Recentemente o Governo do Distrito Federal iniciou um projeto, o Viva W3, de abertura parcial da Avenida W3 Sul, na área tombada de Brasília, para atividades de lazer. A medida foi regulamentada pelo Decreto nº 40.877, de 9 de junho de 2020, que determina o “fechamento da via W3 Sul para veículos aos domingos e feriados”.
A Avenida W3 Sul hoje é um dos principais eixos de circulação veicular na cidade que liga os extremos e entremeios dos “bairros” Asa Sul e Asa Norte e, entre elas, a área mais central do Plano Piloto de Lucio Costa, onde se localizam os setores comerciais e de diversão. No passado ela foi ponto de encontro da população, experimentando declínio dessa vocação com o passar dos anos.
Quando evoco no título a expressão, que ao mesmo tempo é uma provocação, “morte e vida” faço em alusão proposital a duas referências de leitura que inspiram a pensar em cidades para as pessoas, desenhadas na escala humana. A primeira é de Jane Jacobs (1961, no original) intitulada Morte e Vida das Grandes Cidades onde a autora antecipa que “as ruas da cidade servem a vários fins além de comportar veículos”. A segunda é Vida e Morte das Rodovias Urbanas, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, na sigla em inglês). Seu objetivo é mostrar casos de cinco cidades diferentes que transformaram vias expressas em lugares de valorização da ambiência urbana e experiência humana.
Ao implicar o termo “abertura”, no primeiro parágrafo, me contraponho, e ao mesmo tempo faço um convite, à prática convencional de chamar esses casos de “fechamento”. Ainda inspirado nas publicações aludidas no parágrafo anterior e, principalmente, na abordagem de cidades para as pessoas fico me perguntando se a melhor mensagem seria “fechamento da via para veículos” ou “abertura da via para pessoas” a pé, de bicicleta, patins, skate, cadeiras de praia etc.
Não podemos esquecer de conectar os acontecimentos de abertura da W3 Sul e da pandemia Cvoid-19. Na minha mais recente visita, 21 de junho por volta de 12h, havia um número expressivo de pessoas em trechos da Avenida que não propriamente se aglomeravam, mas transitavam a pé e de bicicleta muito próximas umas das outras e frequentemente se deparavam com pessoas vindas na direção contrária. Sabe-se que os riscos de caminhar e pedalar nas cidades em proximidade com outras pessoas não podem ser menosprezados no que toca à transmissão do coronavírus.
Se por um lado o momento de implantação do Projeto pode parecer inadequado, uma vez que haveria riscos de saúde pública, ele pode ser beneficiado pela menor quantidade de veículos em circulação, o que gera, eventualmente, um menor número de pessoas incomodadas e potencialmente opositoras. Em todo caso, trata-se de um risco que deve ter sido calculado pelo atual governo, bem como de uma proposta ousada e fecunda.
Avaliações – Devem ser poucas as evidências e avaliações do Programa na W3 Sul, haja vista suas poucas duas semanas de implantação, quando foram promovidas três edições de abertura. Apesar disso é possível observar que de maneira geral há muitos aspectos que a W3 Sul factualmente não tem mostrado. Basta imaginar que deve ser muito diferente transitar por ela na velocidade de um carro e ônibus ou na velocidade dos pés.
São quatro os aspectos que gostaria de destacar na perspectiva de observador à velocidade dos pés: ambiência urbana, lugares potenciais, desenvolvimento econômico e revitalização progressiva.
Ao contrário do Eixão de Lazer, outra via que tradicionalmente é aberta para atividades de lazer no Distrito Federal, adjacente à W3 Sul se encontram residências e edificações comerciais e de serviços, daquelas que têm portas e vitrines que se abrem diretamente para as calçadas. A riqueza de formas, cores e texturas das fachadas sensibiliza e estimula o olhar e a imaginação. Além disso, por suas dimensões, a vegetação arborizada existente na Avenida promove maior sombreamento e amenidade. Ambas as características de diversidade, atratividade e conforto são determinantes para a ambiência urbana e, portanto, quanto melhor puderem ser percebidas mais ajudarão em qualquer tentativa de resgate da W3 Sul como lugar de encontro da população.
A ambiência urbana desfrutada em velocidade menos apressada revela a existência de lugares potenciais para desenvolvimento de atividades culturais de lazer e esporte.
As extensas áreas de estacionamento no canteiro central da Avenida, os becos de bancas de jornal e quiosques no lado comercial dela e as grandes praças de entrequadras em seu lado residencial são espaços convidativos à realização de feiras ao ar livre, apresentações artísticas, atividades assistidas de esporte e lazer e um sem número de manifestações espontâneas. Essa dotação de lugares “vazios” prontos para serem ocupados é um prato cheio para a atração de pessoas e dinamização da W3 como lugar simbólico e existencial.
A atração de pessoas e o desenvolvimento de novas atividades têm o potencial de influenciar positivamente no desenvolvimento econômico das atividades comerciais na localidade.
Tanto as lojas com fachadas voltadas para a W3 quanto aquelas menores votadas para a Via W2 Sul, imediatamente paralela, bem como as bancas e quiosques dos becos e das grandes praças, teriam suas atividades comerciais expostas a um público maior, que por sua vez demandará seus produtos e serviços. Se acontecer assim, o deflagrado processo de abandono das atividades comerciais na Avenida poderá ser lentamente revertido.
Como num círculo virtuoso, a ambiência urbana, a atração de pessoas e o desenvolvimento de novas atividades podem mover governo, setor privado e residentes para a Revitalização Progressiva das qualidades de infraestrutura da avenida e entorno imediato.
Tanto existe esse potencial que já existe a orientação de um projeto vencedor do Concurso de Revitalização da Via-W3, estão em marcha as obras de revitalização da infraestrutura e foi recentemente inaugurado em novo complexo criativo, num dos becos, por iniciativa do setor privado. Quanto maior for o número de iniciativas dessas naturezas, mais perto estará a retomada da Avenida como lugar dinâmico.
A quase inevitável valorização imobiliária, diga-se, não pode se deixar apropriar com finalidades especulativas, com risco de exclusão de residentes de menor renda e atividades comerciais de menor porte e mais tradicionais. Ai cabe ao governo construir com a população a aplicação de instrumentos urbanísticos, financeiros e tributários do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001.
São essas breves observações que me permitem sonhar, como arquiteto e urbanista que sou, com a W3 Sul renovada, convidativa e dinâmica à disposição para o desfrute da convivência e realização humana. Não é um desejo só meu.
Claudio Silva é doutor em Arquitetura e Urbanismo e filiado à Associação Andar a Pé