Projeto arquitetônico do futuro Centro Cultural Rio-África, na “Pequena África”, planeja fachada monumental inspirada em estrutura afro-islâmica como ponte entre passado e presente
Oarquiteto paulistano Marcus Vinicius Damon, de 39 anos, estava sozinho em seu apartamento em São Paulo em meados de setembro quando, no corredor que dá para seu escritório, veio, como que em uma epifania, uma ideia fundamental para o projeto arquitetônico no qual estava trabalhando há mais de um mês. Sem deixar escapar a ideia, Damon começou a desenhar e colorir o esboço, com caneta e toda sorte de lápis. “Mandei mensagens para minha equipe com fotos dos croquis. Alguns dias depois, sentamos juntos para estruturar melhor a ideia”, relembra ele, que é um dos sócios-fundadores do estúdio Módulo.
Tratava-se de uma proposta para o Centro Cultural Rio-África, a ser inscrita em um concurso público internacional, organizado pela seção carioca do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e promovido pela Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos – CCPar, vinculada à Prefeitura do Rio de Janeiro. De forma inédita, o certame tinha caráter de política afirmativa, devendo os responsáveis pela proposta serem pardos ou pretos, residentes no Brasil ou em países africanos de língua portuguesa. Esse critério não se estendia à composição das equipes, que podiam conter pessoas de diferentes etnias. A equipe de Damon é mista, tem seis pessoas negras, incluindo ele, e seis pessoas brancas.
No dia 21 de outubro, foi feito o anúncio do concurso arquitetônico do Centro Cultural Rio-África, por meio de uma live. A proposta liderada por Damon levou o primeiro lugar. Representada pela arquiteta negra Vilma Patrícia, a comissão julgadora destacou pontos que chamaram a atenção do projeto, como a harmonia entre planos superiores e inferiores, “conferindo equilíbrio ao desenho dos volumes verticais e horizontais” e a presença de uma escadaria que se debruça para a praça do piso inferior, que faz alusão ao Cais do Valongo e se impõe como “uma arena de contemplação”.
A praça a que Patrícia fez menção era a solução epifânica a qual Damon chegou no corredor de seu apartamento. De fato, sua “praça-arena” chama atenção. Por ocasião da realização de um espetáculo na área externa, as escadarias de acesso podem ser convertidas em arquibancadas. Pessoas com restrição de mobilidade terão seu acesso garantido por meio de um elevador público.
O Centro Cultural Rio-África, com previsão de lançamento para 2027, será instalado em um terreno onde funcionava a maternidade Pro Matre, na esquina da Avenida Venezuela com a Rua Barão de Tefé, no bairro da Saúde. Lá, vieram ao mundo personalidades da política e cultura brasileira, como o psdbista Fernando Henrique Cardoso, em 1931, e o cantor Erasmo Carlos, dez anos depois.
O novo equipamento fica nas imediações da “Pequena África”, área na região portuária do Rio, cujo nome foi cunhado pelo pintor negro e compositor Heitor dos Prazeres (1898-1966). A definição de Prazeres se mostrou elástica ao longo do tempo. Para alguns, ela vai até o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), à beira-mar. Para outros, estende-se até o Cais do Valongo, que tem uma de suas faces na Avenida Venezuela, no Centro. O Valongo está a dois minutos de caminhada do futuro equipamento cultural.
Damon conta que uma de suas inspirações para pensar a praça que impressionou os jurados veio do Norte do continente africano, “na tradição das casas escavadas em Matmata, na Tunísia, onde a integração com o ambiente natural é essencial”. Outra referência é o próprio Cais do Valongo. Entre 1811 e 1831, esse era um lugar-chave para o regime escravocrata brasileiro, que servia ao desembarque de pessoas escravizadas. Estima-se que o número tenha chegado a 1 milhão de homens e mulheres africanas.
Com a abolição do tráfico negreiro, o passado do Valongo foi literalmente soterrado, por sucessivas obras de aterramento, e o lugar até mudou de nome. Essa onda de esquecimento só foi rompida em 2011, devido a obras viárias do projeto municipal de infraestrutura urbana Porto Maravilha. Obras de drenagem do solo revelaram um sítio arqueológico, onde se encontraram ossos humanos e uma série de objetos das levas e levas de pessoas africanas sequestradas, como uma caixinha de joias, búzios, colares e pulseiras. O Cais “escavado” do Valongo é hoje monumento aberto à visitação pública e foi tombado em 2017 pela Unesco, que concedeu ao lugar o título de Patrimônio Histórico da Humanidade.
Uma das premissas do projeto arquitetônico de Damon é o que ele considera como sinônimo do estilo de vida carioca: “O desenho que a gente fez para a praça foi muito pensando em o Rio ser esse lugar de encontro, de festa, onde a oralidade é muito importante”, diz o arquiteto. Outra diretriz base é o conceito de miscigenação que, para ele, é a síntese do Brasil contemporâneo. “Por mais que a gente queira resgatar alguns pontos com mais força, não podemos rejeitar que nossa cultura é mestiça. Nossa leitura parte da diversidade das Áfricas existentes e está em diálogos com as possíveis arquiteturas modernas do Brasil. A gente está assumindo essa mestiçagem de forma sincera. O que também é inevitável”, complementa.
A fachada pensada para o novo espaço cultural é um ótimo exemplar para compreensão dessa questão. Ela se conforma em uma espécie de pele, formada por tijolos de barro dispostos com ângulos distintos. “Diferentes tramas, encontradas no continente africano, se transformam no elemento arquitetônico que a gente chama de ‘Muxarabi’, visto no Norte da África e que também envolve a cultura islâmica. Isso vai chegar na Europa, através dos mouros, com a ocupação da Península Ibérica. O que leva essa proteção das fachadas para a arquitetura portuguesa. No Brasil, do século XX, esse elemento vira o que a gente chama de cobogó, que são aqueles elementos vazados, de concreto ou cerâmica”, explica Damon. “Então, essa história de proteger a fachada é uma definição antiga, na qual eles resolviam a questão da privacidade e da incidência do sol. Essa nossa pele faz homenagem a tudo isso”, continua.
Quando perguntado sobre se os para-sóis da fachada do Copan seriam uma inspiração, o arquiteto pontua: “Não é uma referência direta, mas a intenção é a mesma. O brise do Copan unifica a fachada de alguma maneira, o que também vai acontecer com essa ‘pele’ que propusemos.” A trama de tijolos também pode ser vista internamente no prédio, como uma das faces dos espaços expositivos. Contudo, o espaçamento entre as estruturas de barro é menor, pensando no prejuízo do sol à conservação das obras de arte apresentadas.
Oterreno da antiga maternidade Pro Matre tem 2.800 m2. Como o projeto arquitetônico de Damon vai contar com dois prédios, cada um com três pisos, a área do Centro Cultural vai mais que duplicar e totalizará 6.810 m2. A união entre as duas estruturas se dará por meio uma cobertura de madeira, cujo desenho busca reinterpretar um padrão de tecido congolês, chamado “Kuba Shoowa”. No último piso funcionará um terraço com vista para os arredores. “A gente tem esperança de que dê para ver uma frestinha da Baía de Guanabara”, torce o arquiteto paulistano. O projeto prevê a conservação das árvores que já estão por lá. Também haverá o plantio de espécies nativas, como o jacarandá, e africanas, a exemplo de agapanto, moreia e capim-do-texas. A tão difundida espada de São Jorge também terá seu cantinho.
Internamente os ambientes estarão divididos em seis salas expositivas, com metragem entre 292 e 476 m2; um setor de acervo, na qual haverá uma reserva técnica; auditório; ateliês, restaurante; café e uma loja com itens do Centro Cultural. A programação de exposições permanentes está sendo desenvolvida, mas a ideia é que exista uma mostra dos achados arqueológicos do Cais do Valongo, uma exposição denominada O Porto, o Mar e a Cidade, que investigará as relações sociais na capital carioca a partir da perspectiva da região portuária, e outra voltada à multiplicidade de identidades culturais afrodescendentes naquela região, intitulada Gente, Cultura e Trabalho.
O acervo do novo espaço ainda será responsável por salvaguardar os registros de nascimentos, oriundos da antiga maternidade Pro Matre.
O estúdio Módulo, do qual Damon é sócio-fundador, foi vencedor do concurso para proposição de mobiliário urbano na cidade de São Paulo, realizado no ano de 2016. Ao todo, foram desenhadas nove soluções para o espaço público. Dentre elas, a única proposta implantada até agora e que chama atenção foram os bancos em metal e madeira, vistos no centro histórico, nos arredores do centro cultural Farol Santander e na Rua Sete de Abril. Eles são responsáveis por acolher transeuntes em momentos de intervalo e contemplação, algo tão raro na capital paulista, que é extremamente funcional.
Na nova empreitada no Rio, essa experiência de alguma forma também reverbera. Primeiro, nos materiais. O combo concreto-madeira, por exemplo, vai se repetir. A estrutura dos prédios do Centro Cultural Rio-África vai combinar madeira nos andares superiores e concreto nos pavimentos. O desejo pela contemplação igualmente está presente. Tanto na instalação de grandes bancos colocados entre espaços expositivos – e que servem também à pausa e reflexão do que foi absorvido em exposições –, quanto na presença de espelhos d’água na área externa, que se ligam a outra fonte de referência do arquiteto no projeto: o Egito. “Nos Jardins de Amenhotep III, a presença de lagos artificiais não só embelezavam a paisagem, mas também serviam como um sistema de irrigação”, detalham ele e sua equipe no projeto.
Há na capital carioca outros equipamentos culturais que se dedicam a investigar a cultura africana e afrodescendente, como o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab). Segundo Yago Feitosa, coordenador de Promoção da Igualdade Racial da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro, o diferencial do novo ambiente será abarcar “um maior número possível de linguagens artísticas, como artes visuais, cinema, música e teatro”. Ele representa a municipalidade no Comitê Gestor do Sítio Arqueológico Cais do Valongo, instância obrigatória para a conferência do título de Patrimônio Histórico da Humanidade ao lugar.
As premiações do concurso arquitetônico do Centro Cultural Rio-África – no valor de 105 mil reais, ao todo, para o primeiro, segundo e terceiro lugar – e aquisição dos direitos autorais do projeto vencedor – na ordem de 3 milhões de reais – virão da prefeitura, assim como a responsabilidade de execução do projeto.
O projeto será construído em um terreno que pertence à Cury Construtora, mas que foi cedido à prefeitura como contrapartida pelo volume de empreendimentos imobiliários que ela desenvolve na região – um deles é o Residencial Porto Maravilha, de 499 unidades, numa área do bairro de São Cristóvão próxima do Santo Cristo, na Zona Portuária. “Os custos que a Cury teria com essas contrapartidas, que poderiam ser destinados a áreas como educação e cultura, foram direcionados para o investimento no Centro Cultural, beneficiando diretamente a região com bens públicos. A gestão do projeto será conduzida pelo poder público, que terá total responsabilidade pela execução”, informou a prefeitura em nota.
Em julho deste ano, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro recomendou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e à prefeitura do Rio de Janeiro a suspensão de um projeto imobiliário da Cury, com dois edifícios de trinta andares em um terreno próximo ao Cais do Valongo. A obra foi suspensa sob o argumento de que poderia impactar negativamente a integridade paisagística e histórica do local. À época, a Cury informou que a iniciativa ainda estava no âmbito dos “estudos arqueológicos” e que aquele terreno não pertencia à empresa.
A ocupação da área portuária e central do Rio de Janeiro é objeto de sucessivos projetos municipais, a exemplo do “Porto Maravilha”, lançado em 2013, e do Reviver Centro, de 2021. Este último sofreu alterações no ano passado, com o intuito de ampliar os incentivos e concessões ao setor imobiliário. Recentemente, o prefeito Eduardo Paes disse ao jornal O Globo que “o mercado acenou que precisa de mais incentivos para investir no Centro e não só priorizar outras áreas da cidade”.
Nesse cenário, a construção do Centro Cultural Rio-África parece estar envolvida em uma encruzilhada. Ao mesmo tempo que o novo equipamento é uma reivindicação das comunidades e populações afrodescendentes, também vai servir à valorização da região e, como possível consequência, estimular a especulação imobiliária e a evasão do público sugerido como principal alvo da iniciativa. A historiadora Wania Sant’Anna vê a questão de outra forma. “Se é verdade que o crescimento imobiliário é visível, eu me pergunto sobre o quanto a juventude negra pode e deve aproveitar e desfrutar desse equipamento cultural. Me preocupo sobre como a direção e a curadoria das iniciativas artísticas serão verdadeiramente inclusivas e como irão de fato dialogar com a comunidade do entorno. Ou seja, estamos apenas no início das reivindicações. Colocar o Rio-África de pé e abrir suas portas é parte do processo.”
(*) Tatiane de Assis é repórter da piauí, é crítica de artes visuais com especialização pela Unicamp.