O oito de janeiro foi o estertor de um golpe que não deu certo, mas isto não quer dizer que o karma golpista tenha sido anulado
Um pouco antes da eleição de 2022 publiquei no site A Terra é Redonda uma série de seis artigos sobre os muitos golpes de Estado que deram certo na tradição brasileira e os poucos que, desfechados ou planejados, não vingaram. Analisei estes eventos desde o golpe da Independência, em setembro de 1822, até o impeachment sem base jurídica de Dilma Rousseff e o até então inédito impeachment preventivo da candidatura de Lula em 2018, entrando pelos assanhos golpistas desenhados e ensaiados a partir do Palácio do Planalto por seu usurpador e lacaios conexos.
Agora, quando as balizas que levaram ao oito de janeiro próximo passado começam a se delinear de modo mais claro, a análise desta tentativa fracassada de golpe se impõe.
A efeméride dos dez anos das manifestações de junho de 2013 trouxe à tona a reflexão sobre se não foi aí que se implantou o ovo da serpente que levou à tomada do Palácio do Planalto pelo usurpador em 2018, depois da pinguela para o futuro de Michel Temer, com o golpe parlamentar contra Dilma, liderado por Eduardo Cunha, e o golpe togado contra Lula, liderado pela dupla Conje Moro e Deltan Fominha desde Curitiba, mas com amplo apoio em vários escalões jurídicos disseminados pelo país.
Pode ser. O fato é que a partir de janeiro de 2019 instalou-se no Palácio do Planalto e arredores um pseudópode do estamento militar e um bandarilho de civis, todos altamente incompetentes, que, instigados pelo usurpador, começaram de imediato a tramar as mais diversas hipóteses de golpe que possibilitasse sua permanência onde estavam.
Por que “pseudópode”? A palavra, derivada do grego, quer dizer “falso pé”. Designa um prolongamento que se instala na”pele” de uma célula animal, e que serve para lhe facilitar a locomoção e a captação de alimento. É a palavra justa: não se pode dizer que a camarilha fardada ou apijamada que se instalou ao redor do usurpador fosse exatamente representativa do estamento militar como um todo, embora assim se apresentasse. Eram sobretudo amigos da boquinha financeira. Entretanto, fosse como fosse, levaram para dentro do Palácio a bandeira das Agulhas Negras.
E com eles se aboletaram também civis avessos a tudo que fosse uma conquista civilizatória, de direitos civis a proteção do meio-ambiente, de proteção social a saúde e ensino públicos, de vacinas a universidade, cultura e ciência, de urna eletrônica a voto secreto e etc. “Voto secreto”? Sim, porque um dos objetivos do tal de “voto impresso” era dar aos milicianos do Rio de Janeiro o poder de controlar quem tinha votado em quem. Ao redor desta camarilha a mídia tradicional e as direitas seduzidas pelo poder do usurpador sonhavam com seu Brasil pré-1930, desindustrializado e reduzido a um imenso parque agro-exportador e importador de miçangas eletrônicas ou outras. Sem uma força urbana motriz, como um proletariado nos anos 1930, que pudesse contestar ou mesmo disputar os favores de Estado. E com a sufocação do MST.
Projeto nacional? Zero. Inserção geopolítica? Zero. Em seu lugar, alinhamentos automáticos mais com Miami e com Olavo de Carvalho do que com Washington, com fornecedores de joias para os coroados, armas para os milicianos e de artefatos repressores para sua proteção. Foi neste perverso caldo de cultura que o novo golpe contra as eleições de 2022 começou a ser tramado.
Houve muitos ensaios, planos e motivações, com os setes de setembro, as perorações nos cercadinhos, e as tramas de bastidor. Com tudo isto, e quatro anos de tempo, admira que não tenha dado certo. Por quê não deu?
(1) Não houve liderança. O usurpador não é um líder. É um cabeça-de-ponte, como se diz no jargão militar. Alguém que vai na frente, estabelecendo um perímetro para que os outros possam vir. Mas nem para isto ele presta. Por quê? Porque é um covarde. Fala grosso com os que vê fragilizados: mulheres, negros, gays, índios, os vizinhos sulamericanos, etc. E pia fino diante dos que vê com poder: Estado Unidos, príncipes sauditas, até generais de algumas estrelas, etc.
(2) Por isto, o usurpador sempre terceirizou o golpe. Atribuiu sua organização a outros. No final, deu uma de Jânio Quadros em 1961. Safou-se. Saiu do Palácio antes do tempo. Talvez imaginado ser reconduzido ao poder nos braços do povo ou nas esteiras de um tanque. Não deu certo. Nem havia povo, nem houve esteira.
(3) Por falta de liderança, o objetivo do golpe nunca ficou bem definido. Qual era? Melar as eleições? Melar seu resultado? Fazer nova eleição? Impor o usurpador? Tirar Lula e entronizar Geraldo Alckmin?
(4) O usurpador ameaçou um alicerce da corporação militar: a hierarquia. Lembrando: entre 1961 e 1964 as revoltas dos sargentos em Brasília, em 1963, e dos cabos e marinheiros, em 1964, jogaram muitos oficiais de alta patente, legalistas antes, nos braços dos golpistas, como os generais Machado Lopes e Pery Bevilacqua. Este seria cassado depois pelo regime golpista, mas o mal já fora feito. O usurpador e sua quadrilha de fominhas mexeram na hierarquia. Basta lembrar o número de demissões que houve nas altas patentes de comando para proteger os apaniguados.
(5) Em suma, não houve coesão capaz de armar o golpe entre a pré- e a pós-eleição. Estes foram fatores internos de fracasso do golpe. Vamos aos externos.
(a) O golpe não conseguiu apoio no exterior. As personalidades obtusas do usurpador, de Ernesto Araújo, de Olavo de Carvalho deram contribuição decisiva para tanto. O establishment norte-americano mandou sete – sete! – emissários antes das eleições, sendo três militares, avisando que não apoiariam um golpe. Ou seja, faltou o imprimatur potest e o nihil obstat de Washington. Joe Biden e o Deep State dos EUA preferiram enfrentar o risco Lula a aguentar mais tempo da certeza negativa do usurpador e seus asseclas. E desde a Guerra das Malvinas Washington vê com desconfiança aventuras militares na América do Sul. Prefere os golpes jurídicos e parlamentares, se for o caso.
(b) Ninguém na União Europeia negou apoio a Lula. Até governos de extrema direita, como os da Polônia e Itália, apoiaram Lula. Viktor Órban ficou num silencio obsequioso. O isolamento prometido orgulhosamente por Ernesto Araújo enquanto era chanceler tornou-se uma realidade!
(c) Lula deu uma jogada de mestre ao convidar Geraldo Alckmin para vice. Ouvi de fonte segura que a sugestão veio do Fernando Haddad. Os dois milhões de votos decisivos na diferença eleitoral podem ter vindo daí.
(d) Em algum momento a cúpula corporativa do sistema judiciário se deu conta do erro que cometera ao impedir a candidatura de Lula em 2018. O establishment norte-americano, tão influente na operação Lava Jato, pode ter influenciado também a cúpula do STF naquele outro sentido. Viagens de ministros do STF aos EUA foram eloquentes.
Em suma, quando o atentado de 8 de janeiro aconteceu, as condições de derrota do golpe eram muito fortes, e o ministro Flávio Dino soube capitaliza-las muito bem. O propalado apoio da baixa oficialidade das FFAA e das PMs estaduais não era tão forte assim. Prova disto é que foi a PM do Distrito Federal, sob o comando do interventor Ricardo Cappelli, que começou a debelar os vândalos invasores dos Três Poderes. Os golpistas, com forte esquema em Brasília, não conseguiram apoio militar significativo fora da Capital Federal.
Em suma, o oito de janeiro foi o estertor de um golpe que não deu certo.
Atenção: isto não quer dizer que o karma golpista tenha sido anulado. Reduzido a cinzas desta vez, como Drácula ele pode voltar, de dentes a mostra.
(*) Por Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP). Autor, dentre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Editora Boitempo).
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