinculadas aos organismos estatais.
Tomemos um exemplo. Nas áreas diretamente vinculadas à Soberania, proporíamos como natural a Defesa Nacional. Compondo a Defesa Nacional temos as Forças Armadas, o Serviço de Inteligência e a Representação no Exterior.
As FA além das forças aérea, marítima e terrestre, necessitam de diversos organismos para provê-las com veículos, instalações, equipamentos e material bélicos e, ainda, instituições de pesquisa e desenvolvimento e fábricas regionalizadas e empresas diretamente subordinadas ao conjunto da Defesa Nacional. Estas organizações são específicas para servir unicamente ao Estado. Devem agir com as restrições e segurança de toda ação pública e mais ainda quando se trata da existência da Pátria. Além de não se colocar de modo algum o lucro, a adequabilidade, a eficácia, a disponibilidade e condição de manutenção são elementos indispensáveis da avaliação. E só o próprio Estado pode se responsabilizar, não é terceirizável.
Poder não se terceiriza. E isto não se aplica apenas na área diretamente envolvida com a Defesa Nacional. Energia, nas diversas fontes primárias, minerais cuja distribuição no mundo é desigual e representa importante fator geopolítico, aquíferos, e tecnologias desenvolvidas para solução de problemas brasileiros ou condições brasileiras precisam estar sob controle e operação do Estado ou Empresas Públicas.
Por conseguinte, a partir dos dois grandes objetivos nacionais permanentes – consolidar e manter a Soberania e construir permanentemente a Cidadania – a estrutura do Estado vai se detalhando em objetivos mais específicos na profundidade organizacional gerenciável e satisfatória para poder integrar os esforços.
A atuação militar estará em interseção com diversos outros objetivos nacionais, resguardadas suas especificidades técnicas e aquelas próprias ou únicas do poder armado contra o agressor externo.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado.