Os jornais brasileiros são mais pró-Israel do que a própria imprensa israelense. Seu apoio aos crimes de guerra contra a Palestina estimula mais atrocidades
O QUE A FOLHA PENSA: “Hamas terrorista”.
OPINIÃO DO ESTADÃO: “Terrorismo não tem outro nome”.
A OPINIÃO DO GLOBO: “Ataque terrorista afasta ainda mais chance de paz”.
Mas o que pensa o Haaretz, o maior e mais respeitado jornal de Israel?
HAARETZ: “Netanyahu é responsável por essa guerra entre Israel e Gaza”.
Huh! Que estranho…
A MÍDIA BRASILEIRA, AO QUE PARECE, É MAIS RADICAL em seu apoio ao governo de ultradireita de Israel do que até mesmo a imprensa israelense. E quando se trata de Israel e da Palestina, a opinião internacional é muito influente. Sem esse apoio, Israel seria forçado a reconsiderar seus planos de transformar Gaza em uma “ilha deserta” – como o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ameaçou no sábado – com o bombardeio contínuo de áreas civis que já matou centenas de pessoas, incluindo pelo menos 140 crianças e o massacre de famílias inteiras.
Atualmente, Israel cortou o acesso de 2 milhões de civis em Gaza a alimentos, água, luz e suprimentos médicos. Esses são atos graves de terrorismo e crimes de guerra, mas a crítica mais séria às atrocidades descaradas de Israel que você ouvirá de qualquer grande veículo da mídia corporativa será, como O Globo comentou em seu editorial, “uma lástima”.
“O terrorismo deve ser sempre rechaçado”, declarou o jornal. Exceto, pelo visto, quando o terrorista é o opressor colonial que tem todo o poder para acabar com sua ocupação ilegal e racista, mas se recusa a fazê-lo.
Temos visto, desde sábado, como a mídia brasileira repete incansavelmente a propaganda israelense e ignora as vozes ponderadas e as preocupações legítimas dos palestinos. E também como é surda às vozes razoáveis dentro do establishment israelense que vêm alertando há décadas – e com cada vez mais frequência e intensidade nos últimos meses – que as políticas belicosas do governo são a principal causa da insegurança em Israel. Ou seja: a maior ameaça é, na verdade, interna.
Seria difícil para a maioria dos brasileiros entender por que isso faz sentido, já que a imprensa por aqui também deixa de cobrir as injustiças diárias e horríveis, assim como os atos de terrorismo de estado cometidos por Israel. A câmera só grava quando os palestinos dizem “basta” e respondem aos ataques sangrentos e cotidianos.
“O desastre que se abateu sobre Israel”, escreve o Haaretz, “é de clara responsabilidade de uma pessoa: Benjamin Netanyahu”. O jornal continua, dizendo que Netanyahu “foi um completo fracasso na identificação dos perigos a que estava conscientemente conduzindo Israel ao estabelecer um governo de anexação e expropriação, ao nomear Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir“, dois extremistas que são colonos ilegais na Cisjordânia, “para cargos essenciais, e ao adotar, ao mesmo tempo, uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos”.
Ben-Gvir, o ministro da Segurança Nacional, é tão extremista que foi condenado em um tribunal israelense por apoiar o terrorismo e incitar o racismo contra os palestinos. Antes de entrar para o governo, ele protestou com cartazes que diziam “Fora árabes”, “Ou nós ou eles” e “Há uma solução: expulsar o inimigo árabe”.
O Haaretz cita as políticas de “limpeza étnica” do governo de Netanyahu, “uma expansão maciça de assentamentos [ilegais]” em terras palestinas roubadas, provocações na mesquita sagrada de Al-Aqsa em Jerusalém e “conversas abertas sobre uma ‘segunda Nakba’ em sua coalizão de governo”. Nakba, que significa “a catástrofe”, é o termo palestino para designar a onda de limpeza étnica, estupros, assassinatos e pilhagens perpetrada por grupos paramilitares terroristas israelenses em 1948, após a declaração do estado de Israel. Mais de 750 mil palestinos foram expulsos e 15 mil foram assassinados.
Na segunda-feira, o Haaretz publicou provas que demonstram perfeitamente que Netanyahu — e a maioria dos israelenses que o elegeu — não quer paz. Na realidade, ele fortalece o Hamas para justificar sua agressão beligerante como “antiterrorismo”. Em uma reunião privada em 2019, Netanyahu disse aos congressistas de seu partido, Likud, que “qualquer pessoa que queira impedir o estabelecimento de um estado palestino tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas. Isso faz parte da nossa estratégia”.
Esse extremismo da parte de Israel é a causa do surto de violência, não o “islamismo”, o antissemitismo ou o ódio irracional. Os israelenses minimamente razoáveis veem isso claramente. Porém, qualquer um que tenha a coragem de dizer o óbvio no Brasil será criticado como apologista do terrorismo, apoiador do Hamas ou antissemita.
Para a maioria da imprensa brasileira, que apaga todo o contexto em que se deu o ataque contra Israel, o único condenável é o Hamas, e as únicas vítimas que merecem ter sua humanidade totalmente reconhecida são os israelenses. Pois, como o comentarista Guga Chacra disse em um momento de honestidade chocante na GloboNews, “O que o Hamas fez é diferente. O Hamas matou pessoas”. Entendeu?
A pergunta que você deve fazer a si mesmo é: por que a imprensa brasileira opta por apoiar uma ocupação racista, violenta e colonial liderada por descendentes de europeus brancos com uma visão de mundo cada vez mais abertamente genocida? Não esqueça das palavras assustadoramente claras do ministro de Defesa Yoav Gallant na segunda-feira: “Estamos lutando contra animais humanos e agimos de acordo com isso”, disse ele. “Não haverá eletricidade, comida, combustível, tudo está fechado” em Gaza.
Opressão é pop, me parece. Deve ser por isso que, para os donos da grande mídia brasileira, ficar do lado de Israel não foi uma escolha muito difícil.
Recomendo que você leia abaixo o editorial completo, que traduzimos.
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Editorial do Haaretz: Netanyahu é responsável por essa guerra entre Israel e Gaza
O desastre que se abateu sobre Israel durante a celebração de Simchat Torá é claramente responsabilidade de uma pessoa: Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro, que se orgulha de sua vasta experiência política e de sua sabedoria insubstituível em matéria de segurança, foi um completo fracasso na identificação dos perigos a que estava conscientemente conduzindo Israel ao estabelecer um governo de anexação [de territórios] e expropriação, ao nomear Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir para cargos essenciais, e ao adotar, ao mesmo tempo, uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos.
Netanyahu certamente tentará fugir de sua responsabilidade e atribuir a culpa aos comandantes do Exército, da inteligência militar e do serviço de segurança Shin Bet. Como seus antecessores às vésperas da Guerra do Yom Kippur, eles enxergaram uma baixa probabilidade de guerra, e seus preparativos para um ataque do Hamas se mostraram falhos.
Eles desprezaram o inimigo e sua capacidade militar de ataque. Ao longo dos próximos dias e semanas, quando a extensão dos fracassos das forças de defesa e da inteligência de Israel vier à tona, certamente surgirá uma demanda justificada para substituí-las e fazer um balanço geral.
No entanto, o fracasso militar e de inteligência não isenta Netanyahu de sua responsabilidade pela crise de forma geral, uma vez que é ele, em última instância, o árbitro das questões de segurança e política externa de Israel. Netanyahu não é novato nesse papel, como era Ehud Olmert na Segunda Guerra do Líbano. Tampouco é ignorante em assuntos militares, como alegavam ser Golda Meir, em 1973 [quando estourou a Guerra do Yom Kippur], e Menachem Begin, em 1982 [ano em que Israel invadiu o Líbano pela primeira vez].
Netanyahu também moldou a política adotada pelo breve “governo da mudança” liderado por Naftali Bennett e Yair Lapid: um esforço multidimensional para subjugar o movimento nacional da Palestina em ambos os flancos, em Gaza e na Cisjordânia, a um custo que pareceria aceitável para o público israelense.
No passado, Netanyahu vendia a imagem de líder cauteloso que evitou guerras e inúmeras baixas do lado de Israel. Após sua vitória nas últimas eleições, ele substituiu essa cautela pela política de um “governo de plena direita”, e tomou abertamente medidas para anexar a Cisjordânia e realizar a limpeza étnica da Zona C definida em Oslo, incluindo as colinas de Hebron e o vale do Jordão.
Esse plano também incluía a expansão maciça dos assentamentos [ilegais] e a ampliação da presença judaica no Monte do Templo, perto da Mesquita de Al-Aqsa, além de alarde sobre um iminente acordo de paz com os sauditas em que os palestinos não receberiam nada, com conversas abertas sobre uma “segunda Nakba” em sua coalizão de governo. Como esperado, sinais de uma onda de hostilidades surgiram na Cisjordânia, onde os palestinos começaram a sentir a mão mais pesada da ocupação israelense. O Hamas aproveitou a oportunidade para lançar seu ataque surpresa no sábado.
Acima de tudo, o perigo que pairava sobre Israel nos últimos anos foi plenamente concretizado. Um ministro denunciado em três casos de corrupção não pode cuidar de assuntos de estado, pois o interesse nacional estará necessariamente subordinado ao objetivo de livrá-lo de uma possível condenação à pena de prisão.
Essa foi a razão para a constituição dessa terrível aliança e do golpe judicial levado adiante por Netanyahu, e para o enfraquecimento dos altos oficiais das forças armadas e do serviço de inteligência, que eram percebidos como adversários políticos. O preço foi pago pelas vítimas da invasão no Negev ocidental.
Este artigo foi originalmente publicado em hebraico e inglês pelo Haaretz.
Tradução: Deborah Leão
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