Se ouvem, nas redes principalmente, alguns resmungos sobre a natureza da luta contra o regime de trabalho 6×1. Alguns temem que, a exemplo do que aconteceu em 2013, desgaste o governo Lula para permitir o avanço da direita ou da extrema direita. Outros falam que é um abandono as lutas identitárias e um retorno a luta de classes.
Em relação a estas leituras é necessário um resgate histórico e uma análise fora da ideia de antagonismo entre luta de classes e lutas identitárias.
As manifestações recentes contra o regime de trabalho 6×1 trouxeram à tona um cenário bem diferente daquele que marcou os protestos de 2013. Embora ambos os movimentos compartilhem o uso massivo das redes sociais como ferramenta de mobilização, suas origens, objetivos e atores envolvidos demonstram diferenças cruciais.
Em 2013, os protestos começaram com uma convocação do Movimento Passe Livre (MPL), organização anarquista horizontal, que denunciava o aumento das tarifas de transporte público. A estrutura horizontal do movimento, sem lideranças centrais, tornou-o suscetível à apropriação por diversos grupos com agendas díspares. Inicialmente, a pauta era clara: barrar o reajuste das passagens. Contudo, o lema “não é apenas por 20 centavos” marcou a transformação das manifestações em um palco de múltiplas demandas e interesses.
Grupos de direita e extrema-direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL), monarquistas, defensores da intervenção militar e o Vem Pra Rua, passaram a disputar protagonismo. Até mesmo policiais, descontentes com a rejeição da PEC 300, aderiram ao movimento, enquanto slogans como “Não Vai Ter Copa” ganhavam espaço. A cobertura da grande mídia, especialmente da Rede Globo, também desempenhou um papel estratégico: ao apresentar as manifestações como contrárias à PEC 39, a emissora utilizou a insatisfação popular para pavimentar condições jurídicas para o golpe de 2016. A PEC, que delimitava o poder de polícia exclusivamente às forças de segurança, foi alvo de uma narrativa manipulada que desviava o foco dos reais objetivos dos protestos.
Apesar da participação de setores da esquerda, como PSOL e PSTU, a influência desses partidos foi insuficiente para direcionar o movimento, que acabou dominado por forças golpistas e conservadoras.
O cenário atual, centrado na luta contra o regime de trabalho 6×1, possui uma natureza completamente distinta. A reivindicação por melhores condições de trabalho e a redução da jornada está enraizada no contexto da luta de classes, o que a torna incompatível com a agenda dos atores dominantes nos protestos de 2013.
Uma característica marcante dessa mobilização é o protagonismo de uma política eleita, Deputada Erika Hilton, conhecida por sua militância nas lutas identitárias, que lidera os esforços pela aprovação da PEC que visa abolir o regime 6×1. Essa liderança comprova que as lutas identitárias e a luta de classes não são opostas ou incompatíveis, mas sim complementares. Enquanto questões identitárias abordam as desigualdades específicas vividas por grupos marginalizados, a luta de classes conecta essas questões a uma análise mais ampla das estruturas econômicas e sociais.
O regime 6×1, que exige seis dias consecutivos de trabalho para apenas um dia de folga, é amplamente criticado por precarizar as condições de trabalho, esgotar fisicamente os trabalhadores e comprometer sua saúde mental. A mobilização atual reflete a indignação de uma classe trabalhadora que busca melhores condições de vida, em oposição aos interesses neoliberais que dominam o debate público.
Diferentemente de 2013, onde o foco disperso permitiu a cooptação das pautas pela direita e pela extrema-direita, as manifestações contra o regime de trabalho 6×1 têm um objetivo claro e específico: a valorização do trabalhador. Essa luta, no entanto, evidencia o embate clássico entre capital e trabalho, sendo improvável que setores golpistas ou conservadores se posicionem ao lado dos manifestantes.
Além disso, o protagonismo de uma figura política oriunda das lutas identitárias reafirma a interseção entre classe, raça, gênero e outras formas de opressão. Essa articulação entre diferentes formas de luta fortalece o movimento e desafia narrativas que buscam dividir a esquerda em campos opostos.
As manifestações nas ruas no último de 15 de novembro e nas redes contra o regime 6×1 são um marco na luta por direitos trabalhistas no Brasil, destoando das jornadas de 2013, que, apesar de começarem com demandas legítimas, foram rapidamente apropriadas por agendas divergentes e até contrárias aos interesses populares. A luta atual destaca a necessidade de organização e de objetivos claros para evitar a repetição de erros do passado, reafirmando o protagonismo da classe trabalhadora e a importância da unidade entre lutas identitárias e de classe na busca por justiça e dignidade.
(*) Por Ronald Pinto é indígena Kaingáng e militante pelos Direitos dos Povos Indígenas