A cúpula do G20 Rio de Janeiro 2024 é a 19ª reunião do Grupo dos Vinte (G20). O G20 é formado pelos países da União Europeia e da União Africana, África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia. Juntos, os países representam 90% do PIB mundial, 80% do comércio mundial e dois terços da população mundial.
A cúpula do G20 Rio de Janeiro 2024 é o ápice dos encontros e discussões e resultado da primeira vez que o Brasil sedia o encontro. Um registro significativo com a marca da experiência brasileira de abrir-se à participação da sociedade civil foi o protagonismo de organizações e de movimentos sociais no encontro do G20 no Brasil, em sessões do evento, próximo de 47 mil pessoas, em diálogo no que se denominou G20 Social.
O G20 Social foi anunciado pelo presidente Lula na 18ª Cúpula de Chefes de Governo e Estado do G20, em Nova Délhi, na Índia, quando o Brasil assumiu simbolicamente a presidência do bloco. O objetivo do G20 Social é ampliar a participação de atores não-governamentais nas atividades e nos processos decisórios do G20, que durante a presidência brasileira tem por lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”.
Foram estruturados 13 grupos de engajamento no âmbito do G20 Social, para tratar de questões fundamentais, como a mudança climática e combate à fome e à pobreza: C20 (sociedade civil); T20 (think tanks); Y20 (juventude); W20 (mulheres); L20 (trabalho); U20 (cidades); B20 (business); S20 (ciências); Startup20 (startups); P20 (parlamentos); SAI20 (tribunais de contas); e os mais novos J20 (cortes supremas) e O20 (oceanos).
Ao final do encontro, como expressão desses movimentos e organizações, os participantes se constituíram voz, dizem eles num documento declaratório apresentado no Rio de Janeiro em 16 de novembro, de um conjunto de propostas com que se puseram de acordo, depois de trabalhos preparatórios e discussões conclusivas, para serem encaminhadas à presidência brasileira do G20.
Na Conclusão de sua Declaração, dirigida aos Senhores e às Senhoras líderes do G20, afirmam que “é hora de assumirmos a responsabilidade de liderar uma transformação que seja efetivamente profunda e duradoura. Compromissos ambiciosos são essenciais para fortalecer as instituições internacionais, combater a fome e a desigualdade, mitigar os impactos das mudanças do clima e proteger nossos ecossistemas. Este é o momento de agir com determinação e solidariedade. Com vontade política e a institucionalização de instâncias como a Cúpula Social do G20, podemos, sim, construir uma agenda coletiva que honre o compromisso com a justiça social e com a paz global”.
O posicionamento dos segmentos sociais que se manifestaram abrange os três temas centrais da agenda da reunião: Combate à Fome, à Pobreza e à Desigualdade; Sustentabilidade, Mudanças do Clima e Transição Justa; Reforma da Governança Global. Uma nota chama a atenção nos termos da declaração, referida à justiça social, caracterizada como “uma ferramenta fundamental para alcançar o desenvolvimento sustentável”. Por isso, afirmam: “defendemos a taxação progressiva dos super-ricos, com a garantia de que os recursos arrecadados sejam destinados a fundos nacionais e internacionais de financiamento de políticas sociais, ambientais e culturais. Esses e todos os demais fundos aqui reivindicados devem estar regidos por princípios de transparência, controle e participação da sociedade civil”.
Declaração importante em seguida à recusa no Parlamento brasileiro de aprovação à medida bastante atenuada para estabelecer um princípio de tributação de grandes fortunas, proposta pelo Governo, com a mesma justificativa.
A recalcitrância neoliberal das elites econômicas e sociais, muito intransigentes em países como o Brasil de forte herança colonial – patrimonialista, racista, patriarcal, capitalista – em abrir-se para possibilidades de justiça social é ainda o principal fator de tensão e de conflitos provocados por esses fatores de desigualdade, sustentabilidade e injustiça social. Mas, num plano mais crítico que logra sopesar os riscos dessas tensões, são nítidas as mobilizações para deter o colapso que advirá inevitavelmente do aprofundamento dessas tensões e conflitos.
Na reunião do G20 essas preocupações permearam as discussões e os posicionamentos.
Uma importante manifestação nessa mesma linha, vem na mensagem que o Papa Francisco, por meio do Cardeal Parolin, secretário de Estado do Vaticano, que em seu nome, no dia 13 de novembro, durante o segundo e último dia da Cúpula de Ação Climática dos Líderes Mundiais na conferência climática da COP29, sobre a necessidade de aumentar a assistência financeira para os países em desenvolvimento para combater os efeitos das mudanças climáticas, como uma prioridade crucial.
Mas, mais do que isso. O Cardeal Pietro Parolin transmitiu diretamente aos líderes mundiais o apelo do Papa Francisco para que as nações ricas usem o próximo Ano Jubilar de 2025 para perdoar dívidas “como uma questão de justiça” (https://www.ihu.unisinos.br/646072-papa-francisco-pede-perdao-das-dividas-das-nacoes-no-ano-jubilar-na-cupula-climatica-da-cop29).
Na locução do Cardeal, transmitindo a posição do Papa Francisco, “Devem ser feitos esforços, em particular, para encontrar soluções que não prejudiquem ainda mais a capacidade de desenvolvimento e adaptação de muitos países já sobrecarregados com dívidas econômicas debilitantes” pois, “Na verdade, dívida ecológica e dívida externa são dois lados da mesma moeda, hipotecando o futuro“.
Para o Papa, é lamentável que “o desenvolvimento econômico não tenha reduzido a desigualdade. Pelo contrário, favoreceu a priorização do lucro e de interesses especiais em detrimento da proteção dos mais frágeis, e contribuiu para o agravamento progressivo dos problemas ambientais“. É, portanto, “essencial que uma nova arquitetura financeira internacional seja centrada no ser humano, ousada, criativa e baseada nos princípios de equidade, justiça e solidariedade, e que todos os países, mas especialmente os mais pobres e mais vulneráveis a desastres climáticos, possam buscar um desenvolvimento de baixo carbono que respeite a dignidade. Países ao redor do mundo estão lidando com crises de dívida crescentes que ameaçam sua capacidade de fornecer cuidados essenciais para seus cidadãos e investir em um futuro sustentável”.
Essas preocupações que agora se esboçam no plano global têm sido invariavelmente um tema de intensa mobilização em muitos países. No Brasil, em anos recentes, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em parceria com a Auditoria Cidadã da Dívida, uma articulação da sociedade civil, lançou a cartilha Círculos Bíblicos: “Auditoria da Dívida Pública: vamos fazer?”. Uma publicação que estimula a reflexão e a formação de lideranças multiplicadoras. A disposição mobilizadora para a ameaça ao desenvolvimento social aparece em seguidas análises que o Grupo de Análise de Conjuntura Social da CNBB, oferece periodicamente ao episcopado, até porque, de acordo com a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, que também faz parte do Grupo, a dívida pública está vinculada aos problemas mais viscerais do país.
Sob contornos mais complexos e portanto, mais graves, o tema da insuportabilidade e da injustiça volta à pauta das grandes cogitações, no âmbito local – as dívidas injustas – e no âmbito global – as dívidas como instrumento artificial da política e do balanço de poderes.
Desde a perspectiva de justiça e paz, no Brasil, retoma-se o debate agora inserido na perspectiva pontifícia do jubileu, o perdão das dívidas.
Com efeito, nos meados dos anos 1990, se multiplicaram as reuniões de Igrejas e de organismos ecumênicos, dando voz e forma à consciência cristã atribulada pelo sofrimento humano e à responsabilidade cristã de conjugar esforços para a superação da injustiça e em prol da consecução da paz. Em março de 1990, por convocação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Igrejas e organismos cristãos reuniram-se em Seul, Coréia do Sul, numa Conferência Mundial em favor da Justiça, da Paz e da Integridade da Criação. Esses mesmos assuntos ocuparam lugar preeminente (duas de suas quatro sessões temáticas) também na VIII Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial (FLM), realizadas em Curitiba, de 30 de janeiro a 8 de fevereiro de 1990, culminando com uma Consulta Nacional “Igrejas e a Dívida Externa”, patrocinada pelo Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (CONIC) e pela Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), com assessoramento do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI).
O registro desses eventos pode ser encontrado em Não à Dívida — Sim à Paz Contribuição e Notas a Dois Encontros Ecumênicos, de Walter Altmann (teólogo e pastor Luterano brasileiro, de 2002 a 2010 presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Eleito moderador do Conselho Mundial de Igrejas em 2006, cargo que exerceu até 2013), cf. https://core.ac.uk/download/pdf/276540167.pdf.
Tivemos a oportunidade, membros da Comissão Justiça e Paz de Brasília, de participar de alguns desses encontros e de poder concordar, com as mais sólidas posições, de que “a imposição do pagamento da dívida externa representa para os povos do Terceiro Mundo, em particular os latino-americanos, uma agressão cada vez mais violenta à sua soberania e a seu direito de sobreviver”.
Todos concordamos com Hugo Assmann, teólogo católico já falecido, no mesmo diapasão do também teólogo e economista alemão radicado na Costa Rica Franz Josef Hinkelammert, falecido este ano, que não se insurgir contra a subordinação injusta às injunções políticas do incremento da dívidas, é sucumbir a uma “doutrina sacrificial que inverte o cristianismo porque implica num sequestro do evangelho”, elaborado numa modelagem emancipatória inscrita no jubileu em seu significado de libertação periódica dos escravos e de perdão das dívidas”. Será por esse viés que talvez se explique como e porque a oração que Jesus ensinou, o pai nosso, que segundo Mateus se rezava pedindo o perdão das dívidas, passou a rezar-se, com o “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.
Segundo Hinkelammert e Assmann, “com a nova tradução, uma determinada economia se impôs à teologia. Uma economia que proclama as leis do mercado como justiça, se impôs a uma teologia e transformou suas ordens.” Para esses teólogos, “o texto do Pai Nosso originalmente proclamava uma dinâmica de redenção, em que dívidas impagáveis eram perdoadas, tanto no relacionamento com Deus quanto no inter-humano. A redenção estava acima das leis (de pagar e cobrar dívidas). Na nova tradução, pede-se e oferece-se perdoar tão-somente as “ofensas”, isto é, a norma legal e a justiça da lei permanecem intocadas. Isso ilustra que “da economia vêm exigências que solicitam da teologia concessão até mesmo em seus conteúdos mais íntimos de fé, como são a santificação do homem e a redenção por Deus. Por outro lado, a teologia, ao determinar esses seus conteúdos, julga a economia, seja crítica ou apologeticamente.”
Mas mesmo em sentido jurídico positivo, ali no chão do pensamento conservador mais liberal, encontra-se uma hermenêutica não discrepante da limitação do enriquecimento sem justa causa. Nessa sorte de consideração, há muito sustentavam insuspeitamente autores do porte de Pierangelo Catalano e José Carlos Moreira Alves (VII Seminário Roma-Brasília, 1990, “a tese da necessidade de submeter a questão da dívida externa perante a Corte de Haya, através da solicitação de um parecer consultivo, no sentido da proteção do devedor na obtenção de sua liberação da relação obrigacional, outorgando-lhe condições dignas que possibilitem o adimplemento da obrigação, bem como a invocação do princípio do favor debitoris que impõe a solução da obrigação de maneira menos gravosa para o devedor, o que não se verifica no tema da dívida externa”.
Perdoar as dívidas em sentido teológico é, interpreta Hugo Assmann, “a superação de sacrifícios humanos. Não é, automaticamente, uma sociedade sem lei, mas um discernimento da lei a partir de uma justiça, que antecede a lei e é expressa pelo amor ao próximo. Essa justiça é simplesmente a atitude que busca viver sobre a base da possibilidade de vida de todos os demais. A justiça por cumprimento da lei não pode realizar isso, ao contrário, destrói-se essa justiça. Por isso, para que haja essa justiça, as dívidas que estabelece a lei devem ser perdoadas” (ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz J. A idolatria do mercado: ensaio sobre Economia e Teologia. Petrópolis: Vozes, 1989). Não por acaso, o Papa Francisco aponta o alcance de sua proposta para o ano jubilar.
(*) Por Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho, presidenta da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, e José Geraldo de Sousa Junior, membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília