A violência política foi uma das maiores ênfases do processo eleitoral que se encerrou neste domingo, promovida por candidatos e simpatizantes da direita e extrema-direita por racismo, machismo, homofobia e transfobia. As principais vítimas foram negros, negras, mulheres cis, trans e LGBTQI+. As agressões, o escracho, o patético e absurdos repercutiram nas ruas do país e nos meios de comunicação em seguidos momentos muito mais do que as propostas para a qualidade de vida das cidades.
Na véspera dos eleitores irem às urnas, a candidata pela Federação PSOL/Rede Sustentabilidade à Prefeitura de Porto Velho, Lili Rodrigues, interrompeu a rotina para ir à sua rede social para insistentes pedidos de socorro. No dia anterior ela fora acordada por um estuprador enquanto dormia na casa de sua companheira, profissional de enfermagem que abrira as portas para uma reunião de trabalho com colegas da saúde.
“Sofri a maior das violências que uma mulher pode viver na vida, somente por ser mulher, por conta de um monstro que acha que tem o poder de fazer o que quer só porque nós somos mulheres”, disse ela em rede social, em um ato corajoso por considerar a necessidade de justiça em nome de todas as mulheres. Abalada, depois da denúncia ela se recolheu, sem falar mais sobre o assunto. Ela é presidente do diretório estadual do PSOL em Rondônia. “Preciso me reconstruir”, avisou no vídeo.
Estupro corretivo – O homem foi identificado como auxiliar de enfermagem, 30 anos, e foi registrado como suspeito no boletim de ocorrência da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, às 4 horas da madrugada de sexta-feira, em denúncia feita pela própria Lili Rodrigues. Não foi preso, pois o Código Eleitoral (Lei 4.737/1965) determina que eleitores não podem ser presos nos cinco dias anteriores e 48 horas posteriores às eleições (com exceções). Lili Rodrigues passou por exames médicos e foi medicada, inclusive com coquetel preventivo ao HIV.
“Foi violência política, violência sexista e estupro corretivo, pois Lili é lésbica assumida”, afirma Carolina Zemuner, advogada, professora universitária de direito penal e presidente estadual da Rede Sustentabilidade. Segundo ela, o criminoso estaria na reunião com profissionais de saúde e teria drogado a companheira da vítima, que ficou inconsciente na sala após colegas irem embora. A advogada disse que ele é assessor de um dos candidatos vinculados a partidos de extrema-direita.
Terraplanistas – Em uma realidade amazônica em que o rio Madeira chega a atingir 20 metros de profundida e chegou a ser atravessado a pé em alguns trechos no mês passado, Carolina Zemuner ressalta que Rondônia vive uma crise climática tensa, mas o negacionismo e o terraplanismo são recorrentes. “Durante a campanha se falou sobre tudo, mas não se toca nas questões climáticas. Há, sim, vereadores defendendo o garimpo, dizendo que o problema dos rios amazônicos não é o mercúrio (contaminante usado na mineração para amalgamar o ouro), mas sim a queima das balsas”, se referindo às operações dos órgãos ambientais no combate aos garimpos.
“Campanhas como a de Lili são campanhas de resistência diária. Estamos aqui na luta por existir, na luta por não morrer”, relata Carolina Zemuner. “Existir é a nossa vitória diária”. Ela cita a importância de “ocupar espaços de poder por pessoas comprometidas com o meio ambiente e questões sociais” e relata que a chapa de Lili tem como candidato a prefeito Samuel Costa, filho de professores e oriundo da periferia, cita ainda a ativista ambiental Neidinha Suruí, candidata a vereadora pela Rede, e muitos ambientalistas nas vagas da Federação, preenchidas em 50% por mulheres.
Realidade provoca TSE – A grande frequência dos casos de violência política provocou a criação de um observatório permanente que vai receber denúncias e atuar como garantia de direitos, com coleta de dados sobre tipos de agressões, identificação de vítimas e locais de maior incidência. A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, avalia que a partir dessas informações a Justiça Eleitoral poderá atuar de forma efetiva para acabar com esse tipo de violência.
Mas diante o horror, vitórias são possíveis. Uma das comemoradas é a de Thabatta Pimenta, a primeira mulher trans eleita vereadora em Natal. Sua prioridade é tornar a capital do Rio Grande do Norte mais inclusiva para representar os familiares de pessoas com deficiência e pessoas atípicas, mulheres e pessoas trans. Entre seus objetivos está a luta anticapacitista, inclusão de pessoas com deficiência, diversidade e cidadania, juventude, cultura, esporte, lazer, saúde, educação, desenvolvimento local, transporte, mulheres e segurança.
Policial gay – Outra vitória das minorias a comemorar é de Fabrício Rosa, do PT, reeleito vereador de Goiânia, um policial LGBTQIA+. A tradicional petista orgânica de Goiás Mariana Sant’Anna, vereadora por Goiânia por três mandatos, abraçou tanto o projeto político dele que assumiu a sua chefia de gabinete na Câmara Municipal.
“Fabrício é filho de família periférica, cresceu entendendo as demandas dessas populações. É defensor raiz dos direitos humanos, é um dos fundadores do Movimento Policiais Antifascismo. Vai pra cima no pescoço dos governos, contesta dados sobre violência e mostra como a violência contamina os próprios policiais afetando a saúde mental”, relata Marina Sant’Anna. Ela conta que ele atuou na Polícia Militar de Goiás e na Polícia Rodoviária Federal.
Uma das lutas de destaque de Fabrício Rosa mencionada por Marina é pelo direito de uma menina de 13 anos abortar, grávida de estupro. Depois de ter sido autorizada pela Justiça em 1ª instância, ela foi impedida de realizar o procedimento por uma desembargadora do Tribunal de Justiça de Goiás, e foi preciso entrar com recurso no Supremo Tribunal de Justiça para reverter a decisão. O caso teve repercussão nacional em julho. Esse é um exemplo bom das pautas que ele assume”.
Desigualdade nos índices – Marina Sant’Anna comenta que as minorias têm aumentado sua participação nas eleições, mas os números ainda são ínfimos. Ela comenta o levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) que indicou que as mulheres representam 15% das candidaturas para as Prefeitura, embora sejam 52% da população. “São também 36% das candidaturas a vereadoras. Isso é irrisório frente a mais de 5 mil municípios do país. Vi um índice do IBGE de 2022 que mostra que são 6,6% de negros e negras nas Câmaras, em uma população em que negros e pardos chegam a 55%”.
Periferia garante Boulos – Em São Paulo, a campanha eleitoral foi tumultuada pelo escracho do candidato Pablo Marçal, que além de provocar José Luiz Datena a cometer a violência de lhe bater com uma cadeira em pleno debate eleitoral, ainda tentou atingir Guilherme Boulos com um laudo falso de que o candidato do PSOL usaria drogas. “O dono da clínica que assina o documento é apoiador dele, e o CRM (Conselho Regional de Medicina) é de um médico falecido há dois anos”, desmascarou Boulos.
Guilherme Boulos agora comemora uma vitória que não será somente dele: foi para o segundo turno com a maioria dos votos nas periferias da maior cidade da América do Sul, especialmente na extrema periferia Leste, onde estão as comunidades mais carentes de serviços públicos. “A enorme maioria do povo de São Paulo votou pela mudança. Agora, quero falar com quem não mora na periferia, para botar a mão na consciência”, avisou.