Pela primeira vez o Brasil conseguiu nesta quinta-feira vacinar mais de dois milhões de pessoas no período de 24 horas. E soubemos na sexta que até o fim do ano o Brasil terá disponíveis mais 500 milhões de doses de vacina, entre as produzidas aqui e as importadas.
Teoricamente, 500 milhões de doses de vacinas seriam suficientes para vacinar com duas doses os 211 milhões de habitantes do país, sem levar em conta os já vacinados, 11% do total da população. Mas expectativas como essa, de 500 milhões, podem ser reduzidas por atrasos, extravios, perda de validade e outros imprevistos.
Ainda assim deveria haver vacina para todos ao longo do segundo semestre do ano – e a Prefeitura do Rio anunciou na sexta-feira a antecipação do calendário de vacinação, de modo a ter vacinadas até o fim de agosto todos os maiores de 18 anos.
O Brasil continua atrasadíssimo no enfrentamento da Covid 19, mas já sabe o quanto deve a seu SUS por esses mais de dois milhões de vacinados na quinta-feira e o quanto isso contribui para ampliar nosso grau de consciência política coletiva. Foi o oposto disso, o colapso de certos referenciais de consciência política, que tornou possível a eleição de Bolsonaro em 2018 e, desde antes disso, o arrastão midiático da Lava Jato.
Ninguém hoje ousaria propor a privatização do SUS, como já chegaram a pensar os fundamentalistas do neoliberalismo. Eles sabem que o projeto de privatização da Eletrobrás passou no Congresso sem maiores protestos populares porque ela, envolvida pela propaganda do Estado ineficaz, não tem espaço nos corações e mentes dos brasileiros. Já o SUS passou a ter esse espaço, porque todos perceberam, antes mesmo da vacinação, sua presença em cada canto do país e a dedicação de seu corpo de servidores na perigosa luta contra a Covid.
O SUS conseguiu neutralizar a campanha midiática de anos e anos sobre as carências da medicina pública, com seguidas reportagens de televisão sobre filas nos hospitais e pacientes em macas nos corredores, abandonados à própria sorte. Com a chegada da Covid, o que ficou logo claro é que foi o SUS, não a medicina privada, que atendeu, tratou e salvou mais pacientes.
À medida que se consolida essa consciência coletiva de que o SUS é uma espécie de propriedade coletiva de cada um dos brasileiros, o próximo passo dessa oportunidade política de defesa do patrimônio público deve ser a luta pela rejeição, ao menos parcial no que diz respeito à saúde pública, na desumana emenda constitucional do teto de gastos, aprovada pelo Congresso no governo Temer. Se não existisse esse teto ou se não fosse aplicável à saúde pública, o SUS poderia estar fazendo muito mais do que já fez e continua a fazer.
Como está acontecendo em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos depois do pesadelo sinistro do governo Trump, a Covid acabou com a aceitação coletiva da hegemonia neoliberal e com a noção medíocre e na verdade pusilânime de que não existe alternativa a esse modelo concentrador de renda e promotor da desigualdade.
Biden, que se tornou candidato por ser o mais conservador dos pretendentes à Presidência pelo Partido Democrata, revelou-se um Presidente mais avançado que antecessores democratas como Bill Clinton e o próprio Barak Obama e tão avançado quanto Franklin Roosevelt nos anos 30 e 40 do século passado.
Assim como Biden, Roosevelt não escolheu do nada os avanços que adotou: foi levado a eles pela depressão econômica mundial resultante da quebra da Bolsa de Nova York em 1929, pela emergência do nazifascismo na Europa e pela iminência da Segunda Guerra Mundial e depois sua deflagração. Assim como Roosevelt, Biden é empurrado pelas sequelas devastadoras da Covid.
Assim como Biden e Roosevelt nos Estados Unidos, o Brasil vai sendo empurrado, apesar de Bolsonaro e contra ele, pelo despertar de uma consciência coletiva, manifestada até em correntes conservadoras e em empresários antes agarrados às teses do neoliberalismo, de que o Estado não pode ser mínimo e organizações estatais como o SUS são indispensáveis para todos, pobres e ricos.
As duas maiores descobertas que a pandemia provocou no Brasil foram a de que para proteger os ricos em situações assim é preciso proteger também os pobres e a de que o Estado precisa ter o tamanho e os recursos necessários para enfrentar as maiores e mais imprevisíveis adversidades.
Isso abre caminho para outras redescobertas e para outros avanços.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.