Regime negava discriminação no país e acusava militância de semear ódio, mostram documentos
Documento confidencial, 20 de setembro de 1978. O assunto no cabeçalho: “Núcleo Negro Socialista – Atividades de Carlos Alberto de Medeiros.” A tal organização, segundo agentes da ditadura militar, estava coordenando “movimentos black” —e Carlos seria um dos subversivos metidos nisso.
Nunca pertenci nem nunca ouvi falar desse núcleo”, diz ele, militante e estudioso da questão racial, hoje com 76 anos. “Nunca fui comunista também.”
À época, Medeiros militava em organizações que tratavam da questão racial e pipocavam pelo país, como o IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras). Também frequentava bailes de música soul nos subúrbios do Rio de Janeiro.
Naquele momento, só não sabia que era vigiado pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), o poderoso aparato de espionagem do regime militar, com tentáculos em toda parte. Não só ele, aliás: pessoas negras envolvidas em movimentos culturais e políticos.
Entre os monitorados, estão ativistas e intelectuais ligados a essa questão, como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, Joel Rufino, Milton Santos, Beatriz Nascimento e vários outros.
Esse trabalho do SNI deixou um extenso rastro documental. Nos últimos dois meses, a Folha realizou um mergulho no material produzido pela ditadura sobre o ativismo negro no país. E esses papéis mostram o que tanto preocupava o governo: o movimento negro, que ressurgia naquele período, representava uma afronta à ideologia racial do regime.
Os militares vendiam o Brasil como um paraíso das raças, onde brancos, negros e índios tinham dado origem a uma nacionalidade mestiça e pacífica —uma democracia racial, em resumo.
Sob esse olhar, o ativismo negro é tratado pelos militares como ele sim discriminatório. Não à toa, alguns dossiês do SNI recebem o título de “racismo negro”. Para os agentes da repressão, o movimento buscava semear o antagonismo racial, manchar a imagem do país no exterior —e, em última instância, seria uma ameaça à ordem social.
Em novembro de 1976, por exemplo, um relatório de quase cem páginas já apresentava uma lista extensa de organizações negras em vários estados. Grupos que recebiam nomes de institutos de pesquisa ou associações culturais, mas, na verdade, eram espaços de atuação política.
“Sabíamos que estávamos indo contra a ideologia racial da ditadura, por isso os nomes. O IPCN nunca pesquisou nada. Havia uma sociedade de intercâmbio que nunca fez intercâmbio nenhum. Éramos organizações ideológicas”, ri Carlos Medeiros.
No mesmo documento, a ditadura mostrava temer que os bailes de música negra no Sudeste —como aqueles que Medeiros frequentava— acabassem servindo de plataforma política para intelectuais do período ligados à causa.
Uma figura acompanhada de perto foi a historiadora Beatriz Nascimento, um dos principais nomes da intelectualidade negra do país.
Os agentes da ditadura achavam que ela estava estimulando a “luta racial” no Brasil e, como prova, citavam uma entrevista dela à revista Manchete. “Não foi apenas a necessidade de fugir que permitiu o estabelecimento da sociedade quilombola. Foi, sim, a capacidade de criar uma sociedade alternativa”, dizia Nascimento.
O texto há de ter feito ressoar uma paranoia recorrente entre os militares: a de que comunistas tentavam estimular os conflitos raciais.
“Vários são os dados”, escreve um agente do SNI, “mostrando que elementos de formação marxista estão, por intermédio da exploração do problema, incitando a luta de classes e fazendo apologia do regime socialista.”
Em uma fotografia de uma palestra de Lélia Gonzalez, o autor do retrato não deixou de apontar: havia um retrato de Che Guevara na parede.
“Naquela época, os militares achavam que as questões raciais podiam gerar uma adesão ao comunismo”, diz a socióloga Flávia Rios, professora da Universidade Federal Fluminense. “Mas a esmagadora maioria dos que fizeram o movimento negro não estão diretamente ligados ao comunismo nesse momento.”
É nesse contexto que a ditadura registra em detalhes o ato de 7 de julho de 1978, em São Paulo, que tornou público o Movimento Unificado contra a Discriminação Racial —mais tarde batizado apenas de MNU (Movimento Negro Unificado). E passa a acompanhar o movimento a partir dali.
Aquele era um período de florescimento das críticas à ideia de democracia racial, tanto na militância quanto na academia, vocalizadas na obra de intelectuais como Florestan Fernandes, que tinha defendido a tese “A Integração do Negro na Sociedade de Classes” em 1964.
Mas o Brasil era signatário de convenções internacionais contra a discriminação. E os militares, nesse contexto, tentavam exportar a imagem de um paraíso racial.
Talvez por isso o governo tenha seguido de perto os passos no exterior de intelectuais negros, como Abdias Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro, que partira para o exílio em 1968, com o AI-5.
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Em um prontuário, o SNI definia Abdias, àquela época já um decano da militância negra, como um “racista brasileiro” e alguém que procurava incentivar “antagonismos raciais”.
A cada vez que o intelectual denunciava no exterior o racismo brasileiro, não era incomum que virasse assunto relatos do Itamaraty. Como na participação dele no 2º Festival Mundial de Artes Negras, na Nigéria, em 1977.
O autor tentou apresentar o trabalho “Democracia Racial no Brasil – Mito ou Realidade?”, foi impedido, protestou e recebeu apoio das delegações de Cuba e dos Estados Unidos. Um representante americano chegou a ensaiar uma dura crítica ao Brasil.
Foi o suficiente para o autor do relato expressar outra preocupação dos militares: os negros americanos estavam por trás de uma campanha difamatória contra o Brasil.
A ideia de que o movimento negro estava importando ideias dos Estados Unidos é recorrente nos relatórios da ditadura sobre o assunto.
O autor da Informação 0361, de junho de 1977, por exemplo, se arrisca em uma análise da situação racial do país.
Além de acusar os brasileiros de “plagiar os blacks norte-americanos”, diz que seria imprudente “admitir um problema de raças no Brasil” e sugere que o que existe aqui é preconceito, não segregação —e que as notícias sobre o assunto serviam para estimular o “ódio racial”.
O relacionamento entre os ativistas brasileiros e da África também era alvo de preocupação dos militares, num contexto de movimentos de independência de ex-colônias africanas e de luta contra o apartheid na África do Sul.
“Eles tentam tratar isso como uma importação porque não nos reconhecem como sujeitos políticos”, diz Thula Pires, professora da PUC-Rio, que pesquisou a documentação do período sobre esse tema. “Como se a crítica ao racismo não pudesse ser feita a partir do Brasil, por quem estava submetido a essa situação.”
As reportagens na imprensa parecem causar profundo incômodo nos agentes do SNI. Também em 1977, um deles registrava que o Fantástico, da TV Globo, “estava estimulando o surgimento de uma dicotomia racial no Brasil”. Um outro diz que somos um país “essencialmente liberal e aberto à miscigenação”. A lista de reportagens é grande.
“O mito da democracia racial foi o grande ativo do Estado brasileiro no século 20. E boa parte da disputa do movimento negro foi contra isso”, afirma Pires, lamentando que, 60 anos depois do golpe, analisar o regime militar com a lente da questão racial ainda não seja tão comum.
“A Comissão Nacional da Verdade não tocou no assunto, apesar de ter havido disputa. Em algumas comissões estaduais, nós conseguimos. Mas essas leituras ainda não integram a grande narrativa sobre a ditadura no Brasil.”
A reportagem foi produzida em parceria com o Google. A Folha coletou milhares de documentos que estão agora organizados e disponíveis à consulta na ferramenta Pinpoint. Veja aqui todas as coleções.