O STF autorizou pedido do PGR para investigar atos antidemocráticos ocorridos no último final de semana, repudiados por vários órgãos e por personalidades históricas das lutas pelas liberdades individuais e coletivas. Faixas e cartazes, além de palavras de ordem gritadas nessas manifestações agora sob investigação, pediam “intervenção militar” e o retorno do AI-5, instrumento normativo autoritário do regime de exceção. Vozes isoladas sustentaram que esses grupos exerceram o direito constitucional da liberdade de expressão. Essa hipótese não tem base constitucional. O revisionismo por trás dessas ideias, tentando apagar a vilania e indignidade do período de exceção que Chico Buarque lembra ter sido “página infeliz da nossa História”, não é prática democrática; muito ao contrário, representa tentativa de sua violação e negação. Não se trata de conflito de opiniões sobre a extensão da liberdade de expressão, mas de estrita observância ao ordenamento jurídico.
Válido lembrar que a Lei nº 12.528/2011 criou a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, em 05.10.1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e para a reconciliação nacional, promovendo com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos (arts. 1º e 3º, VII). O relatório final dessa Comissão concluiu “que a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres por agentes do Estado durante a ditadura militar caracterizou o cometimento de crimes contra a humanidade”.
Não existe hipótese, portanto, até mesmo do ponto de vista estritamente positivista, de negar que o regime de exceção efetivamente se caracterizou como antidemocrático e violador dos direitos humanos. Assim, a apologia a essas práticas e o pleito pela implantação de novo regime ditatorial não pode ser considerado como manifestação do direito constitucional à liberdade de expressão. Foi o que fez registrar o Ministro do STF Alexandre de Moraes, na decisão que, acolhendo pedido do MPF, determinou a investigação desse uso ilegítimo das práticas democráticas. Afirmou o Ministro que a “Constituição Federal não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), nem tampouco a realização de manifestações visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – voto direto, secreto, universal e periódico; separação de poderes e direitos e garantias fundamentais (CF, artigo 60, parágrafo 4º) –, com a consequente instalação do arbítrio”. E prosseguiu, sustentando que “são inconstitucionais, e não se confundem com a liberdade de expressão, as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático”, sendo também ofensivas aos “princípios constitucionais aquelas que pretendam destruí-lo, juntamente com instituições republicanas, pregando a violência, o arbítrio, o desrespeito aos direitos fundamentais”, pleiteando a tirania.
Essas manifestações trazem, nestes tempos de pandemia, um gravame a mais: o negacionismo terraplanista das medidas ditadas pela ciência em um momento que essa é a única baliza racional ante tantas perplexidades, com grande prejuízo à solução não farmacológica do distanciamento social como resposta à disseminação do vírus, cuja observação segundo as indicações da OMS, foi ditada pelas normas sanitárias previstas nos Decretos estaduais, de obrigatoriedade reconhecida pelo STF.
Não há solução fora da democracia e não se tem democracia quando os valores e os direitos humanos são desrespeitados. A obrigação do poder público é garantir a democracia, a vida e a saúde do cidadão, protegendo-o epidemiológica e assistencialmente, para que não se tenha a proteção insuficiente dos direitos fundamentais. As instituições democráticas estão atentas e vigilantes. Ditadura nunca mais!
Márcio Thadeu Silva Marques é Promotor de Justiça em São Luís (MA)