Uma das hipóteses que se pode ouvir sobre o desempenho de Melo no primeiro turno da eleição municipal de Porto Alegre e sua vitória no segundo turno é que a população da nossa cidade é essencialmente conservadora e desprovida de consciência de classe. Some-se a isso que a esquerda teria escolhido a candidata errada para a disputa eleitoral.
Essa hipótese não necessariamente é desprovida de elementos de verdade, mas é mais sedutora e covarde do que propriamente verdadeira. É sedutora porque, ao colocar a responsabilidade na população e na candidata, exime-se partidos e dirigentes políticos de seus papéis no processo. É covarde porque coloca em quem foi escolhida e se colocou corajosamente na linha de frente do enfrentamento como um bode expiatório, uma “candidata errada”.
A verdade é que a eleição de 2024 foi um retumbante fracasso eleitoral e político da esquerda. Fracasso eleitoral porque ainda que tenha eleito bancada considerável no parlamento, terminou a disputa majoritária com 38% dos votos válidos em uma eleição onde estavam criadas as melhores condições de vitória dos últimos 20 anos.
As enchentes trouxeram para o centro do debate fragilidades e debilidades da nossa cidade nos sistemas de contenção de cheias que expuseram o governo municipal (que respondia por si e por algumas décadas de outros prefeitos) e ainda assim Melo venceu a eleição em diversas zonas em que a cidade mais parecia um campo de guerra e ainda segue agora enfrentando seus efeitos.
Isso demonstra também o fracasso político, porque em uma situação limite como essa, ainda assim, PT, PSOL, PCdoB, PV, PSB, REDE e AVANTE não conseguiram se constituir no primeiro turno como uma alternativa programática e de esperança para esta população. Mais que isso, nem mesmo conseguiu conquistar no segundo turno aqueles que no primeiro também disseram não a Melo. A constrangedora nota de apoio do PDT Metropolitano à Rosário dizendo que preferia se manter neutro, mas que fora centralizado pela direção nacional do partido diz muito sobre isso.
A hipótese de que a população prefere votar em qualquer um do que votar no PT, seja por um antipetismo ou um alinhamento da população à direita, não é de todo verdadeira – ou Edegar Pretto não teria vencido
a eleição estadual em Porto Alegre na mesma eleição em que Lula também o fez na eleição presidencial. Também não mudou tanto assim o eleitorado que elegeu por duas vezes o PT para governar o estado e quatro vezes para governar Porto Alegre.
Assim, é o PT de Porto Alegre quem precisa avaliar o que fez de si mesmo nessa cidade e porque a população já não lhe dá tantos créditos – assim como a própria militância já não se empolgue tanto em fazer a disputa.
O PT precisa começar por refletir de forma sincera o porquê de Maria do Rosário ter sido candidata (já que agora muitos petistas aderiram à tese da candidata errada), ao invés de jogá-la aos leões como responsável pela derrota. Rosário (não Maria, como vaziamente foi chamada pelos marqueteiros de plantão) foi candidata porque teve a coragem de se apresentar quando ninguém mais o fez. Então a conta da “candidata errada”, seja pelo perfil, seja pela rejeição, é do próprio PT que não teve condições de apresentar outro nome.
E não teve condições porque apesar de propagar fortemente a sua capacidade de renovação, a verdade é que apenas constrói quadros que se movimentam muito por questões identitárias e pouco ou quase nada por questões de natureza universal, no afã de conquistar mandatos ou se colocar “na vanguarda” deste ou daquele setor. Não à toa, a cada eleição se olha para estes, mas não tendo muito ali, se requenta a velha fórmula mágica da vitória com Tarso, Olívio e Raul, nomes que tem em comum serem quadros universais, maduros, experimentados, mas também serem de uma geração que já vem pendurando as chuteiras. Rosário não é um nome universal, mas é um dos melhores quadros que o PT de Porto Alegre construiu depois da nossa trinca de prefeitos.
O PT em Porto Alegre foi a campo com Maria do Rosário, mas em Gravataí foi com Bordignon, Esteio com Gilmar Rinaldi, Bagé com Mainardi, Santa Maria com Valdeci, Pelotas com Marroni e por ai vai… Denise Pessoa em Caxias talvez seja um dos pontos fora dessa curva, mas no cômputo geral, o PT disputou com os mesmos de sempre. Não há problema em colocar os melhores quadros na linha de frente, mas há algo de errado quando os melhores quadros são sempre os mesmos salvando a lavoura, enquanto os etaristas de plantão fazem suas odes à uma pretensa oxigenação e renovação permanente do PT, cheia de artificialismos.
Faz tempo que o PT deixou de proporcionar formação política para a sua base, assim como faz tempo que o PT deixou de construir suas instâncias a partir destas bases. Em algum tempo já distante, o PT sequer admitia que um parlamentar pudesse acumular o mandatolegislativo com, por exemplo, a presidência do PT. Hoje é difícil um presidente do PT que não tenha mandato. Novamente fugindo à regra, a atual presidente estadual do PT, Juçara Dutra Vieira, não é parlamentar, mas foi precedida por diversos parlamentares. Na Direção Nacional, uma parlamentar, na direção municipal, outra parlamentar.
Então eu questiono: como presidir um partido, sentar à mesa com a direção de outros partidos, construir estratégias e investir nas instâncias sem que se contamine com os interesses do próprio mandato e vice versa? E quanta importância se dá ao fortalecimento do partido, quando talvez seja muito mais cômodo e sedutor drenar esse poder para os mandatos, como se vê ocorrendo faz anos?
Enquanto o partido se esfacela e os mandatos se fortalecem dentro dos seus interesses setoriais, o programa partidário se esvai em um grande nada em que tudo que sobra é chamar os outros de “chinelão”.
Houve um tempo em que queríamos derrotar os colarinhos brancos e as cortes burguesas do nosso país. Nesse tempo, muitos nos acusavam de sermos donos da razão, de nos considerarmos uma elite intelectual, posição que até nos arrogávamos pela publicação constante de uma vasta formulação teórica, debates permanentes e o programa de um outro mundo possível – e não só na ideia, mas com caminhos para ir até lá. Os adversários chamavam o PT de arrogante por oferecer respostas. Hoje a arrogância é porque o PT se considera bom demais a ponto de chamar os outros de “chinelão”. No tempo em que o PT se opunha realmente ao lado sombrio do capitalismo, o PT tinha orgulho de ser o chinelão. Não importa qual o sentido que se quis dar ao termo chinelão nessa eleição, esse termo também é usado pelas elites para se referir ao pobre, aos esquecidos, aos que não tem importância.
Não à toa, Melo facilmente usou o argumento a seu favor. Ao chamar Melo de chinelão, o PT se levantou da cadeira de representante do pobre, do esquecido, do sem importância e a ofertou a Melo, que aceitou o presente sem hesitar.
Saudades do tempo em que homens como Adão Pretto entravam no plenário da Assembleia Legislativa calçando terno e chinelos, para mandar o recado de que não se afastaria de sua origem e não esqueceria quem ele representava no parlamento. Toda vez que vi o PT chamando o adversário de chinelão, lembrei Adão Pretto a quem tive a honra de dar o meu voto quando foi Deputado Federal.
Não bastasse esse esfacelamento estético e estrutural do partido, cada vez menos se discute a cidade, o estado e o país e cada vez mais os mandatos conduzem as formulações para questões identitárias. O debate identitário – que é legítimo e fundamental, porque lida com
questões que são muito caras à quem se preocupa com um mundo realmente democrático e para todos e todas – não é suficiente para a disputa do Estado. Pior, sempre que mal feito, esse debate que é sobre inclusão e universalidade, acaba usado para excluir setores e atores que poderiam e deveriam ombrear lado a lado, a ponto de algumas situações parecerem gincanas onde a medida da virtuosidade está atrelada à quantidade de referências identitárias que o indivíduo pode agregar.
Não nos Estados Unidos, Trump se tornou presidente surfando com um projeto tacanho de país sobre a candidatura democrata que construiu sua base sobre questões identitárias e relegou a questão econômica e estrutural do país ao segundo plano. No Brasil, Bolsonaro que nem um projeto (confessável) tinha, derrotou a esquerda que foi às ruas com questões identitárias como principal instrumento.
Na eleição deste ano em Porto Alegre, se o PT sequer teve capacidade de apresentar alternativas na cabeça de chapa ao que hoje jogam na fogueira como “candidata errada”, a escolha da vice do PSOL na chapa petista focou muito na representação identitária, mas quase nenhuma importância deu à capacidade de ampliação da base dialógica ou de expansão da capacidade de votos, elementos que deveriam ser centrais numa chapa que quer mais disputar para ganhar do que demarcar uma posição.
O PT de Porto Alegre é conduzido hoje em atenção prioritária aos interesses de um punhado de mandatos e oligarquias, tapando o sol com a peneira, apontando o dedo de forma acusatória para a própria candidata e para a população da cidade, alimentando a esperança que essa desculpa superficial seja suficiente para que sigamos sem perceber o que acontece e torcendo para que Lula, como última grande contribuição histórica, seja capaz de tirar da própria costela uma liderança capaz de assumir o seu legado e sustentar o partido que, sem Lula, tende a encolher.
(*) Mirgon Kayser – Servidor Público Municipal, Suplente de Vereador e ex-Secretário de Organização do PT/POA