Hoje, estados e plataformas disputam o direito de nos governar. Mas só as plataformas estão à venda no mercado.
O conflito jurídico-político entre a plataforma X, comprada pelo bilionário-estrela Elon Musk, e o estado brasileiro, representado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, é a mais recente manifestação de uma nova ordem internacional em que grandes plataformas de tecnologia se tornam atores geopolíticos.
Estados se aliam a essas plataformas em uma corrida pela vanguarda tecnológica, sobretudo em inteligência artificial.
A principal estrutura dessa ordem geopolítica é a polarização entre EUA e China, cada um com suas respectivas plataformas – notadamente Google, Amazon, Meta, Apple e Microsoft de um lado; TikTok, Baidu, Alibaba, Tencent e Huawei de outro.
Basta observar como os EUA aprovaram, neste ano, uma lei banindo a plataforma chinesa TikTok em seu território por suspeitas de que ela pudesse permitir ao Partido Comunista Chinês o acesso a informações sensíveis de cidadãos americanos, ou intervir no debate político local favorecendo conteúdos antissistêmicos, como críticas às ações de Israel em Gaza.
Governo algorítmico
Enquanto, na ordem internacional moderna, o globo era dividido entre estados-nação soberanos sobre seus territórios e populações de maneira excludente, agora esses estados convivem com um novo tipo de entidade: as plataformas.
Diferentemente dos estados, que governam facultando determinadas ações e proibindo outras dentro de um território, as plataformas governam algoritmicamente. Ou seja, elas intervêm na probabilidade de que usuários, que ocupam um espaço que atravessa fronteiras, ajam de determinada maneira.
O que Musk fez, na verdade, foi transformar uma plataforma cuja força era servir como um indicador de tendências da esfera pública em uma arma geopolítica.
O mesmo corpo que é governado como cidadão pelo estado brasileiro é governado como usuário de mídia social pela Meta, como passageiro pela Uber, como hóspede pelo Airbnb, entre outros. Essa sobreposição de modos de governar diferentes permite tanto alianças quanto conflitos geopolíticos entre estados e plataformas.
Por isso, os apoiadores de Moraes e os de Musk erram ao tratar o problema como uma simples regulação de uma empresa privada pelo direito brasileiro, e não como um conflito entre entidades jurídico-políticas de diferentes gerações.
O que temos é um embate entre um estado emergente, que, sob Lula, evita o alinhamento automático com EUA ou China, e um empresário que, embora não controle nenhuma das plataformas de primeira importância no sistema dos EUA, possui um conjunto estratégico de empresas que vai do software à infraestrutura, e que ele mobiliza em intervenções geopolíticas que lhe renderam a alcunha de “míssil geopolítico governado”.
Musk afirma ter comprado o então Twitter, que ele próprio chamou de “praça pública”, para defender a liberdade de expressão. Como se a ideia de praça pública pudesse sobreviver ao fato de ser comprada.
O que ele fez, na verdade, foi transformar uma plataforma cuja força era servir como um indicador de tendências da esfera pública em uma arma geopolítica.
A governança algorítmica transforma os inúmeros conteúdos da plataforma em um repertório que Musk pode controlar, decidindo o que terá mais ou menos visibilidade. A liberdade de expressão deixa de ser uma questão de “sim ou não” e passa a ser uma questão de grau, conforme o poder se concentra nas mãos de Musk.
É como se os tuítes fossem notas de um piano: cada uma tem seu som, mas Musk pode compor sua própria música com elas.
Ativismo político ou negócios?
A relação entre os interesses econômicos de Musk e seu ativismo político recém-descoberto não é segredo.
Quando acusado por um usuário no próprio Twitter de apoiar um golpe na Bolívia para garantir o abastecimento de lítio para as baterias dos carros da Tesla, Musk respondeu: “Daremos golpe em quem quisermos”.
Em uma economia grande e rica em recursos como o Brasil, e dado um cenário político polarizado, é de se imaginar que Musk prefira que o “seu cara” esteja no poder, e não alguém que ele ameaça, também pelo X, de deixar sem avião presidencial.
Alexandre de Moraes, por sua vez, aparece como o veículo de uma reação de autopreservação de uma ordem jurídica ameaçada pela aceleração seletiva de forças sociais promovida pelas plataformas.
Essa reação encontra paralelo na lista de países considerados “antidemocráticos” que baniram o X, na busca por regulação das plataformas na Europa e no já mencionado banimento do TikTok nos EUA.
Curiosamente, esse paralelo é ignorado quando o Brasil e os EUA são contrastados como países em que uma suposta liberdade de expressão absoluta reinaria, e onde algo semelhante jamais aconteceria.
A reação defensiva de Moraes parece, no entanto, se traduzir em estratégias ineficazes e contraproducentes. Na lógica das plataformas, bloquear mensagens ou perfis não impede que conteúdos análogos de outras fontes sejam circulados em seu lugar.
Uma lógica jurídica de permissão e proibição é aplicada em um meio no qual o que conta, em última instância, é a intensidade de distribuição. Como consequência, o movimento golpista é reanimado em torno de narrativas de insurgência contra o autoritarismo e a censura.
No contexto da polarização, grande parte da esquerda apoia acriticamente as ações de Moraes, apesar da inadequação estratégica e de elementos juridicamente questionáveis e politicamente perigosos, como a tentativa de proibir o uso de VPNs no país.
O “X da questão”, que tem sido tema de inúmeros artigos de opinião, não é o de “Xandão” apenas aplicando a lei brasileira a uma empresa, nem o de X como plataforma de livre expressão democrática à qual os brasileiros teriam direito de acessar.
As duas questões cruciais que se cruzam nesse evento geopolítico são, por um lado, a negociação das relações entre estados e plataformas e, por outro, a questão democrática dentro das próprias plataformas: o tipo de relação política que elas mantêm com seus próprios “cidadãos”, os usuários.
Para discutir democracia no mundo das plataformas, devemos ser capazes de imaginar mídias sociais que não sejam controlados por interesses privados ou estatais.
É inegável que uma exuberante vida democrática se expressa em plataformas como o X. Não apenas opiniões políticas e informações, mas também redes de relações pessoais, produção e circulação de afetos, sensibilidades e senso de humor.
Além dos tuítes, os algoritmos pelos quais as plataformas distribuem conteúdos e as inteligências artificiais que elas alimentam são fruto dos dados que os usuários produzem em suas interações.
Tudo isso expressa a vida democrática do meio social sobre o qual a plataforma se sobrepõe. O problema é que, no modelo atual, essa vida democrática é apropriada e instrumentalizada pela plataforma.
Um dos objetivos explícitos de Musk ao adquirir o antigo Twitter é se posicionar na corrida pela inteligência artificial com a Grok, uma IA oferecida pelo próprio X. O diferencial da Grok, além de responder a perguntas consultando em tempo real o conjunto de todos os tuítes, é ser uma IA sarcástica, espirituosa – em suma, uma IA “meio tuiteira”.
O fato político relevante é que a cultura democrática que se expressava no Twitter, fermentada durante anos, foi comprada por um bilionário e transformada em uma entidade pós-humana para ser vendida a assinantes premium, potencialmente garantindo a Musk um papel de destaque na geopolítica da IA.
Se quisermos discutir a democracia no mundo das plataformas, devemos ser capazes de imaginar ecossistemas de mídias sociais que não sejam inteiramente controlados por interesses privados ou estatais, mas que incluam uma dimensão comum, no mesmo sentido em que a vida democrática e a inteligência são algo que compartilhamos.