O presidente Lula quando das enchentes no Rio Grande do Sul se mostrou perplexo pelo número de negros encontrados. Estava na cidade de colonização alemã São Leopoldo.
Para quem vive nosso cotidiano rio-grandense não tem como ficar admirado, porque o Rio Grande do Sul sempre teve um grande contingente de negros, desde sua formação.
Por isso, já escrevi e sustento que Porto Alegre, a capital, é mais negra que açoriana, apesar do mito fundante ser da vinda dos 60 casais açorianos nos primórdios do seu nascimento.
Desde os primeiros aventureiros paulistas que para cá vieram fazer riquezas, prear gado, vinham com negros escravizados e até indígenas.
Um caso raro, talvez, é terem usado os indígenas por eles dominados para lutar contra seus irmãos indígenas daqui. Uma verdadeira “barbaridade” como se diz pelo Sul.
Num censo de 1814, Porto Alegre tinha 47% de sua população adulta negra. Registros de somem ou são apagados.
Quilombos no estado
Segundo os dados do governo federal, o Rio Grande do Sul tem130 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Espalhadas por 58 municípios (de um universo de 497). No entanto, apenas quatro comunidades possuem a titulação das terras.
O Censo de 2022 do IBGE apontou que o Rio Grande do Sul tem 14.496 quilombolas, o que corresponde a 0,16% de sua população. O Estado é o 13° com maior população de quilombola absoluta.
Na capital
Oito quilombos já foram reconhecidos pela Fundação Palmares, e os demais estão com o processo em curso.
A administração local reconheceu quatro deles.
O Quilombo da Família Silva foi o primeiro do Brasil a ter suas terras regularizadas.
Memórias
Os maus tratos aos negros, escravizados ou não, em Porto Alegre foram sempre muito cruéis.
Temos casos de açoitamentos no Pelourinho que ao contarmos nos dias atuais soam inacreditáveis.
Temos os negros que foram levados ao Largo da Forca, muitos deles inocentes, e mesmo assim enforcados.
Muitos deles fugiam para os arrabaldes, tanto que temos os Campos da Redenção, hoje o principal parque público, oficialmente chamado de Farroupilha, mas que todos nós aqui chamamos de Redenção.
Havia também a Colônia Africana, onde hoje está o Bairro Rio Branco, de onde os negros foram expulsos pela força da exploração imobiliária que sempre foi desenfreada em Porto Alegre.
Como os negros foram sendo enxotados da sua Colônia Africana, um grande gueto negro da capital, o mesmo aconteceu com os negros da Ilhota, do Areal da Baronesa levados à força para os confins da cidade, mais de 30 quilômetros do centro, o Bairro Restinga, tanto que este criou sua fisionomia e cultura com largos traços do povo negro.
Esquecimentos e apagamentos
Censos são esquecidos ou desdenhados. São esquecidos os homens que fizeram antigas edificações e que se tornaram patrimônio histórico e cultural.
Em Porto Alegre, a cúpula da Igreja católica mandou demolir a antiga Igreja do Rosário sem qualquer razão para fazer desaparecer aquela que fora uma verdadeira obra de arte, fruta da luta da comunidade negra, para em seu lugar levantar uma nova com péssimo gosto estético.
Poucas eram as ruas com nomes de negros. Em todo o Centro Histórico só há uma rua com nome de negro: José do Patrocínio.
Estudando as denominações de ruas, vamos verificar que os/as negros/as começam a aparecer em nomes de ruas e ruelas na periferia a partir das lideranças locais que queriam ver nomes de suas gentes.
Não se fala que Luciana de Abreu, professora, poeta e lutadora feminista do século XIX fosse negra. Mas era.
O enforcamento do inocente escravo Josino foi sendo esquecido, mas pude resgatar a sua história e de outros em crônica muita antiga. O mesmo foi o caso da escrava Páscoa raptada por um ricaço da cidade.
Avaliação da situação do negro no Rio Grande do Sul
Entrevistei o jornalista e ativista da luta antirracial Emílio Chagas que me disse o que segue:
Pergunta: como você vê a evolução da luta antirracial no RS da década de 70, época da Tição, até hoje?
Emílio Chagas – Quando surgimos, em 1978, a Abolição da Escravatura ainda não tinha completado nem 100 anos ainda; a imprensa negra era praticamente inexistente, com referências dos anos 30 ou 40, com jornais voltados para temáticas clubísticas ou associativas. A Tição surge no bojo da luta contra a ditadura, como um produto da imprensa alternativa, também chamada de “nanica”. E trazia como o grande objetivo a conscientização das camadas negras da sua raça e etnia. Então, eram duas frentes: a questão racial e a luta política. A receptividade foi enorme, o que era para ser uma publicação acabou se tornando um movimento. A revista surge antes do próprio Movimento Negro Unificado e 10 anos da criação da Fundação Palmares. Não existia rigorosamente nenhuma política pública governamental para a questão negra, nem municipal, nem estadual e muito menos federal. O racismo estava instituído em todas as suas formas e frentes, mas a que mais nos impulsionaram para a luta foram as questões da discriminação racial e a violência policial. Além delas, ou talvez, decorrência delas, a exclusão social em todos os níveis, no ensino e no mercado de trabalho, principalmente. O negro era duplamente segregado, racial e socialmente. Na dita sociedade o racismo era velado e praticamente oficializado. Eram tempos em que se dizia que o negro “sabia o seu lugar” – ou seja, subalterno e nas camadas inferiores. O que mudou, os poucos avanços em relação aos dias de hoje, foi fruto da luta e da pressão social conquistada pelo movimento negro. É visível o avanço na questão da educação com a questão da política de cotas, que garantiu mais espaço aos negros e pardos nas universidades, a introdução do Prouni, etc – embora ainda falte muito. Outro evolutivo se aloja dentro da própria comunidade negra, com seu autorreconhecimento como tal, exercendo o seu orgulho racial e estético. Existem outros avanços, sem dúvida, mas a questão do racismo estrutural ainda permanece – e aflorado pelo crescimento da extrema-direita nos últimos anos. Nesse sentido a questão da violência se tornou ainda mais agudo, assim como perseguição policial, a discriminação mais visível e as camadas negras ainda mais periféricas, fruto da brutal desigualdade social do país. A diferença é que os negros hoje estão mais organizados e oferecem mais resistência.
Pergunta: E o registro oficial de quilombos, o que achas?
Emílio Chagas: A luta quilombola é outro grande avanço, embora enfrente as grandes dificuldades típicas da questão da terra. Uma luta que remete diretamente à questão histórica dos direitos e da própria identidade negra. Ganhou força a partir da Constituição de 1988, mas ainda são grandes as suas dificuldades como o baixo número de quilombos titulados, a resistência e ataques do agronegócio, da especulação imobiliária e do próprio poder público, como se viu no governo Bolsonaro, a falta de infraestrutura nos quilombos e de acessos às políticas públicas existentes, como emprego e renda.
Nosso 20 de novembro
Para nós do Rio Grande do Sul festejar pela primeira vez o 20 de novembro como feriado nacional tem um gosto especial.
Pois foi aqui que surgiu a ideia do 20 de novembro ser a data icônica do combate ao racismo, pois é da data de Zumbi dos Palmares.
Já tínhamos aqui o Largo Zumbi dos Palmares, um espaço público quase no Centro da capital, onde há feiras e outros eventos.
É que a ideia aqui vem de Oliveira Silveira, poeta e professor já falecido. Ele e seu grupo lutaram muito por esta data.
Com ele, Emilio Chagas, nosso entrevistado, Jeanice Dias Ramos, entre outros surgiu também a Revista Tição que, antes da criação do Movimento Negro Unificado – MNU, ela travava duro combate em defesa do povo negro. Neste momento, está revista está sendo retomada.
E no mês da consciência negra, em Porto Alegre é lançado o livro “LUA – um griô de Porto Alegre”, no qual a autora Letícia Núñez Almeida, celebra uma das figuras mais emblemáticas da luta contra o racismo em nosso Estado e também no país.
Museu do percurso do negro
Há mais de uma década Porto Alegre tem o seu museu ao ar livre do percurso do negro. Até o momento são algumas obras em locais públicos, passando pelo Bará do Mercado, homenagem a este orixá, bem no centro do Mercado Público da cidade, o Painel Afro-brasileiro no muro do Chalé da Praça XV, a Pegada Africana em plena Praça da Alfândega e o Tambor, na Praça Brigadeiro Sampaio, onde fora no passado o Largo da Forca.
Parque Harmonia
O Parque da Harmonia que foi concedido à iniciativa privada e que gerou muitas polêmicas tem o Piquete Pelo Escuro em homenagem ao já citado poeta rio-grandense Oliveira Silveira, até porque ele foi um dos poucos negros que se vinculou a tradição local das cavalgadas, dos CTGs, da cultura da pampa gaúcha.
E neste 20 de novembro, várias atividades culturais serão realizadas na cidade, como no Largo Zumbi dos Palmares, aonde já vinham sendo realizadas atividades na Semana que antecede esta data, na Câmara Municipal e, neste 2024, atividades da Prefeitura, organizações diversas, com atividades neste local.
Uma cavalgada por percursos dos negros será realizada, como do Viaduto Abdias do Nascimento, outro lutador da causa, muito conhecido, terminando neste Parque com uma churrascada coletiva.
Haverá rodas de capoeira e outros espetáculos, bem como Um dia no Harmonia promete acarajé, comidas típicas, feira de artesanato e venda de livros, concentrados no povo negro, em especial, com várias rodas de conversas.
(*) Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito.