UM PEDIDO DE IMPEACHMENT PARA SER DERROTADO
A febril cobertura que os “Diários Associados” de Chateaubriand davam à mobilização conservadora contra Getúlio não impedia que ele mantivesse nas página de opinião desses jornais uma curiosa e até simpática pluralidade de pontos de vista.
O alto da página 3 de O Jornal, que se apresentava em seu cabeçalho como “Órgão leader dos Diários Associados” (com essa ortografia então aceita), era ocupado por três colunistas paginados lado a lado: num dos lados um colunista de extrema-direita feroz, Nertan Macedo, sabidamente integralista; no outro lado, um grande amigo de Jango, futuro deputado e líder do PTB e depois Vice-Presidente do PDT de Brizola, Doutel de Andrade, que publicava notícias, não comentários, sem disfarçar suas posições; no centro, finalmente , Murilo Marroquim, que procurava manter o perfil de observador arguto e isento.
Num desses primeiros dias de maio, Marroquim revelou um novo impulso dos grupos conservadores:
– Aberta a luta: livre iniciativa versus intervencionismo. Confirmada a tese do Vice-Presidente da República. As classes conservadoras paulistas contra Vargas. A reação dos círculos centristas do país demonstra … que Vargas retomou sua posição de liderança política, colocando-se francamente com os trabalhadores para as eleições em perspectiva. Até o momento, nada autoriza a imaginar que o processo normal da vida pública seja afetado … Aqui, a tese exposta há alguns meses pelo Vice-Presidente readquire sua oportunidade. O sr. Café Filho (o Vice) observou que a sucessão presidencial se caracterizaria pela resistência do grupo empresarial da livre empresa contra o intervencionismo estatal em ascensão…
A referência a Café Filho, talvez proposital e maliciosa, mostra que o Vice-Presidente já está enturmado com os grupos anti-Getúlio e pronto a servi-los caso se abra para ele a oportunidade de assumir a Presidência.
Só falta um pedido de impeachment para completar a montagem do golpe – e ele acontece apenas três dias depois do decreto do salário mínimo.
O pedido de impeachment é assinado pelo líder estudantil Wilson Leite Passos, ativo organizador de comitês do Brigadeiro EduardoGomes, candidato a Presidente contra Getúlio nas eleições de 1950, e se baseia em duas alegações. A primeira é a existência de um suposto acordo entre Getúlio e Perón, Presidente da Argentina para a formação de um bloco Argentina-Brasil-Chile contra a influência e os interesses dos Estados Unidos na América Latina. A segunda retoma um pedido anterior de impeachment e acusa Getulio de violação da lei orçamentária por ter autorizado despesas extraordinárias da Comissão Central de Preços – a mesma impostura futura das pedaladas fiscais invocadas contra a Presidente Dilma Rousseff décadas depois..
Coincidência ou não, caem as exportações brasileiras de café para os Estados Unidos. A previsão é de uma queda de 5% no consumo, embora se esperasse que poderia chegar a 12%. Em março de 1954, os Estados Unidos importaram apenas 84 milhões de libras-peso de café brasileiro, contra 118 mil libras-peso em março de 1953.
O pedido de impeachment anda rápido na Câmara dos Deputados e no fim de maio a Comissão Especial criada para opinar sobre ele discute o parecer do relator, deputado Vieira Lins, do PTB e Vice –Líder do governo, que propõe o arquivamento do processo. O parecer é aprovado por 12 votos a 4.
Nesse momento ainda não se sabia que o pedido só tinha sido apresentado para ser derrotado, não para derrubar Getúlio.
(Continua… Na 4ª parte, “A derrota do impeachment facilitaria o golpe”)
*) Por José Augusto Ribeiro – jornalista e escritor, é colunista do Jornal Brasil Popular com a coluna semanal “De olho no mundo”. Publicou a trilogia A Era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993); A História da Petrobrás (2023). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.
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