Não sei onde mora a aurora daqueles que um dia despertaram para a esperança. Só uma certeza eu tenho: No silêncio acelerado do tempo, nossos rios vão morrendo.
Nunca compreendi a atitude de certos funcionários públicos, que, utilizando-se de imagens de satélite argumentam que 40% ou 50% de Cerrado ainda estão preservados.
A imagem de satélite para essa finalidade mostra apenas o dossel da vegetação arbórea restante, não mostra a vegetação que constitui os estratos inferiores do Cerrado, incluindo a vegetação rasteira, constituída basicamente por gramíneas, com uma grande variedade de capins nativos e bambuzinhos, que na realidade exercem uma função ecológica vital para Cerrado, pois é o tipo de vegetação que retém as águas das chuvas, que lentamente vão abastecer os lençóis subterrâneos e formar os aquíferos – a insulina dos rios.
Fico a indagar: A quem interessa esse tipo de informação descalçada de uma visão sistêmica do Cerrado? Será que é utilizada para justificar mais ocupações intensivas ou reflete simplesmente falta de conhecimentos?
Não entendo também, ou talvez não queira entender, a visão obtusa de certos profissionais liberais, funcionários públicos ou freelancers, contratados para falarem que a vazão dos rios tenha diminuída em função de mudanças climáticas.
Ora, todos nós que estudamos o rol das ciências da evolução, incluindo estratigrafia, climatologia, sedimentologia, sabemos que mudanças climáticas não ocorrem bruscamente, demandam centenas, às vezes milhares de anos para um novo padrão se estabelecer.
O que pode acontecer é um período de estiagem mais prolongado, em decorrência de fatores naturais, tais como circulação marinha, que afeta a circulação atmosférica, resfriamento ou aquecimento das águas oceânicas, ação dos ventos solares, ou mesmo das correntes de convecção existentes no Manto da Terra. Porém, são fatores isolados e isoladamente não estabelecem padrões, a não ser que pendurem por um longuíssimo tempo.
Estudos de estratigrafia e sedimentologia, apoiados em diversas datações radiométricas, têm demonstrado que o padrão climático, com uma estação seca e outra chuvosa, tem operado nos chapadões centrais da América do Sul, área ocupada por Cerrado, desde pelo menos 45 milhões de anos.
Do final do Pleistoceno e inicio do Holoceno, quando populações humanas já ocupavam as grutas e cavernas existentes no Cerrado, a estratigrafia mostra de forma clara essa oscilação, sendo a estação chuvosa demonstrada por camadas claras e a estação seca explicitada por sedimentos escuros.
Esse padrão é tão evidente que não deixa dúvidas quanto a sua existência pretérita. Portanto, o discurso da diminuição da vazão dos rios, associado às mudanças climáticas, não passa de uma falácia.
Não é preciso ser especialista para enxergar a devastação irreversível causada nas áreas do Cerrado, pela ocupação desordenada. Basta acessar uma imagem de satélite da região, para constatar grandes quadrículas nos interflúvios, com monoculturas e grandes círculos desmarcados pela irrigação de pivôs. Os motores que fazem funcionar as máquinas da irrigação são tão possantes que são necessárias baterias de motores auxiliares para colocá-los em operação.
Quando esse complexo começa a funcionar, os rios sofrem impactos gigantescos, alguns param de correr totalmente, do ponto de captação para baixo. Se fossemos animais aquáticos o que faríamos? E, se fossemos população ribeirinha, vivendo da produção familiar, ou se vivêssemos em alguma cidade ou povoado abaixo destes sistemas, qual seria a nossa reação?
Com relação aos animais, a resposta é fácil, mas com relação aos humanos a resposta é difícil, pois o ser humano age muitas vezes por interesses individuais, às vezes tem conhecimento dos problemas, porém pode lhe faltar a consciência, elemento fundamental que o transforma em cidadão e o faz agir coletivamente, ou seja, em benefício da coletividade.
Muitos sentem medo de lutar contra os lobos – os donos do capital –, mal sabendo que estes já lhes tiraram quase tudo: os ideais, o bem-estar, os amigos, falta apenas lhes tirarem a alma, se é que isso já não tenha acontecido. Seria bom neste momento indagar: Em que aurora se escondem e como esperam o amanhecer?
Já escrevi centenas de artigos sobre o assunto, falando sobre as consequências da retirada da cobertura vegetal nativa para os aquíferos, para o futuro das águas, chamando a atenção para as consequências que virão em breve, se este modelo predatório de relação com o território continuar.
Quase nada teve ressonância. Um ou outro idealista ou grupo de idealistas empenham a bandeira da construção de um futuro melhor, mas diante de tanto poder só encontram ao final da luta uma espécie de cadáver no calabouço.
E o entusiasmo que os impulsiona, qual uma luz de candeia, vai se apagando pouco a pouco.
Nunca entendi a voracidade da ganância dos grandes empresários rurais, muitos dos quais nem conhecem a região. Mas suas ações aniquilam tudo. Não têm compromisso com o Estado nem com as futuras gerações.
Por isso, menos ainda entendo a ação dos políticos e de alguns advogados nacionais, que com unhas e dentes protegem esses exterminadores e provocadores de entropias ambientais e sociais. Serão cegos? Mal intencionados? Onde foi que escondeu a luz dos olhos deles?
Não tenho respostas.
Também não sei onde mora a aurora daqueles que um dia despertaram para a esperança. Só uma certeza eu tenho: no silêncio acelerado do tempo, nossos rios vão morrendo.
(*) Altair Sales Barbosa, Dr. Em Antropologia e Geociências – Smithsonian Institution de Washington-DC. (USA). Pesquisador do CNPq. Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Pesquisador Convidado da UniEVANGÉLICA de Anápolis Go. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.